12 3 
Home Page  

    Compartir


    Odontologia Clínico-Científica (Online)

      ISSN 1677-3888

    Odontol. Clín.-Cient. (Online) vol.12 no.3 Recife jul./sep. 2013

     

    Artigo Original / Original Article

     

    Cuidado dos avós com a saúde bucal de seus netos em um programa de atenção odontológica precoce

     

    Grandparents' attention to their grandchildren's oral health in an early dental care program

     

     

    Avany Berman de Moraes I; Manuelly Pereira de Morais Santos I; Silvia Regina Jamelli II; Maria Gorete Lucena de Vasconcelos III

    I Programa de Pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente. Universidade Federal de Pernambuco
    II Departamento de Clínica e Odontologia Preventiva. Universidade Federal de Pernambuco
    III Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Pernambuco

    Endereço para correspondência

     

     


    RESUMO

    Objetivos: identificar significados atribuídos pelos avós no cuidado com a saúde bucal dos netos e a condição dental destes por meio de exame clínico em um Programa de Atenção Odontológica Precoce. Métodos: estudo descritivo, exploratório e qualitativo com nove crianças acompanhadas pelos avós no ambulatório do Hospital Geral de Areias, participantes do programa "Crescendo sem Cárie". Realizou-se entrevista e exame clínico para detecção de lesões de cárie, presença de placa visível e manchas brancas por meio dos índices de cárie ceo-d e ceo-d modificado. Utilizou-se análise de conteúdo das entrevistas na modalidade temática. Resultados: os avós pertenciam à faixa etária de 38 a 77 anos. Os netos tinham idade entre 21 a 36 meses. Dois não apresentaram lesões de cárie, porém tinham manchas brancas, e sete apresentaram um índice de cárie elevado. Quatro temáticas emergiram das falas: 1. O significado do cuidado em relação à saúde bucal, 2. Avós: mães com açúcar, 3. A experiência da perda dentária no passado e 4. O conflito intergeracional interferindo na saúde bucal. Conclusões: como cuidadores dos netos no âmbito familiar, torna-se importante questionar as atitudes e os comportamentos no controle e na prevenção da cárie infantil. Atenta-se para o consumo de açúcar como transferência de amor e carinho dos avós aos netos, embora seja prejudicial à saúde bucal, conforme se comprove mediante o exame clínico.

    Descritores: Saúde bucal; Cárie dentária; Relações familiares; Cuidado da criança; Pesquisa qualitativa.


    ABSTRACT

    Aim: Identify meanings attributed by grandparents' attention to their grandchildren's dental health care through clinical examination in an Early Dental Care Program. Methods: descriptive, exploratory and qualitative study with nine children accompanied by their grandparents at the Areias General Hospital participated in the "Growing up without caries" Program. It was held interviews and clinical examinations to detect caries lesions and presence of visible plaque and white spots, through caries indices ceo-d and ceo-d modified. We used content analysis of the interviews, in thematic. Results: grandparents belonged to the age group 38-77 years. The grandchildren were aged between 21 and 36 months. Two of them showed no carious lesions, however, they had white spots and seven of them showed a high caries index. Four themes emerged from the speech: 1. The meaning of care in relation to oral health, 2. Grandparents: mothers with sugar, 3. The experience of tooth loss in the past and 4. The intergenerational conflict interfering with oral health. Conclusions: as caregivers of their grandchildren in the family becomes important to question the attitudes and behaviors in the control and prevention of childhood caries. Attentive to the fact that the consumption of sugar as a transfer of love and care from grandparents to grandchildren, although detrimental to oral health, as evidenced by clinical examination.

    Keywords: Oral health; Dental caries; Family relations; Child care; Qualitative research.


     

     

    INTRODUÇÃO

    A longevidade humana vem favorecendo o crescimento do número de famílias nas quais coexistem três ou mesmo quatro gerações. Diante dessas transformações ocorridas nos âmbitos psicossocial e familiar, os avós aparecem como figuras peculiares, ao expressarem, por meio de suas histórias, o desenrolar das mudanças e reformulações da vida em família1.

    A figura dos avós vem recebendo considerável atenção nas esferas sócio-econômica e familiar desde a década de 80, sendo cada vez mais prevalente a criação de netos por eles2. Tal fato justifica-se não só pela maior expectativa de vida do ser humano mas também pelo exercício do papel desempenhado em diversas situações, como na maternidade adolescente, divórcio e recasamento dos filhos, atividades profissionais dos filhos e uso de droga pelos pais de seus netos1.

    Observa-se que ensinamentos transgeracionais se consolidam e formam o conhecimento dos descendentes. Estes adquirem hábitos familiares que afetam seu comportamento, cujos legados são perpetuados por gerações, refletindo na dinâmica familiar3. Assim, as crianças colocam o aprendizado em prática se este for relacionado com pessoas que têm um significado para elas4. As decisões do dia a dia relativas à nutrição, escolaridade e saúde, entre outras, são de fundamental importância ao bem-estar e à formação integral da criança. Nesse contexto, destacam-se os avós, os quais assumem responsabilidades relativas ao cuidado com a saúde bucal e integral infantil5.

    A atenção à saúde no contexto familiar vem sendo reafirmada como uma importante estratégia para a adequação do sistema de saúde vigente, em especial no que tange ao fortalecimento da atenção básica e à melhoria da qualidade de vida. Isso se justifica porque a família representa o ambiente de formação de indivíduos conscientes de suas necessidades4.

    Aspectos culturais dos avós, como suas crenças, podem influenciar decisivamente, com maior ou menor peso, a saúde oral das crianças6. O estabelecimento de significados para os diferentes alimentos, os ritos à mesa, as formas de preparação, a composição, o número de refeições diárias e o horário que estruturam a alimentação cotidiana apresentam aspectos importantes e diferenciadores entre os grupos sociais, cuja representação varia em cada cultura e pode estar relacionada à condição sócio-econômica e às práticas de atenção à saúde no cotidiano familiar7.

    A dieta alimentar desempenha um papel fundamental no desenvolvimento da cárie dentária em todos os grupos etários, entretanto essa relação assume uma posição ainda mais relevante, quando analisada em relação a crianças de tenra idade, época em que os hábitos relacionados à saúde bucal são firmados e formados mediante práticas alimentares, frequentemente ricas em alimentos açucarados8.

    Esses alimentos representando uma transferência de amor e carinho induz a conceber as avós como "mães com açúcar" devido a sua permissividade e cumplicidade com os netos, provocando conflitos intergeracionais e problemas advindos dessa conduta, como a cárie de acometimento precoce9.

    Nessa perspectiva e diante da escassez de literatura sobre o tema, o presente estudo tem como objetivos identificar significados atribuídos pelos avós no cuidado com a saúde bucal dos netos e avaliar a condição dental por meio de exame clínico em um Programa de Atenção Odontológica Precoce.

     

    MÉTODOS

    Trata-se de um estudo descritivo, exploratório e qualitativo realizado no Hospital Geral de Areias, localizado na cidade de Recife-PE onde se desenvolve o Programa de Atenção Odontológica Precoce "Crescendo sem cárie".

    A coleta de dados transcorrida durante cinco meses foi realizada por meio de entrevista gravada com os avós, utilizando-se um roteiro semiestruturado10 com quatro questões norteadoras: 1) Como você cuida da saúde bucal do seu neto? 2) O que significa para você oferecer doce a seu neto? 3) Como você vê o cuidado da sua família com a saúde bucal do seu neto? 4) Como você cuidava da sua saúde bucal?

    Os avós de nove crianças participantes do programa foram selecionados, segundo o critério de saturação teórica11, que advém da não inclusão de novos participantes, quando os dados obtidos passam a apresentar repetição, não sendo considerado relevante prosseguir na coleta dos dados12.

    As entrevistas foram transcritas no mesmo dia da sua realização, momento em que se extraíram os temas recorrentes do corpus das categorizações, por meio da análise de conteúdo, modalidade temática que recorta as falas, considerando a frequência dos temas extraídos dos discursos, descobrindo núcleos de sentido que compõem a comunicação cuja presença expressa significado ao objetivo da análise13.

    As falas foram transcritas na íntegra, sem as convenções da língua padrão culta, identificando os sujeitos por ordem alfabética sequencial, representada pelas letras A (avós) e N (netos) e numeradas de um a nove, para preservar o anonimato.

    Após as entrevistas, foi realizado o exame clínico da condição dental dos netos para detecção de lesões de cárie, presença de placa visível (biofilme) e lesões de manchas brancas, adotando-se análise descritiva do índice de cárie ceo-d e ceo-d modificado14. De acordo com esse índice, as lesões de manchas brancas opacas e rugosas devem ser incluídas nos critérios de diagnóstico de levantamentos epidemiológicos em saúde bucal por representarem sinais de lesões ativas de cárie dentária. Os resultados permitem que estratégias preventivas e terapêuticas mais adequadas às diferentes etapas do desenvolvimento da cárie sejam implantadas para o controle da sua progressão15.

    Todos os exames clínicos intrabucais das crianças foram realizados com o auxílio de sonda preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e odontoscópio, utilizando- se luz artificial do refletor com as crianças posicionadas em MACRI ou maca de criança, que mantém o bebê contido, quando necessário, não sendo necessário que a criança fique no colo dos acompanhantes16. Os instrumentos utilizados para auxiliar no exame visual e tátil do tecido dentário eram diariamente esterilizados, conforme as normas de biossegurança do Ministério da Saúde (MS).

    Investigou-se, inicialmente, a presença de placa visível (IPI), considerando-se apenas as superfícies vestibulares dos incisivos superiores que apresentassem depósitos de biofilme e sem auxílio de corantes para sua evidenciação. Os valores de 0 a 1 foram atribuídos para ausência e presença de placa visível. Em seguida, todos os dentes foram limpos com o auxílio de compressas de gaze esterilizadas, embebidas em soro fisiológico, e secos, para que fosse feita a avaliação da presença de manchas brancas ativas em todos os elementos presentes.

    Atendendo à Resolução nº 196, do Conselho Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), o estudo foi realizado após receber parecer favorável (nº 270/06) do Comitê de Ética Institucional do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (CCS-UFPE).

     

    RESULTADOS E DISCUSSÃO

    Os avós pertenciam à faixa etária de 38 a 77 anos, de ambos os gêneros. Entre eles, cinco estavam aposentados, três exerciam atividades no lar e um era funcionário público. Os netos tinham idade entre 21 a 36 meses. A análise descritiva do índice de cárie ceo-d e das lesões de mancha branca dos netos encontra-se no Quadro 1.

     

     

     

    Quatro temáticas emergiram das falas: 1. O significado do cuidado em relação à saúde bucal; 2. Avós: mães com açúcar; 3. A percepção da perda dentária no passado; 4. O conflito intergeracional interferindo na saúde bucal.

    1. O significado do cuidado em relação à saúde bucal

    Nos depoimentos a seguir, os avós revelam suas experiências e sentimentos com relação à compreensão do cuidado com a saúde bucal dos netos que se apresenta com significações do senso comum.

    Na estrutura familiar, os avós desempenham um papel de destaque no cuidado com a saúde bucal dos netos, e a participação no Programa de Atenção Odontológica Precoce "Crescendo sem cárie" do hospital é um processo fundamental para sua prevenção. As palestras educativas direcionadas aos responsáveis retratam a credibilidade destes ao programa:

    [...] É a primeira vez que trago ele (refere-se ao neto). Foi a vizinha que me falou que eles olham os dentes desde pequeno, tem palestra, é muito bom, marca com a menina aqui mesmo [...] A5

    [...] Eu digo pra minhas filhas que limpe a boquinha deles quando terminar o banho com uma fraldinha molhada pra tirar o resíduo que fica do leite (orientação recebida no programa), né? A8

    O cuidar refere-se, sobretudo, a ações de proteção, preocupação e afetividade dos avós com os netos. A carência de assistência odontológica na primeira infância resulta em alta prevalência da doença-cárie. No entanto, quando os cuidadores têm acesso a informações e são motivados na adoção de hábitos saudáveis, observa-se acentuada redução dessa doença por meio de programas odontológicos para bebês com aconselhamento familiar, os quais podem promover mudanças de comportamento5,17.

    Apesar do interesse em levar o neto ao programa, a avaliação da condição dentária de N5 mostrou um alto número de lesões de cárie, grande acúmulo de placa bacteriana e presença de manchas brancas ativas na maioria dos dentes presentes. Por outro lado, a N8 apresentava, apenas, lesões de manchas brancas nas faces vestibulares dos incisivos superiores e ausência de lesões de cárie, refletindo cuidado com a saúde bucal.

    Houve relatos em que os avós mencionaram a ideia de que o comprometimento dos dentes é um problema, porém de menor valor frente à percepção de saúde, exemplificando bem a separação da cavidade bucal com o restante do corpo.

    [...] O único problema desse menino (refere-se ao neto) são esses dentes estragados... ele nem consegue se alimentar direito... mas, no resto, ele graças a Deus tá bem, ele brinca, tem saúde. A4

    Sabe-se que uma boa higiene oral é parte integrante das práticas de saúde geral e um grande elo de seu alcance e estabelecimento. Não entendi Isso é corroborado pelas várias patologias bucais e têm correlação com o estado de saúde geral do paciente, como, por exemplo, as endocardites bacterianas relacionadas a abscessos dentários.18

    No exame clínico, observou-se que N4 apresentava um grande número de lesões de cárie, denominada de rampante, e um visível estado geral debilitado, pálido, provavelmente anêmico, com déficit de crescimento, mostrando claramente que a preocupação da avó com o cuidado com os dentes sobrepujava a saúde geral do neto.

    Também foi abordada pelos avós a preocupação com a dentição decídua e as consequências negativas para a dentição permanente, podendo-se observar que as percepções dos Avós no cuidado com a saúde bucal dos netos estão intrinsecamente ligadas à atenção que recebem nos serviços odontológicos.

    [...] Tem que cuidar bem desses dentes de leite, para que os outros venham tudo direitinho, como a doutora (referindo-se à odontopediatra) falou. A7

    Os profissionais de saúde, como o médico pediatra, o fonoaudiólogo e os profissionais de enfermagem, foram referidos como aliados no cuidado com a saúde bucal dos netos. Fica evidente na fala abaixo que os avós reconhecem a importância do pediatra como sendo o primeiro a encaminhar os netos ao programa:

    [...] Foi o doutor, o pediatra dele, daqui mesmo desse hospital que encaminhou meu neto para esse programa. A9

    Ressalta-se que, nos serviços de saúde, o exame da cavidade bucal das crianças deve ser realizado por uma equipe multiprofissional com caráter interdisciplinar, fazendo-se o encaminhamento formal para o serviço odontológico.

    A falta de supervisão ou de acompanhamento durante as práticas de higiene bucal ocorreu em uma das crianças que realizou a escovação, quando lhe foi delegada essa tarefa:

    [...] Ela escova sozinha mesmo. Ela é difícil. Morde a escova toda. A9

    Sabe-se que a realização da higienização deve ser supervisionada pelos responsáveis, pois as crianças na primeira infância não apresentam coordenação motora suficiente para exercerem atividades de controle de placa bacteriana de forma eficaz19.

    Os medicamentos caseiros, como o lambedor e os medicamentos líquidos pediátricos, englobaram também o cuidado como forma de prevenir e curar problemas de saúde. Essa atitude pode repercutir na saúde bucal dos netos quando o açúcar é utilizado para mascarar o gosto desagradável e a higiene bucal não foi realizada após a administração destes.

    [...] Minha neta toma muito remédio. Eu dou lambedor de beterraba com açúcar quando ela está doente. Foram os antibióticos que estragaram os dentes dela. A5

    A maioria das medicações possui elevado percentual de açúcares totais, sendo, portanto, fator de risco para o desenvolvimento da cárie dentária21. Os responsáveis desconhecem os açúcares adicionados aos medicamentos líquidos infantis e caseiros, fato que pode induzir a comportamentos que contribuem para o desenvolvimento da doença cárie.

    2. Avós: mães com açúcar

    Os avós, por vezes, não demonstram a necessidade de atuarem com rigidez nos cuidados prestados aos netos, pois acreditam que não é deles a responsabilidade de educar as crianças; por essa razão, são vistos como mais "doces" ou mais maleáveis nas suas ações. A própria sociedade conservou a imagem de que os avós podem ser licenciosos, que podem deseducar a vontade, ofertar doces em demasia, pois os pais estariam prontos para "consertar" os estragos que, porventura, eles proporcionassem. Em depoimento, a permissividade e a cumplicidade dos avós com os netos têm sido enfatizada, como se exemplifica abaixo:

    [...] Eu e minha mulher, a gente gosta de oferecer bombom pra elas (refere-se às netas). Às vezes eu guardo um saco de bombom e vou distribuindo aos poucos... Aí eu escondo e só minha bisneta que sabe [...] A9

    O N9 apresentou a maioria dos elementos dentários decíduos cariados e higiene bucal deficiente, além do comprometimento de vários elementos dentários com extrações indicadas.

    A ingestão descontrolada de alimentos ricos em carboidratos associados à ausência de higiene bucal é fator de risco para o desenvolvimento da doença cárie na infância. Lamentavelmente, a lesão de cárie em dentes decíduos é concebida com normalidade e considerada uma fatalidade, pois muitos cuidadores desconhecem que essa doença pode ser prevenida. 21

    [...] ela pede, eu dou...não vou dizer que não dou, aí eu tô mentindo! Eu dou muito doce pra ela. O problema dela foi esse, entendeu? Não só eu que dou, o pai também (refere-se ao genro). A3

    Por outro lado, o uso de mamadeiras frequentes, enriquecidas com achocolatados, açúcares ou farinhas, foi mencionado na fala dessa mesma avó:

    [...] Eu dou umas três mamadeiras de dia e de noite, ele ainda acorda pra tomar mais uma... geralmente eu boto Nescau ou farinha láctea pra ele dormir...mas ele não escova, adormece. A3

    A alimentação noturna por meio do uso da mamadeira é considerada, aliada à falta de higiene bucal, um fator predisponente à cárie de acometimento precoce, pois o leite permanece sobre e ao redor da superfície dentária quando a criança adormece, tornando-se um fator preponderante à sua evolução.22

    Na avaliação da condição de saúde bucal, N3 apresentou muitas lesões de cáries, abscessos e fístulas nos molares e comprometimento da face vestibular dos incisivos centrais superiores, caracterizando a cárie de amamentação noturna.

    O relato do avô que possui um fiteiro em casa como complemento de sua renda familiar vem confirmar que o consumo de alimentos doces é hábito comum em populações de baixa renda. Estudo aponta que as condições sócio-econômicas influenciam a preferência por açúcar, elevando a prevalência de cárie dentária na dentição decídua.23

    [...] esses dentinhos assim é por causa dos doces. Aí eu deixei de vender o Big-Big (refere-se ao chiclete), que é muito procurado por eles (referência aos netos). Porque, às vezes, eu dizia: isso ofende por causa dos dentinhos, mas ela ia escondido e... depois eu via aquela borracha (do chiclete). Ela escondia por trás do basculante. Aí, para evitar eu não compro, mas ela sempre pega por fora. A6

    A compreensão de que o consumo do açúcar tem associação com a presença de cárie evidenciou-se na fala abaixo. Porém, a consistência e a forma de outros alimentos foram qualificadas como não prejudiciais em relação ao alimento doce, sendo enfatizado que este causa cárie e dor.

    [...] agora eu dou pipoca, biscoito, coisas que não prejudiquem. Porque o doce, esse problema aí, é doce que estraga os dentes das crianças... por isso ela reclama de dor. A6

    Apesar da tenra idade, N6 apresentava um elevado número de lesões de cárie e necessidade de tratamento curativo, além de manchas brancas ativas devido ao alto consumo de carboidratos fermentáveis na dieta e presença de placa visível pela baixa frequência e inadequada escovação, caracterizando cárie rampante e negligenciada.

    De acordo com Canalli et al. (2010),23 o modo como as pessoas percebem o processo saúde-doença influencia diretamente suas práticas e o cuidado em saúde bucal.

    No cotidiano familiar, é comum os avós ocuparem o papel de pais substitutos, principalmente os mais idosos, que, muitas vezes, não têm energia para cuidar de crianças pelo stress físico e emocional24, como refere A1.

    [...] Ela vence pelo cansaço, não tenho disposição pra ficar correndo atrás e termino dando uma moeda pra comprar doce [...] A1.

    Nesse caso, N1 apresentava também um elevado número de lesões de cárie, manchas brancas, resultantes do alto consumo de sacarose e principalmente, decorrentes da baixa frequência de escovação.

    O açúcar da dieta nas falas dos cuidadores é a causa do adoecimento bucal, apontado como o principal fator determinante da cárie dentária, pela ingestão excessiva de doces oferecida aos netos. Nessa fala, a avó não quis entrar em confronto com a neta e, para não desagradá-la, ofereceu doces.

    [...] eu dou quantas vezes ela quer. Eu não conto. É pirulito Big-Big, às vezes paçoca. Tudo que ela gosta, eu dou...vez por outra, faço um bolo pra ela. A3

    Entretanto, percebe-se que essa avó parece reconhecer-se culpada pela permissibilidade no consumo exagerado de doce que oferece à neta. Nesse caso, o doce não apresenta risco de doença, é muito mais carinho e compreensão. Os alimentos açucarados são usados, simbolicamente, como moedas de trocas para recompensas e/ou punições.23

    3. A experiência da perda dental no passado

    Nas falas, as experiências odontológicas negativas do passado vividas pelos avós despertam neles o desejo de que isso não aconteça e se repita com os netos, podendo, assim, modificar para melhor as práticas de cuidado à saúde bucal destes e deles próprios. Para Robles, Grosseman, Bosco (2010)25, o cuidar bem das crianças busca a não repetição com seus netos de "erros" vividos por eles no passado.

    [...] Eu sempre digo a elas, que eu perdi meus dentes superiores todos. Fui de uma geração que perdia os dentes muito nova. Aí a experiência que eu tenho, passo já pros meus netos e que não aconteça com eles o que aconteceu comigo [...] A8

    Essa avó teve seu primeiro neto com trinta e seis anos de idade, caracterizando uma avó precoce e com várias perdas dentárias. Constatou-se que N8 apresentava somente lesões de manchas brancas e ausência de cavitações.

    A busca por atendimento odontológico na infância dos avós limitava-se aos casos de sensibilidade dolorosa, e o procedimento realizado geralmente se reduzia às exodontias; assim, perdiam dentes desnecessariamente devido à menor ênfase na reabilitação bucal.25

    Relembra essa avó, com idade já avançada, a experiência da perda dentária no passado com sentimento e angústia:

    ...perdi os meus dentes na adolescência. Eu não cuidava dos meus dentes, aí eu me preocupo com os dentes dela. A7

    Percebe-se que, na época em que os avós eram crianças, não havia a preocupação dos pais com a saúde bucal dos filhos, por isso, em sua maioria, eles possuem poucos dentes e usam próteses. Isso foi aliado às dificuldades financeiras e à necessidade de sustento dos filhos, dedicando a maior parte do tempo ao trabalho e delegando os cuidados com a boca à própria criança.

    [...] como eu uso prótese, não quero que eles usem também Na minha época, não tinha essas coisas de dentista para bebê pequeno desse jeito. A7

    A avaliação da condição de saúde bucal de N7 demonstrou a presença de discretas manchas brancas nos elementos dentários decíduos superiores e inferiores e ausência de cavitação, ou seja, cárie dentária.

    Por sua vez, os avós narram situações traumáticas em suas primeiras experiências odontológicas. Aí, percebe-se que a preocupação estética sobrepõe-se à função primordial de trituração e mastigação dos alimentos. A preocupação estende-se aos netos, como observado.

    [...] eu perdi meus dentes superiores todos, logo esses da frente! A8

    [...] os dentes dela (faz referência à neta) estão muito feios. Lá na escola, todo mundo pergunta: o que é isso preto nos dentes dessa menina?" A2

    Um sorriso saudável representa a manutenção da boa aparência, da expressão e da comunicação interpessoal, todos de grande importância na autoestima do indivíduo5. Dessa forma, as perdas dentárias precoces trazem graves deficiências funcionais e estéticas, as quais interferem e prejudicam a qualidade de vida e o convívio social dos indivíduos.

    Para os avós A2 e A8, a preocupação central com a saúde bucal dos netos passa, fundamentalmente, pela questão estética. É provável que a estética e a aparência dos dentes dos netos estejam mais associadas à percepção deles próprios.

    Na avaliação da condição dental, N2 apresentava um alto grau de lesões de cárie em todos os incisivos superiores e nos molares, manchas brancas ativas, caracterizando cárie rampante ou negligenciada.

    Na prática odontológica, a dor e o medo são referências constantes. Isso foi constatado nos depoimentos das próprias experiências, bem como em relação aos netos.

    [...] Eu já sofri muito com dor de dente, por isso eu perdi! Eu tinha medo e acho que ela (refere-se à neta) não vai deixar. Ela "é muito pequena, mas tá sentindo muita dor, não dorme a noite toda."

    A pouca valorização nos dentes decíduos e as experiências negativas que os avós tiveram no passado são aspectos que precisam ser considerados com vistas à efetividade dos programas de saúde bucal.

    4. O conflito intergeracional interferindo na saúde bucal

    Na complexidade dos relacionamentos intergeracionais, o papel dos avós podem exercer influência sobre os membros da família. Para eles, as atividades de cuidado em relação à saúde bucal dos netos cabem aos pais, gerando conflitos entre eles como os exemplificados nos relatos a seguir.

    [...] Eu que tomo conta desse neto, isso (refere-se à escovação) era pra mãe dele fazer, mas ela não liga, deixa tudo nas minhas costas... A8

    [...] Quando chega de noite, eu estou morto de cansado, adormeço, e a mãe não faz nada, acho que nem os dentes dela (refere-se à mãe da criança) ela escova. Então ela vai se preocupar em escovar os dentes desse menino? A9

    Os avós, como responsáveis pelos netos, são alvos de críticas dos filhos, quando algo não está bem em relação à saúde bucal deles. Essa cobrança gera situações de conflitos e desentendimentos dentro da família, repercutindo no modo de vida deles.

    [...] Eu cuido como posso, estou velha, não consigo fazer as coisas como antes, sinto dor na coluna, não saio mais pra canto nenhum. Daqui a pouco tenho uma coisa, uma doença de tanto aperreio. E aí, quem vai cuidar dos dentes desse menino se a mãe não liga e vive brigando comigo? A7

    No caso das mães das crianças que moram com seus familiares de origem ou com familiares de seus companheiros, percebe-se uma subordinação à dona da casa (a avó), que exerce mais influência na educação das crianças. Nesse caso, a relação sogra-nora pode ficar difícil quando ambas necessitam morar no mesmo lar, seja por problemas financeiros do casal ou pelo fato de a sogra não ter condições de morar sozinha.

    [...] tomo conta dela desde pequena. Meu filho engravidou uma moça e eu fiquei tomando conta. Ela (a neta) me obedece, porque mora comigo e tem de ser assim. Ninguém se mete, nem meu filho, porque sabe que eu dou duro o dia todo. A8

    [...] Ela (a neta) não me obedece. A mãe dela (refere-se à nora) reclama muito comigo. Eu digo que só quando ela está em casa é que bota freio na minha neta. A1

    Ao avaliar a condição de saúde bucal de N1, observou-se ausência de cuidado por parte da avó, talvez pelo acúmulo de tarefas domésticas, enquanto o filho e a nora trabalham para o sustento da casa. N1, por ser uma criança hiperativa, apresenta um grande número de lesões de cáries e manchas brancas ativas nos incisivos anterossuperiores.

    Os relacionamentos familiares são cercados de sentimentos contraditórios. Os avós que residem com os netos e um ou ambos os filhos precisam assumir a atribuição de coeducadores, pois, nesse arranjo familiar, pode haver uma confusão de papéis, se as tarefas não forem bem definidas.26

    Posições divergentes entre membros da mesma família acarretam uma educação desequilibrada. Defende-se que educar para construir cidadãos importa em dizer "sim" quando possível e dizer "não" quando for necessário.

    Na gravidez precoce, foi demonstrado por que a avó cuida da saúde bucal dos netos, ora pela imaturidade da filha, cujo papel de mãe parece ser inibido, ora pelo descaso da jovem mãe.

    [...] ela (faz referência à filha) ainda é uma criança, só tem tamanho e já está esperando outro. Está com sete meses e come mais doce do que a filha (faz referência à neta). Vive comprando confeito pra ela e pra filha.

    [...] gostaria que a minha filha viesse conversar com a senhora para receber orientação de saúde bucal. Ela não tem juízo, nem se lembra que tem uma mãe e filhas pra criar. A5

    Nessa situação, percebe-se que a avó assumiu o papel de mãe cuidadora, apesar de muito jovem, com 40 anos e sendo avó aos 37 cuja filha adolescente continua seus estudos e negligencia os cuidados em relação a seu filho. N5 apresenta apenas duas lesões de cárie e manchas brancas presentes em poucos elementos dentários.

    No caso dos avós precoces, a insatisfação é ainda maior quando assumem a posição de mães substitutas. Tornar-se avó muito cedo implica uma ambivalência: cansaço e medo de perder sua privacidade se misturam aos de realização, renovação, orgulho e satisfação de terem contribuído com seus filhos e netos.27

    Muitas vezes, os conflitos aparecem nos múltiplos papéis que os avós exercem. A inversão desses papéis é relatada nesta fala:

    ...minha filha quando vem visitar minha neta, traz de presente um saco de bombom. Aí eu brigo com ela, porque estraga os dentes da minha neta. A2

    Essa avó tem uma relação difícil com a filha, que foi mãe aos dezesseis anos de idade, abandonando a casa. Esta, quando vem visitar a filha, traz uma grande quantidade de doces, o que contribui para o aumento de lesões de cárie, comprovado no exame clínico de N2.

    Vale ressaltar, também, que muitas adolescentes não conseguem enfrentar a maternidade e entregam os filhos para suas mães tomarem conta, sendo essas crianças (mãe e filha) criadas como irmãs pelas avós.

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Conclui-se que os avós deste estudo atribuem significados relevantes em relação ao cuidado com a saúde bucal dos netos, extensivo a si mesmos e à família. No entendimento do papel como cuidadores dos netos no âmbito familiar, torna-se importante questionar suas atitudes e comportamentos no controle e na prevenção da cárie infantil. Atenta-se para o fato do consumo de açúcar como transferência de amor e carinho dos avós aos netos, embora prejudicial à saúde bucal, como comprovado por meio do exame clínico. Enfim, ressalta-se a importância da inclusão dos avós em estratégias de atenção às crianças a partir do primeiro ano de vida, a fim de permitir o diagnóstico dos fatores preditores da cárie dentária precoce na infância e a detecção de lesões iniciais, fundamental no estabelecimento de medidas de promoção da saúde.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Falcão DVS, Salomão NMR. O papel dos avós na maternidade adolescente. Estudos de Psicologia. 2005; 22: 205-12.         [ Links ]

    2. Hayslip B Jr, Kaminski PL. Grandparents raising their grandchildren: a review of the literature and suggestions for practice. Gerontologist. 2005; 45: 262-9.

    3. Macedo FB. Famílias ludovicenses: um estudo sobre a transmissão dos valores culturais e familiares na perspectiva de avós e netos [dissertação]. Recife: Universidade Católica de Pernambuco; 2007.

    4. Massoni ACLT, PAULO SF, FORTE FDS, SOARES CH. Saúde Bucal Infantil: Conhecimento e Interesse de Pais e Responsáveis. Pesq Bras Odontoped Clin Integr. 2010; 10: 257-64.

    5. Lima CMG, Palha PF, Zanetti ML, Parada CMGL. Experiences of family members regarding the oral health care of children. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2011; 19: 171-8.

    6. Costa VSG. Crenças e atitudes parentais: relação com os comportamentos preventivos e com a cárie precoce da infância [dissertação]. Lisboa: Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia; 2011.

    7. Rotenberg S, Vargas S. Práticas alimentares e o cuidado da saúde: da alimentação da criança à alimentação da família. Rev Bras Saúde Matern Infant 2004; 4: 85-94.

    8. Shuler CF. Inherited risks for susceptibility to dental caries. J Dent Educ. 2001; 65: 1038-045.

    9. Corrêa MSW. Sucesso no Atendimento Odontopediátrico: Aspectos Psicológicos. 1. ed. Santos; 2002.

    10. Pope CMN. Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Trad. Ananyr Porto Fajardo. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2005.

    11. Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Bookman/Artmed; 2009.

    12. Turato ER. Decidindo quais indivíduos estudar. In: Turato ER. Tratado da metodologia da pesquisa clínico qualitativa construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humana. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; 2008, 351-68.

    13. Bardin L. Análise de conteúdo. 3. ed. Lisboa Edições 70; 2004.

    14. Maltz M, Carvalho JC. Diagnóstico da doença cárie. In: Aboprev – Promoção de Saúde Bucal. São Paulo: Artes Médicas, 1997, p. 69-91.

    15. Oliveira TM, Silva TC, Sakai VT, Prestes MP, Honório HM, Magalhães AC, Machado MAAM. Comparação entre os índices ceos e ceos modificados em bebês e pré-escolares. Revista de Odontologia da Universidade de São Paulo. 2008, 20: 128-33.

    16. Silva JBOR, Souza IPR, Tura LFR. Saúde bucal da criança: manual de orientação para profissionais e estudantes da área da saúde. Universidade José do Rosário Velano. UNIFENAS 2008, 38 p.

    17. Weinstein P, Harrison R, Benton T. Motivating mothers to prevent caries: confirming the beneficial effect of counseling. J Am Dent Assoc. 2006, 137: 789-93.

    18. Aldred MJ, Savarirayan, R, Crawford PJM. Amelogenis imperfecta: a classification and catalogue for the 21st century. Oral Diseases. 2003, 9: 19-23.

    19. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica/Saúde Bucal. Cadernos de Atenção Básica nº 17. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.

    20. Xavier AFC, Cavalcanti AL, Oliveira MC, Vieira FF. Antibióticos líquidos de uso pediátrico: caracterização físico-química. HU Revista. 2011; 37: 397-401.

    21. Guimarães MS, Zuanon ACC, Spolidório DMP, Bernardo WLC, Campos JADB. Atividade de cárie na primeira infância, fatalidade ou transmissibilidade? Ciênc Odontol Bras. 2004,7: 45-51.

    22. Dias AC, Raslan S, Scherma AP. Aspectos nutricionais relacionados à prevenção de cáries na infância. ClipeOdonto - UNITAU. 2011; 3: 37-44.

    23. Canalli CSE, Chevitarese L, Silveira RG, Casanova EG, Miasato, JM. Fatores associados à cárie dentária: uma pesquisa qualitativa na bebê-clínica da Unigranrio/RJ. Revista Rede de Cuidados em Saúde. 2010; 1-15.

    24. Goodman C, Silverstein M. Grandmothers raising grandchildren: family structure and well-being in culturally diverse families. The Gerontologist. 2002; 42: 676-89.

    25. Robles ACC, Grosseman S, Bosco VL. Práticas e significados de saúde bucal: um estudo qualitativo com mães de crianças atendidas na Universidade Federal de Santa Catarina. Ciência & Saúde Coletiva. 2010; 15 (Supl. 2): 3271-81.

    26. Dias CMSB, Hora FFA, Aguiar AGS. Jovens criados por avós e por um ou ambos os pais. Psicologia: Teoria e Prática. 2010, 12: 188-99.

    27. Araújo CP, Dias CMSB. Avós Guardiões de Baixa Renda. Pesquisas e Práticas Psicossociais. 2010, 4: 229-37.

     

     

    Endereço para correspondência:
    Manuelly Pereira de Morais Santos
    Av. Prof. Moraes Rego, s/n. Cidade Universitária. Recife - PE
    CEP: 50670-901
    E-mail: manuellyp@hotmail.com

     

     

    Recebido para publicação: 04/02/13
    Aceito para publicação: 18/10/13