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Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

versão impressa ISSN 0004-5276

Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.70 no.1 Sao Paulo Jan./Mar. 2016

 

Matéria de capa

 

AÇÚCAR X CÁRIE E OUTRAS DOENÇAS: UM CONTEXTO MAIS AMPLO

 

 

"No passado, a explicação para a etiologia da doença cárie era linear. Uma simples equação de causa e efeito era utilizada para entender o desenvolvimento dessa complexa doença. Atualmente, compreendemos a cárie dentária como um desequilíbrio no processo saúde-doença, o qual apresenta importante componente social e comportamental e está fortemente associado às práticas alimentares. Nesse contexto mais amplo, a prevenção da cárie não passa exclusivamente pelo esforço de educação em saúde para redução do consumo de açúcar no âmbito individual (embora ele seja importante), mas também pela modificação das condições sociais, econômicas, políticas e culturais que acabam por influenciar as escolhas e práticas alimentares inadequadas" – Fabian Calixto Fraiz.

Biologicamente, o ser humano é preparado para preferir o sabor doce. Essa preferência foi importante para a evolução humana, pois favoreceu o aleitamento materno no recém-nascido e o consumo posterior de frutas. Ao mesmo tempo, a rejeição ao sabor amargo - que na natureza normalmente está associado à toxicidade -, existia como um fator de proteção. Entretanto, com o processo de industrialização e mais recentemente com a globalização, a oferta de açúcares livres (principalmente a sacarose) atingiu um patamar assustadoramente grande.

O professor titular de Odontopediatria da Universidade Federal do Paraná (UFPR), líder dos grupos de pesquisas CNPq/ UFPR sobre "Supervisão de saúde bucal durante a infância e a adolescência" e "Alimentação e saúde bucal", Fabian Calixto Fraiz, comenta que "para que esse movimento de globalização e consequente 'padronização alimentar mundial' tenha sucesso, as grandes corporações sabem que é imprescindível oferecer alimentos que sejam aceitos por todos os povos, independentemente de seus hábitos e costumes. Nesse processo, os alimentos doces assumem um papel central. Se no passado o consumo de doces durante a infância estava associado a produtos de âmbito regional e fabricação familiar, os quais eram carregados de significado cultural, hoje as crianças têm à sua disposição um universo de alimentos doces de fácil acesso, grande apelo visual e nenhum significado cultural. A consequência foi o aumento drástico do consumo e do impacto nas doenças ligadas a essa mudança alimentar, no caso da Odontologia, a cárie dentária".

Há muito tempo, o açúcar é conhecido como um vilão para a saúde bucal. Segundo a odontopediatra, professora doutora associada da disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp), Mariana Minatel Braga, que atua em pesquisas principalmente nas áreas de cárie dentária, saúde bucal, educação, diagnóstico e pesquisa clínica, "os Cirurgiões-Dentistas, de maneira geral, orientam que o açúcar deve ser evitado desde longa data. Contudo, como as evidências científicas são dinâmicas, o que se sabe hoje é diferente do que se conhecia há tempos atrás. Não digo da parte biológica do processo, que açúcar é um dos fatores etiológicos da cárie, mas sim, de quais fatores relacionados ao consumo de açúcar podem estar relacionados a ter ou não ter cárie."

De acordo com o mestre em Saúde Coletiva, doutor em Epidemiologia e professor adjunto do curso de Odontologia da Universidade Luterana do Brasil (graduação e programa de pós-graduação), Carlos Alberto Feldens, mais do que apenas relacionar açúcar e cárie, há evidências científicas fortes que baseiam dois aspectos sobre o consumo de açúcar: 1) A introdução precoce da sacarose na vida do bebê o condiciona para que aceite exclusivamente alimentos doces, perpetuando um "padrão de comportamento" que determina cárie dentária na crianinfância e que possivelmente vai influenciar na ocorrência de cárie na dentição permanente. Além disso, há evidências de que o consumo de açúcar no primeiro ano de vida influencia o estabelecimento de bactérias cariogênicas, aumentando também o risco de cárie na infância; 2) Alta frequência de ingestão de alimentos açucarados, independentemente da idade, é fator que mantém um pH ácido na boca, determinando perda mineral constante e a ocorrência de cárie dentária. Pesquisas recentes têm demonstrado um efeito dose-resposta, ou seja, quanto maior o número de vezes por dia que açúcar é consumido, maior o número de lesões de cárie. "Para a implementação destes conhecimentos na clínica é fundamental que a criança tenha acesso ao Cirurgião-Dentista já no primeiro ano de vida, antes que um padrão de alto consumo de açúcar esteja estabelecido. O profissional também deve estar não só familiarizado com estes conceitos como convencido de que faz parte de seu trabalho discutir tais questões com os pacientes e seus responsáveis. É importante destacar que uma prática clínica exclusivamente restauradora, sem o que chamamos de 'controle da doença' está fadada ao insucesso, uma vez que os procedimentos terão que ser refeitos em um menor prazo, gerando insatisfação dos pacientes e frustração profissional", salienta.

Mariana acrescenta que "conduzindo sua orientação da dieta baseada em evidências, o clínico tem mais segurança no que faz e, em longo prazo, terá também maiores benefícios para os pacientes. O mesmo vale se pensarmos em ações coletivas (não em âmbito clínico), com impacto na população e não em nível individual."

Ainda em relação às novas orientações baseada em evidências, Fabian reforça que, no entanto, uma das maiores dificuldades na orientação do núcleo familiar com relação ao controle da ingestão de açúcar está exatamente na pressão externa promovida pela mídia e pelas grandes empresas alimentícias. "Promover uma alimentação saudável em uma sociedade que tem ampla oferta de produtos prejudiciais com forte apelo comercial é um grande desafio. Sua superação vai exigir de todos, inclusive da categoria odontológica, uma postura crítica e criativa", enfatiza.

Novas orientações sobre o consumo de açúcar devem pautar políticas públicas de saúde

Em março de 2015, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disponibilizou um Guideline (diretrizes de conduta) para nortear o consumo de açúcar por adultos e crianças. A recomendação é a restrição do consumo de açúcar extrínseco (ou açúcar livre), para menos de 10%, a fim de reduzir o risco de sobrepeso, de obesidade e também de cárie dentária. O documento diz que se a diminuição for para menos de 5%, aproximadamente 25 gramas ou seis colheres de chá por dia, o ganho para a saúde é maior. A OMS ainda considera que, os efeitos negativos da doença cárie à saúde são cumulativos (desde a infância à fase adulta), mesmo uma pequena redução no risco de cárie na infância é significativo para a vida futura, assim, o consumo de açúcares livres deve ser tão baixo quanto possível.

De acordo com a nutricionista, mestre na área de Nutrição e Pediatria pela Unifesp - EPM, Valéria Paschoal, que é coordenadora científica e docente convidada dos cursos de Nutrição Clínica Funcional e Nutrição Esportiva Funcional da Universidade Cruzeiro do Sul, diretora da VP Consultoria Nutricional, coordenadora da comissão científica do Instituto Brasileiro de Nutrição Funcional (IBNF) e membro do The Institute for Functional Medicine – USA, o açúcar é adicionado em preparações e em produtos industrializados, principalmente com a finalidade de agregar sabor, "e cada vez mais, notamos a necessidade de aumentar a quantidade deste alimento nos produtos, para suprir as necessidades sensoriais da população. Já são muito bem esclarecidos, por meio de embasamento científico, os malefícios do consumo excessivo de açúcar em todas as idades. Este aumento no consumo de açúcar acompanha o aumento da prevalência de doenças graves que geram impacto negativo no nosso sistema de saúde e economia. Portanto, este Guideline é extremamente importante para esclarecer os possíveis prejuízos deste consumo excessivo, bem como orientar o consumo adequado", destaca.

Na opinião do mestre e doutor em Saúde Pública em Odontologia na University College London, professor de Saúde Pública em Odontologia e chefe do Departamento de Epidemiologia e Saúde Pública da mesma instituição, Richard Watt, o Guideline 2015 da OMS sobre consumo de açúcar por adultos e crianças é um documento muito importante para o Brasil e mesmo globalmente. "O documento tem sido baseado em duas revisões sistemáticas bem detalhadas sobre a evidência dos açúcares tanto na saúde oral como na saúde geral. Recomendar que o consumo de açúcares adicionados às comidas e bebidas e aqueles contidos no suco de fruta, mel e frutas secas não devem exceder 5% do total de consumo diário de energia tanto em adultos como em crianças é uma meta bem exigente já que, atualmente, na maioria dos países o consumo de açúcar é consideravelmente maior que 5% da energia total. No Reino Unido, por exemplo, a ingestão de açúcar livre contribui com 12% a 17% da energia total, sendo 2 a 3 vezes maior que a recomendação da OMS. E esse açúcar é altamente consumido entre crianças e jovens por meio os refrigerantes, balas, biscoitos e cereais de café da manhã. Essa é uma importante questão de saúde pública já que o consumo é ainda mais alto entre os grupos mais pobres e menos educados, contribuindo para as desigualdades em saúde. A redução na quantidade de açúcares livre teria um grande e profundo impacto tanto na saúde oral como na saúde geral."

Com a recomendação da OMS de redução no consumo de açúcar é esperado que os governos adotem políticas especificas para atingir esse objetivo. "A OMS apresenta diretrizes gerais, no entanto, sua implantação deve respeitar o contexto socioeconômico e cultural de cada pais ou, como no caso do Brasil, de cada região. A OMS ainda sugere que sejam investidos esforços na rotulagem dos alimentos, conscientização dos consumidores, na regulamentação e comercialização dos alimentos e nas políticas fiscais. No Brasil, um importante passo nesse sentido foi dado na década de 90, quando as Normas Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes, a qual abrange os leites, complementos alimentares, mamadeiras, bicos, chupetas e copos com bico foram publicadas", lembra Fabian.

No Brasil, estudos mostram o consumo médio de açucares livre em torno de 10% a 15% da energia total em adultos jovens. Outros trabalhos mostram que os lanches açucarados e balas podem acrescer cerca de 10% nesse percentual em crianças. "O Guideline da OMS é baseado em estudos de altíssima qualidade e, portanto suas orientações são confiáveis cientificamente. Além disso, este guia chama atenção sobre a cárie dentária (valorizando fortemente a saúde bucal) por ser uma doença de forte impacto nas pessoas e que está associada, junto com outras doenças não comunicáveis como diabetes e doenças cardiovasculares, ao consumo de açúcar. O impacto do guia na saúde bucal e geral depende 'se' e 'como' ele será aplicado na prática. As orientações objetivas que o documento fornece, se implementadas na forma de políticas públicas, podem reduzir um fator de risco comum (o alto consumo de açúcar) a diferentes agravos, com potencial de diminuir a ocorrência de cárie dentária em crianças e adultos. Além disso, a médio e em longo prazo, as outras doenças ou condições associadas também terão redução significativa. É importante salientar, entretanto, que o guia enfatiza apenas a quantidade de açúcar consumido, o que é só 'parte' da orientação a ser dada por profissionais da saúde bucal. Dois aspectos não contemplados no documento – e que estão fortemente associados à cárie dentária – e, por isso, devem ser agregados ao corpo de orientações, são: não introduzir açúcar antes dos dois anos de idade e controlar a frequência (número de vezes por dia) de consumo de açúcar", considera Feldens.

Também concordando que o Guideline é uma iniciativa importante, "pois tem o potencial de abranger uma gama grande da população", e reforçando que se trata de um guia para saúde em geral "e a cárie dentária está ali reconhecida, mostrando o impacto que a mesma tem na qualidade de vida das pessoas", Mariana ainda discerne sobre o fato de não ser um documento voltado apenas para as crianças, mas sim para a população em geral, incluindo adultos. "Cabe, então, a luz das evidências, fazer alguns apartes importantes, como sobre evitar a introdução precoce do açúcar na dieta da criança como mencionado acima. Talvez essa seja uma das mais fortes evidências que se tenha para controle de cárie dentária em crianças em relação ao consumo de açúcares. Isso é contemplado, por exemplo, na Caderneta da Criança, produzida pelo Ministério da Saúde Brasileiro, com recomendações básicas para os primeiros anos de vida. Atualmente ouve-se muito falar sobre que os 1000 primeiros dias da criança podem ser decisivos para o desenvolvimento de algumas alterações sistêmicas importantes como a obesidade. Isso também é válido para o açúcar e deve ser considerado além da quantidade de açúcar consumida em si (obviamente, quando ele passar a ser consumido). Acredito que, em longo prazo, esse guia tende a suscitar uma série de medidas, não apenas individuais, mas sociais e coletivas, que tendam a modificar o padrão de consumo do açúcar no mundo inteiro. Certamente, isso é um desafio para o Brasil que, historicamente, tem um padrão alimentar bastante adocicado, já que açúcar aqui sempre foi muito barato e de fácil acesso (diferentemente de muitos locais no mundo). Assim, espero que, a exemplo do tabaco, para o qual a OMS fez um guia semelhante, se consiga mudar a visão sobre o produto e que seu uso racional seja francamente estimulado".

Perigos do consumo do açúcar são maiores do que se imagina e precisam ser amplamente divulgados

A nutricionista esclarece que, além do diabetes, o consumo excessivo de açúcar é relacionado com o aumento da infância prevalência de outras doenças crônicas como a obesidade, doenças cardiovasculares, câncer e doenças neurodegenerativas. "Muitas pesquisas justificam esta situação com alguns mecanismos fisiológicos. O excesso de açúcar, por exemplo, estimula a síntese de ácidos graxos – por meio da lipogênese – que poderão ser armazenados no tecido adiposo. A lipogênese excessiva, por sua vez, pode estimular a diferenciação de adipócitos, predispondo o ganho de peso. Os adipócitos são gatilhos para infiltração de células imunológicas – como os macrófagos - que geram respostas inflamatórias por induzirem a expressão gênica de citocinas - como IL6 (Interleucina 6), NFkB (Fator Nuclear Kappa B) e TNF-alfa (Fator de Necrose Tumoral) - que interferem nas funções de todos os nossos órgãos. Esta inflamação sistêmica aumenta o risco de algumas doenças. No sistema cardiovascular, as citocinas inflamatórias interagem com o tecido endotelial, prejudicando a homeostase pressórica. Além disso, o aumento da inflamação pode gerar lesões no tecido endotelial, que em associação ao aumento da oxidação de lipoproteínas de baixa densidade (LDL), aumenta o risco de doença aterosclerótica, e em situações mais graves, infarto agudo do miocárdio ou outras doenças vasculares – como trombose e acidente vascular encefálico (AVE). Em nível hepático, estas citocinas pró-inflamatórias podem desencadear distúrbios metabólicos, como esteatose hepática. Ainda, alguns estudos sugerem que a inflamação seja um gatilho relevante para o desenvolvimento de doenças tireoidianas, como hipotireoidismo e doenças autoimunes da tireoide. O câncer é outra patologia que pode ser desencadeada com o consumo excessivo de açúcar. Alguns estudos supõem que o aumento nos níveis glicídicos e, em sequência, aumento nos níveis de insulina e IGF-1(Fator de Crescimento Similar a Insulina Tipo 1) – devido ao consumo constante de açúcar - inibem a apoptose e estimulam a proliferação de células cancerosas. O consumo de açúcar também é associado ao aumento de lesões de cárie, como é amplamente conhecido pela comunidade científica. Para explicar esta relação, o consumo exagerado de alimentos açucarados desequilibra o sistema ácido-base e torna o ambiente bucal mais propício ao crescimento bacteriano e evolução da doença cárie. Este desequilíbrio no pH pode, ainda, ser refletido em outros sistemas, elevando o risco de doenças como câncer e outras condições inflamatórias", detalha Valéria.

O professor de Saúde Pública em Odontologia da University College London também afirma que estudos epidemiológicos de alta qualidade têm mostrado o papel importante dos açúcares livres no desenvolvimento tanto de cárie como sobrepeso/obesidade. "Evidências robustas existem agora para papel do açúcar livre no desenvolvimento de sobrepeso e obesidade e associando-os a condições metabólicas como diabetes. Obesidade e diabetes são os maiores e crescentes problemas de saúde no mundo, inclusive no Brasil. Essas condições crônicas têm um impacto significante na qualidade de vida das pessoas e maior causa de mortalidade precoce. Há, então, uma necessidade urgente de reduzir açúcares livres.Uma combinação de estratégias de saúde pública e intervenções clínicas são necessárias para resolver esse problema. As estratégias chave de saúde pública incluem: 1) Regulação da propaganda de produtos açucarados e bebidas especialmente para crianças jovens; 2) Reformulação dos alimentos processados para reduzir os níveis de açúcares livres; 3) Estabelecimento de políticas de impostos/taxas para reduzir os custos de comidas e bebidas saudáveis, além de aumentar os custos de itens com altos níveis de açúcar; 4) Aumento da disponibilidade e apelo de opções de bebidas e comidas saudáveis como, por exemplo, frutas frescas, água e leite. Neste contexto, Cirurgiões-Dentistas e outros profissionais de saúde também têm um importante papel em ajudar os pacientes a reduzir o consumo de açúcar. A equipe odontológica precisa ser treinada para prover aconselhamento de dieta baseado em evidência e requer recursos apropriados para isso", argumenta Richard Watt.

Ainda pensando na melhor orientação para a população de forma geral sobre o consumo de açúcar, o professor adjunto do curso de Odontologia da Universidade Luterana do Brasil diz que há indicações de que a medida mais efetiva "é a seguinte orientação, tanto em nível coletivo quanto individual: 'açúcar: não antes dos dois anos'! Se aplicada, tem o potencial de reduzir desfechos muito importantes na infância como sobrepeso, obesidade, cárie dentária e possivelmente anemia. É importante destacar que esta orientação tem os requisitos necessários para ser efetiva: é simples, é possível colocar em prática e não representa custo adicional para as famílias. Faz parte deste conceito compreender que o açúcar dá prazer e é inevitável, mas sua utilização pode ser transferida para os dois anos em diante, na hora da sobremesa. Por fim, importante destacar que tais orientações devem ser agregadas às orientações já demonstradas como muito efetivas no controle de cárie dentária na infância, com ênfase para a utilização de dentifrício fluoretado com pelo menos 1.000 ppm de fluoreto a partir da erupção do primeiro dente", ensina Carlos Alberto Feldens.

Como odontopediatra, Mariana Braga também concorda com a orientação às mães para a introdução tardia do açúcar. "O estímulo ao aleitamento materno certamente tende a ajudar nessa condição. Por outro lado, sabemos que, em alguns casos, não é possível amamentar exclusivamente até os seis meses. Nesses casos, a introdução dos alimentos deveria ser feita sem adição de açúcares "extra", estimulando os alimentos saudáveis. A orientação de não consumir açúcar até os 2 anos é baseada em evidência científica e pode ser seguida para que se previna cárie e, mais importante ainda, se tende a ganhar em vários outros aspectos de saúde geral. Fugir do que contenha açúcar não é uma tarefa fácil. Por isso, é importante orientar as mães que, sempre que possível, prefiram alimentos não processados e observem os rótulos de alimentos para evitar o consumo involuntário. Para crianças até 2 anos, escolher os alimentos é uma tarefa mais ligada aos pais e, por isso, seguir essa recomendação é mais fácil de ser implementada. Além disso, essa criança não foi exposta ao sabor do açúcar em si e conhece apenas aquilo que lhe é oferecido. Alguns advogam que isso mudaria a preferência da criança. Não sei dizer se é exatamente isso, mas, com certeza, estabelece hábitos mais saudáveis, que devem e podem ser estimulados pelos pais. Em crianças mais velhas, é mesmo difícil banir o açúcar da alimentação. Essas crianças já frequentam escolas e outros ambientes sociais, nos quais o açúcar geralmente está disponível. Desde que o consumo seja racional e se controle a frequência, acredito que não haverá problemas, se essa criança usar dentifrício fluoretado (independentemente de qualquer outro fator social e/ou contextual). Reduzir balas e outros doces de ingestão frequente pode contribuir com a ingestão demasiada de açúcares livres, conforme recomenda a OMS, além de reduzir a frequência de ingestão de açúcares. Assim, para crianças maiores, a sobremesa (ou consumo em dias específicos) pode ser uma forma factível de se controlar o consumo de açúcar a fim de evitar cárie, sem que o açúcar seja eliminado da vida dessas crianças. A tendência é que isso se torne mais fácil se crianças e os núcleos familiares em que estão inseridas tiverem sido orientados precocemente sobre os riscos do açúcar e tiverem instituídos, dentro dos núcleos, hábitos saudáveis. Outro desafio são as escolas que, muitas vezes, são os locais onde essas crianças fazem as refeições. Hoje em dia, diante do apelo da questão de sobrepeso e da obesidade em crianças, muitas escolas têm reformulado cardápios e utilizado o slogan de 'Escola Saudável'. Isso certamente contribui para hábitos alimentares saudáveis. É, no entanto, ainda importante trabalhar nesses contextos para orientações dos profissionais, a fim de também difundirem informações adequadas e baseadas em evidência sobre o assunto. Em linhas gerais, hábitos saudáveis de consumo do açúcar, embora não sozinhos (já que outros fatores são importantes e a cárie é multifatorial), podem ajudar a prevenir cárie em qualquer idade. Hábitos precocemente instalados são mais fáceis de serem mantidos para a vida. Por outro lado, quanto mais velho for o hábito, mais difícil de mudá-lo", reitera Mariana.

Desafios e estratégias na construção de uma prática alimentar saudável

De acordo com Valéria Paschoal, mesmo com a ampla divulgação sobre os malefícios do açúcar, há muita dificuldade em realizar a redução no consumo, que muitas vezes é justificada pelo estresse em que a pessoa vive rotineiramente, que induz a procura por alimentos mais palatáveis como um conforto temporário. Assim, é importante avaliar os fatores que estão por trás deste consumo inadequado para melhor direcionamento da conduta.

Questionada como realiza as orientações de dieta em termos individuais e coletivos, na sua prática clínica, a nutricionista conta que, primeiramente, é importante reduzir o consumo de açúcar refinado, que usualmente é acrescentado em bebidas e em preparações doces. "Como alternativa, a adição de frutas doces – como banana nanica, manga e mamão – pode contribuir para o sabor adocicado da preparação. A adição de canela também é uma opção eficaz para ressaltar o sabor doce das preparações e, ainda, auxilia na modulação dos níveis de insulina. Em casos de compulsão por doce, é necessário avaliar deficiências nutricionais e sintomas envolvidos. Como exemplo, alguns estudos sugerem que a deficiência de cromo pode desencadear episódios de compulsão por doces, visto que atua na homeostase da insulina e consequentemente, nos níveis glicídicos. O cromo pode ser ofertado, principalmente, através de grãos e cereais integrais. De forma central, é importante o consumo de nutrientes que atuem no equilíbrio de serotonina – neurotransmissor envolvido no controle da compulsão alimentar – como magnésio, niacina (vitamina B3), piridoxina (vitamina B6), ácido fólico (vitamina B9), presentes em alimentos integrais e vegetais folhosos. As oleaginosas também contribuem para a manutenção dos níveis de serotonina, por serem fontes de magnésio. Além disso, são fontes de selênio e ácidos graxos insaturados - como ômega 9 - que são imprescindíveis para a redução da inflamação e estresse oxidativo. O aminoácido triptofano é precursor deste neurotransmissor, sendo igualmente essencial para o seu equilíbrio, e pode ser encontrado em alimentos como grão de bico, banana, cacau, quinoa e amaranto. É importante ressaltar que as orientações nutricionais devem ser realizadas de acordo com a condição clínica do paciente, acompanhada de exames bioquímicos e sintomas relatados e observados durante a consulta. Por meio destes critérios, é possível determinar as melhores opções para a restrição/substituição do açúcar por outros alimentos adequados e que consigam suprir as necessidades do paciente. No coletivo, é importante demonstrar os efeitos prejudiciais deste consumo excessivo, bem como os benefícios em ter este consumo reduzido, aliado a uma alimentação saudável como um todo", orienta Valéria.

O professor titular de Odontopediatria da UFPR, Fabian Calixto, salienta que a Odontologia deve participar e colaborar com os movimentos de conscientização e de viabilização das condições estruturais para que as famílias adotem práticas alimentares saudáveis, o que inclui o consumo cada vez menor e mais tardio de açúcar adicionado (a nível domiciliar ou industrial). "A partir de ações transdisciplinares, a modificação das práticas alimentares para a adoção de hábitos mais saudáveis tornam-se mais prováveis e certamente, mais duráveis, podendo, além de apresentar efeitos imediatos, alcançar as gerações futuras. Em outras palavras, não podemos, enquanto área do conhecimento, criar orientações próprias desconectadas das outras áreas, mas sim assumir um discurso integrado e integrador. Devemos ter cuidado para não termos uma visão simplista e atribuindo a um único fator a posição de vilão, porque quando se pensa em comportamentos em saúde, é mais improvável que modificações positivas ocorram quando focarmos somente em um aspecto, seja o açúcar, o tabaco ou qualquer outro fator. O processo de educação em saúde deve ser mais amplo e visar a construção de posturas de vida cada vez mais associadas à saúde, seja a redução do consumo do açúcar ou do uso do tabaco. Como já disse, é improdutivo tentar ranquear qual comportamento inadequado para a saúde é pior. Por que nesse caso voltaríamos aquele pensamento linear de causa e efeito. Uma visão positivista da doença que acaba por impedir que ações mais amplas e de maior impacto sejam adotadas. Temos exemplos na Odontologia (e nas outras áreas da saúde) de erros cometidos nas orientações, porque estávamos desvinculados de uma abordagem mais integral, e indicávamos o que era condenado por outra área da saúde. As contradições das diversas áreas do conhecimento devem ser superadas para a construção de discurso que seja mais claro e objetivo e, portanto mais factível".

Na prática clínica, ainda conforme Fabian, a ideia de construção de postura de vida associada à saúde deve procurar despertar na família a preocupação de criar filhos saudáveis permitindo que esta se organize para que ao longo dos anos e das décadas, encontre soluções adequadas a sua realidade. "As estratégias devem ser estabelecidas com a família e devem caracterizar-se como um processo dinâmico de crescente autoconhecimento e percepção dos fatores associados à qualidade de vida. Pretende-se que os indivíduos e suas famílias adquiram autonomia e consciência para adotar uma postura de vida saudável, mas também para lutar pelas condições estruturais para sua execução. É claro que o esforço realizado na prática clínica pelo Cirurgião-Dentista encontrará maior impacto se a sociedade também estiver caminhando na mesma direção, por isso são importantes as diretrizes, as ações governamentais, a regulamentação da propaganda, a vigilância em saúde, o envolvimento das entidades de classe, das instituições de ensino, etc. Sabemos que na questão dietética, o núcleo familiar tem importância fundamental, não só na viabilização do alimento, mas também porque o ambiente positivo de sua oferta é capaz de estimular seu consumo. Os pais influenciam a dieta das crianças de várias maneiras, servindo de exemplo, escolhendo e disponibilizando os alimentos e adotando medidas educativas. Assim, é esperado que em uma família com um alto grau de empoderamento seja mais fácil a modificação de aspectos específicos e que tem grande impacto na saúde bucal; por exemplo, a redução da frequência de consumo de açúcar ou a eliminação do uso de mamadeira. Por fim, na orientação alimentar voltada para a prevenção das doenças bucais, inclusive a cárie, devemos proporcionar a família as informações básicas, para o desenvolvimento de habilidades e atitudes para a adoção de uma prática alimentar saudável. No entanto, para romper a força dos costumes e crenças, a família depende não só do conhecimento, mas também do apoio profissional para superar suas contradições e duvidas. Compreender estes aspectos permite que novas estratégias sejam estabelecidas", finaliza Fabian.

 

Por Swellyn França