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Revista Brasileira de Odontologia
versão On-line ISSN 1984-3747versão impressa ISSN 0034-7272
Rev. Bras. Odontol. vol.70 no.2 Rio de Janeiro Jul./Dez. 2013
MATÉRIA DE CAPA
Os rumos da Odontologia do esporte no Brasil
Cíntia de Assis
Um importante segmento da Odontologia associado ao esporte tem se firmado ao longo dos anos no Brasil. Pesquisas científicas, comprovações clínicas e estatísticas norteiam a evolução deste setor, que ainda não é uma especialidade odontológica reconhecida pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO). A American Academy for Sports Dentistry, fundada em 1983, é uma referência relevante para o progresso da Odontologia do Esporte no mundo, pois promove o avanço da pesquisa, desenvolvimento e educação nesta área.
Várias áreas do conhecimento já se renderam ao esporte. Medicina do Esporte, Fisiologia do Esporte e do Exercício, Fisioterapia do Esporte e Psicologia do Esporte já estão difundidas e se fazem necessárias para o desenvolvimento de atletas de ponta. Em 2013, foi fundada a Academia Brasileira de Odontologia do Esporte (Abroe), que tem por finalidade promover, com intenções científicas, acadêmicas, políticas e sociais, a Odontologia do Esporte. Atualmente, a Abroe tem representantes em quase todos os estados do Brasil e seu foco inicial é comprovar cientificamente que o atleta de alto rendimento necessita de um suporte odontológico específico.
De acordo com Dr. Gustavo Ferreira, coordenador do departamento odontológico do Botafogo de Futebol e Regatas (BFR), membro da American Academy for Sports Dentistry e presidente da Comissão de Odontologia do Esporte do Conselho Regional de Odontologia do Rio de Janeiro (CRO-RJ), não se pode mais considerar que um atleta de alto rendimento tenha um suporte odontológico convencional. “Em todas as outras áreas, que circundam e cuidam da saúde do atleta, existem especialidades específicas voltadas para o esporte, como a Medicina do Esporte, Psicologia do Esporte, Fisioterapia esportiva, Nutrição esportiva, entre outros, e a Odontologia não pode ficar fora deste contexto. Por isso, precisamos informar e esclarecer quais as especificidades, limitações e importância de um suporte odontológico realizado por um dentista do esporte”, fala o presidente da Abroe, Dr. Ferreira.
A Odontologia do Esporte cresce e se solidifica a cada dia, mas ainda poucos clubes possuem departamentos odontológicos exclusivos e integrados aos departamentos de saúde dos clubes de futebol. O departamento odontológico do Botafogo de Futebol e Regatas está na vanguarda e atualmente é referência nacional na sua atuação.
O Departamento Odontológico do Botafogo FR, que se localiza no Estádio Olímpico João Havelange/RJ (Engenhão), foi inaugurado em 2010 e oferece suporte odontológico especializado em Odontologia do Esporte aos atletas de todas as modalidades do clube: futebol profissional, futebol de base (pré-mirim, mirim, infantil, juvenil, juniores e sub- 23), natação, polo aquático, vôlei, basquete, futsal, fut7society e remo. “A atuação do departamento odontológico é mais intensa no futebol profissional, onde estamos inseridos no departamento médico do clube. Semanalmente, participamos de uma reunião do futebol profissional, onde a Medicina, Fisiologia, Fisioterapia, preparação física, Psicologia, Nutrição e a Odontologia discutem as necessidades de cada atleta individualmente, fazendo com que a interdisciplinaridade seja praticada”, explica Dr. Ferreira.
O trabalho desenvolvido pelo Botafogo FR começa na pré-temporada do futebol, onde são feitas palestras interativas com os atletas para a conscientização da importância de um dentista especializado em Odontologia do Esporte para a promoção de saúde bucal, benefícios da utilização do protetor bucal e malefícios de uma condição bucal inadequada. “São realizadas também, na pré-temporada, avaliações clínicas e radiográficas em todos os atletas e priorizam-se os casos de infecções bucais para que desta forma se tenha uma melhor recuperação das lesões e desempenho físico. Atualmente, todos os atletas do futebol profissional do Botafogo FR estão com sua saúde bucal em dia”, avalia Dr. Ferreira.
Os dentistas do Botafogo FR atuam também nos dias de jogos do clube, através de escala, para que os casos de traumatismos faciais e dentários sejam tratados imediatamente após o trauma. A equipe que compõe o departamento odontológico do Botafogo FR é formada pelos cirurgiões-dentistas Gustavo Ferreira, Leandro Freitas, Leandro Fernandes, Luis Daniel Yavich, Carol Rafael, Roberto Prado, e pela técnica de saúde bucal, Danielle Rodrigues.
Um trabalho muito interessante é feito com os atletas do Corinthians de MMA, do inglês mixed martial arts, onde o Dr. Alexandre Barberini é o coordenador do departamento de Odontologia do Esporte. Além dos protetores bucais individualizados, todos os atletas têm um atendimento odontológico especializado.
Protocolo de atendimento
O Atlético Mineiro é outro clube de futebol que possui um departamento odontológico, que também é referência nacional. No Centro de Treinamento (CT) da Cidade do Galo é realizado o atendimento diário de atletas de todas as categorias do futebol masculino. O departamento odontológico está equipado com um consultório completo, com cadeira e equipo, equipamento para raios X digital, motor de implante e duas máquinas para confecção de protetor bucal.
Segundo o Dr. Marcelo Faria Lasmar, doutorando em Bioengenharia pela Escola de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador do departamento odontológico do Clube Atlético Mineiro e membro da International Association for Dental Research, o protocolo de atendimento dos atletas é composto de um programa preventivo que, num primeiro momento, conta com palestras de conscientização que abordam diversos temas, entre eles: técnicas de higienização oral, relação dieta X cárie, traumatismos, doping, uso de energéticos e isotônicos e desgaste dentário. “Posteriormente, os atletas são encaminhados ao consultório para profilaxia, fluorterapia e controle de placa bacteriana. Numa segunda fase, são realizados exames clínicos e radiografias da boca inteira para o diagnóstico de focos dentários, lesões cariosas, doenças periodontais, maloclusões, respiração bucal e hábitos viciosos. Na terceira fase, são executados os tratamentos endodônticos e periodontais, para a eliminação da dor e dos focos dentários, bem como os tratamentos restauradores, ortodônticos e de desordens temporomandibulares. Na fase final, é realizada a manutenção, através do controle de placa e das restaurações e do acompanhamento dos tratamentos endodônticos e ortodônticos, além da confecção de radiografias de controle”, descreve Dr. Lasmar. “O protocolo de atendimento dispõe, ainda, de um programa de emergência, com uma escala de plantão entre os dentistas, cujo objetivo é eliminar dores agudas e solucionar problemas de origem traumática e de ordem estética”, acrescenta. Os dentistas Marcelo Lasmar, Renato Linhares e João Bosco fazem parte da equipe do Atlético Mineiro.
Em 1997, o Clube Atlético Mineiro implantou o departamento odontológico, que viabilizou a criação de uma equipe multidisciplinar no CT. “No início, a receptividade dos atletas era muito baixa e havia uma grande desconfiança em relação ao nosso trabalho devido à mudança de filosofia. Nos dias atuais, principalmente em razão do trabalho realizado com as categorias de base e do apoio da comissão técnica do clube, temos total confiança por parte dos atletas”, fala Dr. Lasmar. “No Brasil, ainda é reduzido o número de clubes de futebol que possuem um departamento odontológico próprio, por isso há certa resistência de alguns atletas vindos de outras equipes. É imprescindível que os clubes comecem o oferecer exames preventivos, palestras e tratamentos odontológicos para as categorias de base e profissional, a fim de conscientizarem os atletas da importância do acompanhamento odontológico”, acrescenta o CD.
Problemas odontológicos x desempenho do atleta
Presença de focos infecciosos, perda dentária ou maloclusões severas, erosão causada por uso indiscriminado de isotônicos, respiração bucal, halitose, desordens temporomandibulares e traumatismo dentário são problemas que prejudicam o desempenho de atleta. De acordo com Dr. Marcelo Lasmar, um dos principais fatores que podem influenciar na recuperação de lesões musculares e cirurgias ortopédicas é a presença de focos infecciosos, de origem periodontal ou endodôntico, que dificulta a cicatrização tecidual.
“A perda dentária ou maloclusões severas, além de acarretarem problemas de ordem estética, estão relacionadas ao mau aproveitamento alimentar e à deficiência na absorção dos nutrientes. Já o uso de isotônicos pode provocar erosão e abfração dentária, o que acaba interferindo na nutrição, uma vez que o atleta passa a evitar alimentos mais ácidos, quentes e frios. A síndrome do respirador bucal, que deve ser corrigida precocemente na infância ou no início da adolescência, está diretamente relacionada à perda do rendimento físico, já que pode causar sonolência, halitose, menor aproveitamento do oxigênio e dores na musculatura cervical”, esclarece Dr. Lasmar.
Ainda para Dr. Lasmar, a halitose pode interferir no convívio entre os atletas de esportes coletivos, sendo que as causas mais frequentes de mau hálito são bucais e metabólicas e estão relacionadas à desidratação, ao estresse e ao alto consumo energético. “Já as desordens temporomandibulares podem causar dores articulares, de cabeça e musculares, além de estarem relacionadas à postura incorreta. Cada vez mais frequente, o traumatismo dentário, que pode até provocar o afastamento do atleta das competições, é outro problema presente nos esportes passíveis de contato, sendo de extrema importância a conscientização do uso do protetor bucal”, acrescenta. “O profissional que trabalha com esporte de alta performance tem que estar atento aos medicamentos que são proibidos pela agência mundial antidoping, pois entre os listados alguns, como os anti-inflamatórios (glicocorticoides orais), são de uso rotineiro do cirurgião-dentista”, destaca Dr. Lasmar.
Se um processo infeccioso desequilibra a homeostase do organismo, o que, então, acontece com um atleta de alta perfomance, que depende do seu corpo para realizar suas atividades, sabendo que qualquer desequilíbrio pode resultar em uma queda de rendimento. De acordo com Dr. Eli Luis Namba, doutor em Odontologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), especialista em Medicina e Ciências do Esporte pela Universidade Positivo e vice-presidente da Abroe, a Odontologia do Esporte trabalha com duas hipóteses. “A hipótese que o foco de infecção, por um processo de bacteremia, pode alojar as bactérias nas grandes articulações do nosso organismo e desta forma aumentar a incidência de lesões articulares. A outra, que inclusive faz parte da linha de pesquisa da Academia Brasileira de Odontologia do Esporte (Abroe), ressalta que a presença de um foco de infecção bucal pode atrapalhar o reparo de uma lesão muscular. Esta linha de pesquisa, que envolve o reparo muscular, foi tema de minha dissertação de mestrado e tese de doutorado”, observa Dr. Namba.
Integrantes da comissão científica da Abroe, os Drs. Marcelo Ekmann e Bárbara Capitanio encontraram resultados promissores para a Odontologia do Esporte em suas pesquisas, demonstrando, em modelo animal, que a doença periodontal pode interferir e dificultar a hipertrofia muscular. Assim, mesmo com um trabalho de fortalecimento e fisioterapia, após a lesão, a musculatura não apresenta uma arquitetura tecidual adequada para suportar grandes cargas durante exercícios de explosão muscular.
Para Dr. Namba, talvez por conta da interferência de um processo inflamatório, como é o caso da doença periodontal, que vários atletas apresentam recidivas de lesões nas musculaturas tratadas e que impedem o retorno dos mesmos ou acabam agravando ainda mais a área lesionada. “A demora da recuperação traz problemas para as entidades esportivas que vão além da fisiologia, pois o atleta parado gera uma perda de recursos financeiros muito grandes. Em esportes coletivos a ausência de um atleta pode ser resolvida com a presença de outro atleta com qualidades diferentes e, às vezes, até inferior. Nos esportes individuais não existe esta reposição e o trabalho de uma vida pode se perder por uma deficiência de uma recuperação muscular, que pode ter sido prejudicada por um foco de infecção bucal. Atletas olímpicos passam por uma preparação de quatro anos para disputar, em muitos casos, apenas uma prova, que, dependendo da modalidade, pode durar menos de 15 segundos. As lesões, apesar de fazerem parte da vida dos atletas, atrapalham a função muscular e também podem abalar o psicológico”, comenta Dr. Namba.
O estudo da Medicina Periodontal para a Odontologia do Esporte é fundamental. “Imagine que alguns problemas genéticos podem ocasionar distúrbios cardíacos, associe esses distúrbios aos atletas onde o motor, neste caso o coração, apresenta algum problema e acrescente a esta situação a doença periodontal, onde cientificamente podemos comprovar que uma simples escovação é capaz de gerar uma bacteremia transitória e, consequentemente, agravar o problema cardíaco. Desta forma é indispensável um exame periodontal completo e de controle para atletas de alta performance”, completa Dr. Namba.
Para Dr. Luis Daniel Yavich, especialista em Radiologia e Imaginologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), especialista em DTM e Dor Orofacial pelo CFO e membro da American Academy for Sports Dentistry, os dentes devem ser considerados como a representação do ponto terminal de uma cadeia postural, a forma como os dentes articulam afetam a relação da Articulação Temporomandibular (ATM) dentro da fossa articular, o que por sua vez afeta o osso occipital e a coluna cervical. “Isso automaticamente vai refletir na cadeia postural e, consequentemente, no desempenho do atleta. Condições patológicas da ATM são frequentes e muitas dessas alterações acabam alterando a articulação de uma forma estrutural e funcional”, finaliza Dr. Yavich.
Protetores bucais esportivos
Criados para amortizar as consequências da força de impacto durante os traumas, os protetores bucais são dispositivos intraorais que surgiram para tentar minimizar os traumatismos orofaciais e dentários.
Segundo Eli Luis Namba, doutor em Odontologia pela PUCPR e especialista em Medicina e Ciências do Esporte pela Universidade Positivo, os protetores bucais são cada vez mais procurados por lutadores de diferentes modalidades, porém as pesquisas relacionadas aos protetores vão além do mundo das lutas. “Hoje existe indicação do uso para qualquer tipo de atividade física desde os corredores de rua e triatletas, que realizam Cirurgiões-dentistas do Depto. Odontológico do Botafogo FR Loco Abreu usando protetor bucal (destaque) Dr. Eli Namba e Cris Cyborg (atleta de MMA) apertamentos durante a corrida e sofrem muitos desgastes dentários, até pessoas que fazem musculação nas academias e podem apresentar dores de cabeça pela grande atividade da musculatura facial durante o exercício isométrico”, explica o professor e coautor do livro “Protetores bucais esportivos: tudo que o cirurgião-dentista precisa saber” (893 Editora, 1. ed., 2013, 176 páginas).
Atualmente, a Academia Brasileira de Odontologia do Esporte (Abroe) classifica os protetores em cinco tipos: tipos I e II são os protetores pré-fabricados em tamanhos pré-determinados (aqueles que se ferve e depois morde para se adaptarem ao tamanho da arcada). Os protetores do tipo III, IV e V são confeccionados por empresas especializadas e com acompanhamento do cirurgião-dentista. O protetor do tipo III são protetores simples, o do tipo IV são os multilaminados e os do tipo V são os otimizadores de performance.
Pesquisas demonstraram que em um grupo de golfistas o uso dos protetores melhorou o desempenho destes atletas na velocidade e força das tacadas. “Não é qualquer protetor que pode promover tais melhorias. Os protetores são diferentes, pois realizam funções diferentes nas modalidades para a qual são confeccionados. Deve-se tomar cuidado com o uso dos protetores tipo I e II que são encontrados nas lojas de artigos esportivos. De acordo com as pesquisas científicas, podem prejudicar o rendimento do atleta pela falta de uma boa adaptação”, orienta Dr. Namba, coordenador do curso de Especialização em Odontologia do Esporte da Universidade Positivo.
Para Dr. Namba, existem poucas pesquisas de boa qualidade e com uma metodologia adequada para avaliar os protetores que podem melhorar o desempenho, no caso os protetores do tipo V, mas o desenvolvimento científico busca comprovar esta nova função, através das pesquisas que direcionam esta melhora pela estabilização oclusal. Outro fator importante é o acompanhamento de um profissional habilitado na moldagem, registro interoclusal e, principalmente, dos ajustes do protetor na boca do atleta. “É inadmissível uma empresa entregar um protetor bucal pelo correio diretamente para o atleta. Um contato prematuro posterior pode aumentar a chance de fraturas na cabeça da mandíbula. O simples fato do protetor encaixar na boca não significa que está ajustado da forma correta”, alerta o professor.
O uso de dispositivos intraorais não é uma novidade, mas agora temos muitos estudos que comprovam a sua eficiência. “Foi observado o uso deles, através da história, quando soldados romanos eram instruídos a morder tiras de couro para ter uma força extra nas batalhas e também na guerra civil americana, onde não existia anestesia geral. Durante a guerra, se fosse preciso fazer uma amputação de algum soldado ferido, os mesmos eram instruídos a morder uma bala de revólver para sentir menos dor durante o procedimento. A principal função dos dispositivos intraorais é melhorar a relação de posição da cabeça da mandíbula em relação à fossa articular. Com isso o dispositivo vai atuar como uma espécie de palmilha individualizada, fazendo com que as cadeias musculares funcionem em perfeita harmonia aumentando também as vias aéreas e proporcionando uma melhor oxigenação”, afirma o especialista Dr. Luis Daniel Yavich.
A tecnologia é a grande aliada para confecção desses dispositivos. De acordo com Dr. Yavich, o diagnóstico é fundamental e o uso da bioinstrumentação torna-se uma premissa. “Para encontrar a posição ideal de repouso mandibular são usadas bioinstrumentações como um desprogramador eletrônico mandibular, eletromiografia de superfície, cinesiografia mandibular. Todos esses recursos registram a melhor posição muscular mandibular. Logo após esse registro, um laboratório confecciona o aparelho ou protetor bucal otimizado naquela posição”, conclui Dr. Yavich.