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Arquivos em Odontologia

versão impressa ISSN 1516-0939

Arq. Odontol. vol.46 no.4 Belo Horizonte Out./Dez. 2010

 

O mercado de trabalho odontológico em saúde coletiva: possibilidades e discussões

 

The job market in public health dentistry: possibilities and discussions

 

 

Antonio Carlos PereiraI; Fábio Luiz MialheI; Stela Márcia PereiraII; Marcelo de Castro MeneghimI

IDepartamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), Universidade de Campinas (UNICAMP), Piracicaba, SP, Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação em Odontologia, Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), Universidade de Campinas (UNICAMP), Piracicaba, SP, Brasil

Autor correspondente

 

 


RESUMO

Devido a uma aparente saturação do campo de trabalho privado, principalmente nos grandes centros, o trabalho na área de saúde bucal coletiva no setor público ou privado tem sido um nicho de mercado em plena expansão neste início de século. A partir do exposto, o presente artigo teve como objetivo discutir esses aspectos específicos, abordando as possibilidades para o profissional que se interessar em exercer sua profissão dentro deste campo de saberes e práticas.

Descritores: Odontologia em saúde pública. Mercado de trabalho. Especialidades odontológicas.


ABSTRACT

Due to an apparent saturation in the field of private work, mainly in large urban centers, jobs in the area of public oral health, in either the public or private sectors, has become an expanding market since the beginning of the twenty-first century. In this light, the present article aimed to discuss these specific aspects, investigating the possibilities faced by professionals interested in exercising their profession within this field of knowledge and practices.

Uniterms: Public health dentistry. Job market. Dental specialties.


 

 

INTRODUÇÃO

A política de formação de recursos humanos para a odontologia parece estar levando a uma aparente saturação do campo de trabalho privado, principalmente nos grandes centros. De outra forma, a falta de conexão entre a formação de recursos humanos e a cobertura do sistema de atenção à saúde bucal da população, parece perpetuar a dicotomia existente entre excesso de profissionais e falta de acesso ao tratamento dentário de um grande segmento populacional. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto de Geografia e Estatística1, aproximadamente 30 milhões de brasileiros (16% da população), nunca consultaram o cirurgião-dentista. Considerando as características dos entrevistados, os maiores percentuais correspondem a pessoas do sexo masculino, idosos, não caucasianos, de menor escolaridade, os mais pobres, sem plano de saúde, residentes na região rural e residentes em regiões mais pobres, com menor estrutura e oferta de serviços2. A proporção dos que nunca foram ao cirurgião-dentista foi quase dez vezes maior entre os mais pobres em relação aos mais ricos. Um dado interessante, observado pelo estudo nas áreas com proporção de 1 dentista para mais de 1000 habitantes, foi o fato dos indivíduos apresentarem metade da chance de terem consultado um cirurgião-dentista quando comparado a residentes de áreas com mais de 1 dentista por 1000 habitantes.

No âmbito da prática privada, a profissão odontológica, também passa por transformações contextuais com a expansão dos planos privados e convênios. Essa expansão não é fruto apenas do incentivo ao empreendedorismo, mas também é condicionada por uma estratégia imposta aos profissionais da área odontológica para inserção e permanência no mercado de trabalho, preservando relativa autonomia e facilitando o acesso dos pacientes através do financiamento direto de pelo menos parte do tratamento. Ainda que gerando muita insatisfação devido à baixa remuneração oferecida e aos prazos de pagamento3,4, os pacientes conveniados têm se tornado majoritários em muitos consultórios. Essas transformações são decorrentes da dinâmica incessante da história, a qual sustentou por muito tempo um padrão de Odontologia de Mercado (a Curativa de Massa) que surgiu e floresceu plenamente, inclusive nas suas contradições e esgotou-se5.

Ainda que novas técnicas e materiais estejam transformando muitas especialidades odontológicas em áreas potenciais de empreendedorismo, gerando novos campos de trabalho, somente um número pequeno de cirurgiões-dentistas tem aporte financeiro suficiente para se super-especializar e oferecer tais serviços para uma clientela de alto poder aquisitivo cada vez mais limitada. Desta forma, o trabalho na área de odontologia em Saúde Coletiva no setor público ou privado tem sido então uma opção de escolha bastante importante e em plena expansão neste início de século. A partir do exposto, o presente trabalho teve como objetivo discutir esses aspectos, abordando as possibilidades deste mercado tanto no serviço público como no privado.

Odontologia em Saúde Coletiva

Por muito tempo, o estudo da saúde das coletividades foi conduzido pela saúde pública. A definição mais conhecida para esta área foi expressa por Winslow em 1920, que a definiu como: "Saúde pública é a ciência e a arte da prevenção da doença, prolongamento da vida e a promoção da saúde física e da deficiência através dos esforços comunitários organizados para o saneamento do ambiente, o controle das infecções na comunidade, a educação do indivíduo nos princípios de higiene pessoal, a organização dos serviços médicos e de enfermagem para o diagnóstico precoce e para o tratamento preventivo das doenças, e o desenvolvimento do maquinário social que assegurará, a cada indivíduo na comunidade, um padrão de vida adequado para a manutenção da saúde". Como o estudo da saúde pública visa à atenção a saúde da população, o diagnóstico e planejamento das ações de saúde se dão por meio de conhecimentos da epidemiologia, a qual estuda "a distribuição da morbidade e da mortalidade a fim de traçar o perfil de saúde-doença nas coletividades humanas; realiza testes de eficácia e de inocuidade de vacinas; desenvolve a vigilância epidemiológica; analisa os fatores ambientais e socioeconômicos que possam ter alguma influência na eclosão de doenças e nas condições de saúde"6.

Muitos consideram que Saúde Pública seria o sinônimo de Saúde Coletiva. Embora seus objetos possam ser idênticos, trata-se de campos não homogêneos, na medida em que se referem a diferentes modalidades de discurso, com fundamentos epistemológicos diversos e com origens históricas particulares7.

A saúde pública foi uma das responsáveis pela construção de uma nova estrutura urbana, pela produção de estratégias preventivas. Mas é inegável que seus diferentes discursos se fundam no naturalismo médico, que, invocando cientificidade, legitimou a crescente medicalização do espaço social. A Saúde Coletiva, por sua vez, tem suas bases firmadas por meio da crítica sistemática do universalismo naturalista do saber médico. Seu postulado fundamental afirma que a problemática da saúde é mais abrangente e complexa que a leitura realizada pela medicina. Dentro deste contexto, a noção de Saúde Coletiva representa uma inflexão decisiva para o conceito de saúde. Um de seus efeitos certamente é o de reestruturar o campo da Saúde Pública, pela ênfase que atribui à dimensão histórica e aos valores investidos nos discursos sobre o normal, o anormal, o patológico, a vida e a morte. Outro fator importante é a multidisciplinaridade da Saúde Coletiva, sendo a qual vinculada às relações entre a natureza e a Cultura/sociedade7.

A consolidação da Saúde Coletiva vem sendo construída a partir da década de 1970, resultante de críticas aos movimentos e projetos de reforma em saúde, bem como de elaborações teórico-epistemológica e de produção científica, articuladas às práticas sociais. Apesar de não preencher as condições epistemológicas e pragmáticas para se apresentar, em si mesma, como um novo paradigma científico, a Saúde Coletiva se consolida como campo científico e âmbito de práticas aberto à incorporação de propostas inovadoras, muito mais do que qualquer outro movimento equivalente na esfera da saúde pública mundial. A Saúde Coletiva como campo de conhecimento é de natureza interdisciplinar cujas disciplinas básicas são a epidemiologia, o planejamento/administração de saúde e as ciências sociais em saúde8.

Dentro do campo da Saúde Coletiva insere-se a Saúde Bucal Coletiva (SBC) definida como campo de conhecimentos e práticas. A Saúde Bucal Coletiva está presente em todas as áreas em que há a produção de saúde (...) não constitui-se de uma prática odontológica filantrópica desenvolvida com base no princípio da caridade, cujas ações e serviços destinam-se a consumidores "carentes ou "pobres" (...). A SBC refere-se a todos os processos que, nas dimensões social, biológica e psicológica, operam na produção de determinadas condições de saúde bucal, em termos populacionais, incluindo tanto ações no campo da atenção à saúde bucal quanto as ações específicas do campo da assistência odontológica individual; a SBC é parte inseparável da Saúde Coletiva (grifos do autor)9.

Mercado de trabalho odontologico em saude coletiva: Sistema público de saúde

O Sistema Único de Saúde (SUS)

Até meados da década de 1980, a principal organização pública de prestação de serviços de assistência à saúde pública no país era o então chamado Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Somente os contribuintes tinham acesso à assistência à saúde através de uma rede de serviços e prestadores de serviços ambulatoriais e hospitalares. Portanto, ocorria a divisão da população brasileira em dois grandes grupos, ou seja, os "previdenciários" e os "não-previdenciários". O segmento da população sem vínculo empregatício formal e seus familiares tinha acesso bastante limitado à assistência à saúde, normalmente restrita às ações dos poucos hospitais públicos e às atividades filantrópicas de determinadas entidades assistenciais10.

Atualmente, o SUS é o único sistema de saúde para cerca de 140 milhões de brasileiros. Os outros 43,2 milhões de brasileiros são cobertos por pelo menos um plano de saúde, o que correspondia, em 2003, a apenas 24,6% da população do país (Brasil, IDEC, 2003). Segundo Bahia et al. (2006)11, analisando dados do PNAD de 2003, o atendimento laboratorial estava incluso em aproximadamente 98% dos planos, os exames complementares em 97% e as internações hospitalares em 92%. Por outro lado, apenas 7,5% dos planos cobriam medicamentos de uso laboratorial. Os planos de saúde do tipo empresarial mostraram um predomínio das faixas etárias entre 25 e 49 anos, sempre mais expressivos na população feminina. Em contrapartida, os autores verificaram que a parcela de indivíduos com idades mais elevadas, ou seja, igual ou superior a 55 anos mostrou-se bastante reduzida. Desta forma, as faixas etárias em idade produtiva foram as mais cobertas por planos de saúde do tipo empresarial privado, sendo o fator financeiro, portanto, um entrave a universalização do acesso a este tipo de serviço pela maioria da população brasileira.

Apesar de cobertos por planos de saúde, esta parcela da população também se beneficia do SUS participando das campanhas de vacinação, ações de prevenção e vigilância sanitária (como o controle de sangue, hemoderivados e medicamentos; de centros médicos-odontológicos e hospitalares; vigilância sanitária em restaurantes, bares, lanchonetes, até casas de massagens, tatuagens e clínicas de estética e emagrecimento) ou de atendimentos de alta complexidade, quando este é negado pelos planos de saúde, como é o caso de doentes de AIDS, transplantes e tratamento de pessoas com câncer. Portanto, o SUS não está tão longe da nossa vida diária como parece e não se limita aos atendimentos assistenciais prestados por profissionais que trabalham em Unidades Básicas de Saúde (ou popularmente conhecidos como "postos de saúde") ou hospitais conveniados12.

Segundo dados do Ministério da Saúde, com a Política Nacional de Saúde Bucal foram gerados, de dezembro de 2002 a dezembro de 2006, cerca de 25 mil novos empregos para cirurgiões-dentistas, auxiliares de consultório, técnicos em higiene dental, além de técnicos em prótese dentária e pessoal da área administrativa. A tendência atual é continuar ampliar o sistema prestador para melhorar o acesso da população ao atendimento odontológico13,14.

É importante ressaltar que, trabalhando como profissional autônomo e liberal, o cirurgião-dentista não possui benefícios trabalhistas (salário mensal fixo, FGTS, 13° salário e férias), sendo que sua renda mensal é influenciada pela situação econômica do país (nível de desemprego, crescimento econômico, mercado financeiro). No serviço público, o cirurgião-dentista pode usufruir dessas vantagens além da garantia de estabilidade no emprego15.

Atualmente, o SUS constitui-se numa importante opção de mercado de trabalho para os profissionais da Odontologia, principalmente a partir da inserção da saúde bucal na Estratégia do Programa de Saúde da Família. Embora essa estratégia seja interessante enquanto abertura de campo de trabalho para o cirurgião-dentista e também importante como iniciativa de atenção bucal à comunidade, não verifica-se um impacto significativo no ensino de graduação16 de forma a garantir uma mudança qualitativa na formação de recursos humanos, que contemple as necessidades de atuação no SUS.

O SUS e o Programa de Saúde da Família (PSF)

O Programa de Saúde da Família foi criado pelo Ministério da Saúde (MS) no ano de 1994 e se estabeleceu como estratégia, mais do que um programa pontual, para aumentar o acesso da população aos serviços de saúde17. A Estratégia Saúde da Família visa à reorganização da Atenção Básica no país, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde.

Para o planejamento das atividades de Saúde Bucal na Atenção Básica é necessário destacar a importância da utilização da Epidemiologia. Com ela pode-se conhecer o perfil da distribuição das principais doenças bucais, monitorar riscos e tendências, avaliar o impacto das medidas adotadas, estimar necessidades de recursos para os programas e indicar novos caminho18.

Para subsidiar o planejamento com dados da realidade populacional recomenda-se a realização de levantamentos epidemiológicos, levantamento de necessidades imediatas e a avaliação de risco. Esse processo, no entanto, precisa ser acompanhado utilizando um sistema de informação que disponibilize os dados, produzindo informações consistentes, capazes de gerar novas ações18.

A rotina de trabalho da Equipes Saúde da Família inclui processos de conhecimento do território e da população, bem como da dinâmica familiar e social, que se constituem em subsídios valiosos ao planejamento, ao acompanhamento de ações e à avaliação.

O papel do cirurgião-dentista no SUS

Segundo Aerts et al.19 os cirurgiões-dentistas devem assumir diversos papéis para trabalharem no SUS, reorganizando suas práticas de saúde num modelo que extrapola puramente a "odontotécnica" para um modelo de promoção de saúde. Para isso, as autoras afirmam ser necessário que "ao arsenal tecnológico médico-sanitário tradicional também se incorporem outras tecnologias, como a comunicação social, o planejamento e a programação local. Com isso, as ações desenvolvidas se pautam pela pactuação de demandas e de necessidades identificadas pela equipe de saúde e população".

O cirurgião-dentista deve participar de equipes interdisciplinares e multiprofissionais voltadas para o planejamento de políticas públicas saudáveis e o desenvolvimento de ações de vigilância da saúde da coletividade. Essas ações também podem ser desenvolvidas em nível distrital, na dependência do tamanho do município e de sua organização político-administrativa. As áreas de atuação envolvem: o PSF, as práticas de vigilância epidemiológica, sanitária, ambiental e políticas públicas saudáveis19.

As políticas públicas saudáveis objetivam a melhoria da qualidade de vida das populações através do controle da produção de alimentos processados com adição de açúcar e o apoio ao aumento e a distribuição de alimentos tradicionais em nível nacional; a moderação no consumo de açúcares extrínsecos não lácteos na alimentação de crianças e controle em medicamentos pediátricos; a fiscalização de rótulos alimentares, exigindo a descrição clara de seus conteúdos e valor nutritivo; o controle de propagandas sobre alimentos infantis; a distribuição de merenda escolar com alimentos sem açúcar e baixo teor de gorduras; a inclusão de temas transversais nos currículos escolares, enfatizando que açúcares ingeridos isoladamente são pobres sob o aspecto nutricional, além de diminuírem a densidade nutricional de alimentos complexos20,21. Nesse contexto seria importante citar ações de vigilância à saúde, de produtos fluorados, vigilância ambiental de resíduos tóxicos, vigilância epidemiológica de cárie e doença periodontal e a organização de um sistema de informação que permita o monitoramento da situação de saúde bucal, além de séries históricas, visando à avaliação.

Vigilância Sanitária

A Lei N° 8.080/90, Lei Orgânica da Saúde, ao organizar o SUS, no artigo 6°, parágrafo 1° consagra a seguinte definição para a Vigilância Sanitária22:

§ 1º – "Entende-se por Vigilância Sanitária um conjunto de ações capazes de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse de saúde, abrangendo:

I – o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendida todas as etapas e processos, da produção ao consumo;

II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde";

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) Sanitária tem por finalidade institucional "promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário de produtos e serviços submetidos à Vigilância Sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras"22.

O profissional pode trabalhar gerenciando o risco sanitário de consultórios odontológicos e clínicas. Existem diversos cursos de especialização em vigilância sanitária, entre eles, o da Faculdade de Saúde Pública da USP-SP e o da ENSP/FIOCRUZ-RJ.

Além disso, segundo Aerts et al.19, em nível central, as ações do cirurgião-dentista na equipe de vigilância se dirigem à educação em saúde, normatização e vigilância de serviços odontológicos, ações de controle e monitoramento da qualidade da água de abastecimento público, vigilância de produtos contendo flúor, controle de resíduos tóxicos e contaminados produzidos por estabelecimentos de saúde e vigilância epidemiológica das principais doenças bucais.

No caso das ações de vigilância de serviços odontológicos, o objetivo é proteger a saúde da população de numerosos riscos reais ou potenciais e promover os meios necessários para garantir a segurança sanitária nesses ambientes.

Auditor do SUS

O DENASUS (Departamento Nacional de Auditoria do SUS) tem como algumas atribuições auditar e fiscalizar a regularidade dos procedimentos técnico-científicos, contábeis, financeiros e patrimoniais praticados por pessoas físicas e jurídicas no âmbito do SUS; verificar a adequação, a resolubilidade e a qualidade dos procedimentos e serviços de saúde disponibilizados à população; estabelecer diretrizes, normas e procedimentos para a sistematização e padronização das ações de auditoria no âmbito do SUS; promover o desenvolvimento, a interação e a integração das ações e procedimentos de auditoria entre os três níveis de gestão do SUS, entre outros 23. Estas foram criadas pelo Decreto nº 5.841, de 13 de julho de 2006.

O auditor odontológico do SUS pode trabalhar em Unidades de Saúde da Família (USF), que contam com a inserção da equipe de saúde bucal e outras que ofertam atendimento odontológico na Atenção Básica; e Unidades de Saúde que ofertam atendimento especializado de média e alta complexidade em Odontologia, em ambiente ambulatorial ou hospitalar 23.

Apesar de o serviço público ser um nicho interessante para o ingresso profissional no mercado de trabalho, não se pode aceitar que o profissional reproduza neste local as mesmas práticas e critérios abordados no serviço particular do seu consultório. Este fato tem sido ainda o maior entrave para o avanço das diretrizes do SUS no país, ou seja, recursos humanos pouco estimulados a seguir os princípios governamentais impostos pelo sistema. No estudo de Chaves & Silva24 com profissionais da rede pública de dois municípios da Bahia, as autoras verificaram que a opção pelo serviço público é por vezes claramente explicitada como resultado do insucesso parcial no campo privado e há todo um movimento no sentido de migrar do subcampo público para o privado pois isso correspondia a idéia de progresso profissional e qualificação constante. As autoras verificaram ainda que, na maioria dos casos, a oportunidade de seleção ou concurso foi a razão mais freqüente de ingresso no setor público e não uma escolha pessoal, na medida em que a abertura do mercado de trabalho nessa área tem sido um amortecedor para o desemprego no setor odontológico. Segundo as mesmas, "há o risco de que a prática pública incorpore o caráter marcadamente liberal e individual, característico da prática odontológica, considerada a última das profissões liberais e se constitua apenas numa necessidade de ampliação do mercado de trabalho para o setor e não numa crítica teórica às práticas curativas e de especialização hegemônicas, na medida em que se observou uma insatisfação de alguns profissionais com sua prática pública já que se sentiam limitados pelo não acesso às novas tecnologias ‘reparadoras’, como coroas, prótese removível e próteses fixas caracterizadoras do subcampo privado da saúde bucal". Isto porque, como visto, o sistema público apresenta certas especificidades, assim como a população que procura por seus serviços24.

Mercado de trabalho odontológico em saúde coletiva: Sistema privado

Apesar das propostas governamentais de contratação de profissionais da área odontológica nos serviços públicos, as vagas criadas recentemente são insuficientes para atender a demanda da categoria, a qual, com suas 176 faculdades, lançam no mercado mais de 10.000 profissionais ao ano25. Dessa forma, é bom termos em mente que a implantação de equipes de saúde bucal na estratégia da Saúde da Família e a construção de Centros de Especialidade Odontológicas apenas amenizam a dificuldade de inserção no mercado de trabalho.

Outro fato que o cirurgião-dentista deve estar atento é que, infelizmente, no Brasil, muitos programas de governo não são sinônimos de programas de Estado. Apesar do aporte de recursos para a saúde bucal proporcionado pelo programa Brasil Sorridente permitir a contração significativa de novos profissionais para trabalhar no serviço público, a continuidade do programa dependerá de vontade política e movimentação popular.

Dessa forma, o sistema privado de saúde é um nicho de trabalho interessante para se trabalhar em Saúde Coletiva. Atualmente o sistema supletivo de planos e seguros privados de assistência operam com cerca de 2000 empresas no setor. Dentre este público, 17% são beneficiários de planos odontológicos 26

José Gomes Temporão, ministro da saúde, em encontro realizado no Hospital Sírio Libanês –SP, pediu ajuda ao sistema privado para solucionar a crise no setor da saúde. "Sozinho o Estado não resolverá a questão da medicina no Brasil. Esta é uma questão que tem de ser enfrentada de maneira integrada com a sociedade e entidades privadas"27. A expectativa é que as empresas tenham total autonomia na administração de empreendimentos públicos, seguindo parâmetros determinados pelo Estado, que passa a funcionar como um fiscal do serviço. O ministro quer buscar as boas práticas de promoção de saúde nos serviços privados, o que não vem ocorrendo até então, sendo mais associados a estratégias de marketing pelas empresas.

A discussão é longa, pois, para alguns, esta é uma tentativa do Estado querer se eximir de suas obrigações constitucionais, transferindo-as para o cidadão usuário que terá de arcar com a manutenção de um plano. Este aspecto se enquadra na teoria da redução do tamanho do Estado, com transferência de suas incumbências para terceiros28.

A regulamentação do setor privado iniciou-se em 1998 com a lei 9.656/98 e consolidou-se com a lei 9.661/00 com a criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, mas, segundo Malta et al.29  "convive-se com uma grande heterogeneidade nos padrões de qualidade no setor, fragmentação e descontinuidade da atenção, que compromete a efetividade e eficiência do sistema como um todo, atingindo as redes de cuidados básicos, especializados e hospitalares , que atendem a clientela de planos de saúde."

Esse sistema é composto pelos segmentos de autogestão, medicinas de grupo, seguradoras e cooperativas. As empresas deste sistema trabalham, conforme Malta et al.29"não com a produção da saúde, mas com a idéia de evento/sinistralidade. A saúde torna-se para o mercado um produto e não um bem. Mesmo quando se investe em atividades de promoção e prevenção, esse componente entra mais como produto de marketing do que como diretriz do modelo assistencial, visando de fato ao cuidado à saúde." Essas práticas poderiam vincular clientelas específicas e evitar consumos desnecessários de serviços. Os autores pontuam que "o grande desafio consiste em restabelecer uma nova prática, centrada no estímulo à promoção da saúde, prevenção, referenciada no vínculo e na responsabilização. A própria operadora poderia estimular a prática da vinculação a cuidadores, mapeando certos grupos de risco (idosos, diabéticos, hipertensos), ou certos ciclos de vida (gestantes, menores de 1 ano) e estimulando os usuários a se vincularem a cuidadores". Estes últimos teriam usuários cadastrados e fariam acompanhamento sistemático, com retornos programados, definindo projetos terapêuticos adequados a cada situação, estimulando a participação em grupos educativos, o acompanhamento e monitoramento desses usuários com algum risco diferenciado.

Como se nota, aí está um grande nicho de mercado ainda não coberto pelas empresas e profissionais, ou seja, a área de Saúde Coletiva.

Auditor odontológico

Uma das formas de inserção do profissional de Saúde Coletiva para se trabalhar neste nicho é como auditor odontológico, "acompanhando a tramitação das cobranças dos serviços odontológicos prestados aos funcionários, verificando sua consistência, indicação e ocasião da realização do tratamento". Outra forma é como gestor odontológico, atuando na formação e manutenção da rede assistencial, criando e aplicando regras assistenciais de acordo com as pessoas atendidas e com os critérios legais exigidos pela Agência Nacional de Saúde. Além disso, "deve controlar e prever os custos assistenciais atuais e futuros, readequar a cobertura e incluir novos procedimentos, entre outros". Muitos convênios particulares contratam gestores com formação em Saúde Coletiva 26. A ética deve prezar o campo de atividades desse profissional.

Em um estudo desenvolvido por Freitas30 com 12 dentistas do município de João Pessoa-Pa, sendo 3 deles auditores odontológicos, os últimos constataram a interferência dos gestores das empresas na prática do auditor, onde há implementação de controles explícitos sobre os profissionais, tanto para com os peritos como para com os profissionais credenciados e, também, para pacientes, com o objetivo mais de conter os custos do que promover o acesso aos cuidados. Assim, tanto os profissionais quanto os pacientes têm enfrentado situações nas quais os interesses de ambos são contrariados.

Vigilância Sanitária

Para Andrade & Tescarollo26 os profissionais podem trabalhar para a indústria e comércio de produtos odontológicos, tratando da adequação aos regulamentos da vigilância sanitária, por exemplo. Também podem fazer auditoria sanitária para empresas de convênios. O profissional deve ter conhecimentos de direito sanitário e administração.

Setor Industrial

O profissional da Saúde Coletiva pode ajudar no desenvolvimento de insumos estratégicos para a prática de Saúde Coletiva quando trabalha no setor industrial. Um cirurgião-dentista, especialista e mestre em Saúde Coletiva, desenvolveu um kit para higiene bucal, finalista ao prêmio SUS, o qual, segundo ele, ampliou seus horizontes e acentuou sua faceta empreendedora26.

Outro caso de empreendedorismo em insumos para a Saúde Coletiva é de um mestre em Saúde Coletiva (Dr. Alexandre O. Rangel), o qual desenvolveu um equipamento odontológico transportável, com o auxílio de técnicos em mecânica e registrou a patente do invento.

Terceiro Setor

Várias definições têm sido encontradas para o Terceiro Setor, tais como "organizações sem fins lucrativos", "organizações voluntárias", "setor independente", "caridades", "organizações não-governamentais", "filantropia", entre outras os mesmos autores, "o terceiro setor apresenta uma variedade interna, segundo a natureza das entidades que o compõem, incluindo-se desde entidades beneficentes de assistência social, organizações não-governamentais (ONGs), entidades representativas patronais e profissionais, associações de benefício mútuo até organizações de promoção e luta de interesses sociais, organizações religiosas e partidárias.

Em 2002, o País contava com 276 mil Fundações Privadas e organizações sem fins lucrativos cadastradas. Apesar da absoluta maioria das entidades, isto é, 77% delas, não terem qualquer empregado, 1% delas era de grande porte, isto é, contavam com 100 ou mais empregados. Estas entidades absorviam quase um milhão de trabalhadores na época e, destes, cerca de 3800 desenvolviam atividades relacionadas à área da saúde. Mais da metade das pessoas que eram formalmente assalariadas (52%) estava concentrada nas organizações que atuavam nas áreas de educação (29%) e saúde (23%). Em relação à remuneração dos trabalhadores, em 2002, em média, os trabalhadores destas organizações que trabalhavam na área da saúde, tanto em hospitais como em outros serviços de saúde, apresentavam um salário médio mensal de 4,5 salários mínimos31.

Na área odontológica, há várias organizações se organizando para prestar serviços à população e, dentre elas, pode-se citar o "Adotei um Sorriso (Abrinq)"; "Turma do Bem – Dentista do Bem"; "Instituto Pedro Martinelli"; "Instituto Fauchard"; "Sesc-Odontologia"; "Ford"; "Instituto Brasileiro de Odontologia e Pesquisa –IBOP"; "Associação Helping Hands Brasil" entre outras (Mapa do 3° setor, 2007).

 

CONCLUSÕES

Diante do exposto, parece justo afirmar que o mercado de trabalho na área de Saúde Coletiva, em termos de Odontologia, é muito mais rico e abrangente que a maioria das pessoas pensa, sendo, portanto, importante se capacitar e conhecer as possibilidades de inserção e desenvolvimento de atividades em comunidades. Deste modo, estaremos construindo um Sistema Único de Saúde mais resolutivo e capaz de atender às demandas da sociedade.

 

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Autor correspondente:
Antônio Carlos Pereira
Faculdade de Odontologia de Piracicaba - Departamento de Odontologia Social
Av. Limeira, 901 – Areião CEP: 13.400-120 - Piracicaba – SP - Brasil
e-mail: apereira@fop.unicamp.br

Recebido em 20/02/2008 – Aceito em 07/04/2009

 

 

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