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Arquivos em Odontologia

versão impressa ISSN 1516-0939

Arq. Odontol. vol.48 no.2 Belo Horizonte Abr./Jun. 2012

 

REVISÃO DE LITERATURA

 

Ato Médico: histórico e reflexão

 

Medical Act: history and reflection

 

 

Denise Vieira TravassosI; Efigênia Ferreira e FerreiraI; Viviane Lemos Frade de AguiarII; Elza Maria de Araújo ConceiçãoII

IDepartamento de Odontologia Social e Preventiva, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
IICirurgiã-dentista

 

Contato: detravassos@gmail.com, efigeniaf@gmail.com, vivianeortodontia@gmail.com, draelza@globo.com

Autor correspondente

 

 


 

RESUMO

Descrever o histórico da proposição da lei do ato médico e realizar uma reflexão crítica acerca das motivações de seu surgimento e das conseqüências de sua aprovação. Foi realizada uma revisão dos projetos de lei que deram origem ao Projeto de Lei 25/2002 e dos artigos e comentários divulgados a respeito da legislação proposta. Os argumentos contra a aprovação do Projeto de Lei e os seus efeitos, revelaram que a maior preocupação de todos os profissionais da área de saúde é a centralização das ações nas mãos dos médicos, com redução da autonomia das demais profissões de saúde expressando preocupação com as perdas no trabalho em equipe e prejuízo para o modelo de atenção proposto pelo SUS.

Descritores: Projeto de lei. Ocupações em saúde. Sistema Único de Saúde.


 

ABSTRACT

The aim of the present paper was to describe the course of the Brazilian Medical Practices Bill and carry out a critical reflection on the reasons for its emergence as well as on the consequences of its approval. The methodology involved a review of the bills that gave rise to Bill 25/2002 as well as articles and comments publicized with regard to the proposed legislation. The arguments against the approval of the bill and its effects reveal that the greatest concern of all professionals in the healthcare field is the centralization of actions in the hands of physicians, with a reduction in the autonomy of other healthcare professionals, expressing concerns regarding losses in teamwork and the harmful effects on the healthcare model proposed by the Brazilian Public Health Care System.

Uniterms: Draft bill. Health occupations. Unified Health System.


 

 

INTRODUÇÃO

Os mercados profissionais surgiram e se modificaram ao longo da história de acordo com as transformações de capital e trabalho e novas tecnologias desenvolvidas. Com isto, surgiram novas práticas e novas funções sociais, tornando crescente a necessidade do profissionalismo em toda a sociedade. O Estado se viu compelido a regulamentar, pelo menos em parte, o desenvolvimento deste processo. Assumiu um papel regulador, estabelecendo a obrigatoriedade da educação formal e garantindo o monopólio de competências. Começa desta forma, a configurar um quadro no qual os grupos profissionais anseiam por projeções estatais e por penalização dos competidores que não cumprissem os pré-requisitos estabelecidos pelo grupo1.

O avanço do conhecimento na área de saúde foi sempre acompanhado por uma turbulência na regulamentação profissional de forma jurídica pelo poder do Estado. Os atos profissionais são disputados com o intuito de se tornarem exclusivos de uma determinada profissão, reflexo do aumento da concorrência pelo mercado de trabalho. Além da disputa pelo monopólio de práticas no exercício profissional, que significam lutas econômicas, algumas profissões não médicas, mas que se direcionam para práticas clínicas que ainda se sentem a margem dos processos produtivos buscam o reconhecimento2.

No aspecto legal, é necessário que toda profissão tenha a sua lei regulamentando o seu exercício para assegurar o âmbito de atuação, prerrogativas, privilégios e direitos exclusivos, principalmente para as que ainda estão em processo de profissionalização e precisam firmar-se no mercado1.

As profissões reconhecidas como as mais antigas no Brasil são a medicina (1808)3 e a advocacia (1827)4 e seus processos de profissionalização servem como modelos para as demais ocupações. O processo de profissionalização da medicina acompanhou, de certa forma, o processo de industrialização do país, acelerando-se a partir da década de 1930, tendo como conseqüência a diversificação do mercado de trabalho5.

Neste processo de diversificação do conhecimento surgiram profissões com área de atuações muito próximas às do profissional da medicina, gerando tensões e necessidades políticas, jurídicas, econômicas e ideológicas de delimitação do exercício de cada uma.

Baseando-se no argumento que a medicina precisa regulamentar o exercício de suas práticas profissionais, delimitando o campo de atuação dos diversos profissionais de saúde, e estabelecendo as atividades terapêuticas que devem ser exercidas exclusivamente por médico, foi enviado ao Senado Federal, projeto de lei. Este fato vem causando grande repercussão na mídia nacional e gerando muitas discussões entre os profissionais de saúde e outros segmentos da população7.

O objetivo do presente trabalho é descrever o histórico da lei do ato médico e fazer uma reflexão acerca das motivações de seu surgimento e das conseqüências de sua aprovação.

 

HISTÓRICO

O Decreto 20.931/32 foi um dos primeiros a regulamentar a atuação na área de saúde, diz respeitoà medicina, odontologia, farmácia, medicina veterinária e parteira no Brasil. O decreto estabelecia os deveres e as condutas proibidas ao médico e a direção técnica pelo médico das instituições de saúde, no âmbito público ou privado.

É de 1957 a lei que criou o Conselho Profissional dos médicos que norteou o funcionamento dos órgãos de regulamentação e fiscalização da profissão sem, no entanto, especificar ou definir o campo de atuação da profissão8.

Em março de 1989, houve a apresentação por um Deputado Federal, Pedro Chaves Canedo (PFL/GO), à Câmara dos Deputados, de um projeto de lei tentando delegar ao Conselho Federal de Medicina (CFM) a função de definir o que seria o ato médico. A tentativa foi frustrada por falta de apoio da própria categoria. Em março de 1998, transcorridos nove anos, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CRMRJ) definiu o ato médico em sua resolução n°. 121/98 como sendo "toda ação desenvolvida visandoà prevenção, ao diagnóstico, tratamento e à reabilitação das alterações que possam comprometer a saúde física e psíquica do ser humano". Finalmente, em dezembro de 1998, novo estatuto do CFM é aprovado atribuindo-lhe o poder de definir e normatizar o ato médico5.

Em continuidade à tentativa de estabelecer a área de atuação do profissional de medicina, o CFM aprovou, em dezembro de 2001, a resolução 1.627/2001, que define o ato profissional de médico "como todo procedimento técnico-profissional praticado por médico legalmente habilitado: - profissional praticado por médico legalmente habilitado e dirigido para:

I. a promoção da saúde e prevenção da ocorrência de enfermidades ou profilaxia (prevenção primária);
II. a prevenção da evolução das enfermidades ou execução de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos (prevenção secundária);
III. a prevenção da invalidez ou reabilitação dos enfermos (prevenção terciária)."

Nas motivações da resolução, destaca-se o mercado de trabalho na área de saúde, que estaria muito concorrido com o surgimento de novas profissões, sem especificar quais, apenas dizendo que: "o campo de trabalho médico se tornou muito concorrido por agentes de outras profissões e que os limites interprofissionais entre essas categorias profissionais nem sempre estão bem definidos". A ausência de uma clara delimitação das áreas de atuação estaria trazendo prejuízos à medicina, por ser a de campo de atuação mais amplo6.

Deste passo inicial para o surgimento do Projeto de Lei do Ato Médico (PL) houve apenas um curto período, pois em fevereiro de 2002 foi apresentado o Projeto de Lei de autoria do Senador Geraldo Althoff (PFL/SC), cujo objetivo era regulamentar os atos dos médicos9.

Esse projeto foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para análise tendo recebido emendas. Entretanto, como houve uma forte pressão das outras profissões de saúde, que se mobilizaram em defesa de seus direitos e contra o projeto de lei foi concedida vista coletiva, com objetivo que todas as profissões conhecessem o teor do projeto9.

No ano de 2002, o projeto tramitou nas Comissões no Senado, tendo sido este caminho relativamente rápido se comparado aos prazos usuais, devido, muito provavelmente, às pressões da área médica. O projeto foi aprovado, em dezembro daquele ano, porém com emendas e após receber inúmeras críticas.

Em 2003, o projeto foi distribuído a diversos relatores, foram realizadas audiências públicas e foi incluído o Presidente do Conselho de Enfermagem na relação dos convidados para as audiências públicas. Realizou-se também uma solicitação de tramitação conjunta do Projeto de Lei 025/2002 Substitutivo (PLS) com o PLS 268/2003 feito pelo então Senador Mão Santa (PMDB/PI), por terem como objeto o mesmo assunto, o "ato médico".

O PL 025/2002 tinha uma redação semelhante a da resolução 1.627/2001, acrescentando um parágrafo único no artigo 1º que "as atividades de prevenção de que trata este artigo, que envolvam procedimentos diagnósticos de enfermidades ou impliquem em indicação terapêutica, são atos privativos do profissional médico."

O PLS 268/2003 também dispõe a respeito do exercício da medicina, regula o trabalho médico, define o campo de atuação do médico e trata dos Conselhos profissionais de medicina, tentando instituir uma lei do médico seus primeiros artigos possuíam uma redação modificada em relação à resolução 1.627/2001, sendo, então, os seguintes:

"Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.

Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atençãoà saúde para:
I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;
II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;
III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.

Art. 3º O médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo ou a coletividade atuará em mútua colaboração com os demais profissionais de saúde que a compõem."

Na CCJ, da análise conjunta dos dois projetos concluiu-se pela rejeição do PLS 268/2003, e foi encaminhado relatório favorável à aprovação do projeto de lei PLS 025/2002, nos termos do seu Substitutivo. O documento foi encaminhado à Comissão de Assuntos Sociais (CAS) tendo como relatora a Senadora Lúcia Viana (PSDB/GO). Esta recebeu um ofício dos Presidentes dos Conselhos profissionais de biomédicos, de educação física, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, biólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, cirurgiões-dentistas, assistentes sociais, técnicos em radiologia e psicólogos, que encaminharam um abaixo-assinado de 500 mil assinaturas contra a lei do "ato médico"10.

Em 2004 surgiu a Frente Nacional Contra o PLS 25/2002, com representação das 13 profissões da área da saúde, em contraposição à Comissão Nacional em Defesa do PLS 25/2002 do CFM.

A relatora, em 2005, objetivando o consenso, realizou reuniões e fez o compromisso de que seriam realizadas audiências públicas para a discussão do projeto de lei, antes da votação na CAS, pois seriam nestas audiências que a sociedade civil poderia se manifestar10.

O projeto de Lei de regulamentação do Exercício da medicina foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais e no Senado por unanimidade dos parlamentares presentes. O texto elaborado após as discussões foi aprovado sem modificações. Seguindo o trâmite para aprovação da lei, o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados, recebendo o número 7703/2006.

O Deputado Federal Edinho Bez (PMDB/SC), relator do projeto na Câmara, anunciou a entrega do relatório para o primeiro semestre de 2008.

Em 15/07/2009 o projeto encontrava-se na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP), tendo o prazo de vista encerrado e a Deputada Federal Gorete Pereira (PL/CE) apresentado voto em separado, solicitando as seguintes alterações:

• do inciso I do art. 4º do substitutivo por entender que não pode se restringir o diagnóstico nosológico apenas aos médicos;
• do inciso III do art. 4º, para a retirada do termo "diagnósticos terapêuticos ou estéticos" para evitar restrição à atuação de outros profissionais de saúde;
• a inclusão do inciso X no § 5º do art. 4º para contemplar os procedimentos de acupuntura que não são exclusivos dos médicos;
• a supressão do inciso IX do art. 4º do substitutivo pois não seria razoável restringir a indicação do uso de órteses e prótese ao médico uma vez que esta área de atuação faz parte do campo dos terapeutas ocupacionais;
• inclusão do termo "médico" na parte final do inciso XI do art. 4º;
• inclusão, no § 2º do art. 4º que relaciona os diagnósticos que não são privativos do médico, do diagnóstico psicomotor, tendo em vista tratar-se de uma importante prática da fisioterapia e terapia ocupacional;
• retirar do inciso II do § 4º do art. 4º do substitutivo, o termo "punção" e a parte final do inciso compreendida na frase "com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos" mais uma vez para evitar a restrição de atuação de outras áreas;
• exclusão do inciso III do § 4º do art. 4 considera procedimento invasivo a "invasão dos orifícios naturais do corpo, atingindo órgãos internos".

 

DISCUSSÃO

A polêmica em torno da definição do que seria o ato médico está principalmente relacionada ao fato de que o PL 25/02 Substitutivo dispõe sobre o que seriam atos privativos do médico como: a formulação do diagnóstico médico e a prescrição terapêutica das doenças respeitando o livre exercício das profissões de saúde nos termos de suas legislações específicas ("Art. 5º - O disposto nesta lei não se aplica ao exercício da Odontologia e da Medicina Veterinária, nem as outras profissões de saúde regulamentadas por lei, ressalvados os limites de atuação de cada uma delas."). Desta forma, parece respeitar as demais profissões, no entanto, não é esta interpretação predominante. Os contrários ao projeto argumentam que seria uma perda para as demais áreas da saúde os meios de diagnóstico ficarem exclusivamente nas mãos dos médicos5.

Segundo a Senadora Lúcia Vânia (PSDB/GO) o Projeto de Lei visa regulamentar a profissão do médico, mas gera polêmica por limitar a área de atuação de outros profissionais de saúde, estabelecer exclusividade para o exercício da chefia e ensino, a divisão de competências, a prescrição terapêutica e o direito ao diagnóstico10.

O Substitutivo em questão estabelece um conceito de ato médico privativo, ao lado do ato médico compartilhado com outras profissões. Ampara-se nos fundamentos da prevenção primária, secundária e terciária, moderniza a classificação e estabelece basicamente que os atos de prevenção secundária e terciária e os que impliquem em procedimentos diagnósticos de enfermidades e de indicação terapêutica constituem atos privativos dos médicos. Fica aberta para as outras profissões da área da Saúde a porta da prevenção primária e terciária sem diagnóstico ou terapêutica. Além disso, expande-se o campo dos atos privativos da profissão médica nas atividades de coordenação, direção, chefia, perícia, auditoria, supervisão e ensino dos procedimentos médicos2.

O mesmo autor ressalta, que a reforma da regulação profissional deve ser constituída, principalmente, por diretrizes que garantam a qualidade dos padrões técnicos e éticos do exercício profissional e de proteção ao público.

Campos de disputa

O Conselho Federal de Medicina (CFM)12 argumenta que o diagnóstico das doenças configura uma prerrogativa exclusiva dos médicos e aceita como exceção, a Odontologia. Os médicos brasileiros buscam a definição de seu campo de trabalho, que significa a definição jurídica de sua identidade profissional.

Segundo Guimarães & Rego5 há algumas áreas de conflito mais evidentes como: nutricionistas, nutrólogos e endocrinologistas; fisioterapeutas, médicos fisiatras, profissionais da educação física e médicos especialistas em medicina desportiva; psicólogos, psiquiatras e os demais profissionais da área de psicoterapia; fonoaudiólogos e otorrinolaringologistas. O compartilhamento do saber seria a gênese da disputa pela fatia de mercado de cada um.

Ponderam os autores, Guimarães & Rego5, que a odontologia também possui área de superposição de conhecimento com a medicina, no entanto, não há uma disputa tão intensa entre as duas profissões. Surgiram separadas, mas as leis que regulamentam a Odontologia são antigas, separando os campos de atuação há mais de um século, o que foi escrito e ponderado pelos autores.

O conflito com a enfermagem tem se mostrado ainda mais acirrado, provocando questionamentos judiciais da legalidade da possibilidade dos enfermeiros prescreverem medicamentos. A previsão desta prescrição existe na resolução 271/2001 do Conselho de Enfermagem e também é contemplada em portaria do Ministério da Saúde, como forma de viabilizar o trabalho em equipe no setor público e proporcionar uma maior atenção à população. A questão ainda não foi resolvida de forma definitiva pela via judicial, tendo cada uma das partes utilizado dos recursos judiciais disponíveis para suspender as decisões contrárias a seus interesses.

Ensino e chefia

A lei do ato médico tem disposições específicas para normatizar as áreas de ensino e chefia, prevendo em seu artigo 5º serem privativos:
"I – direção e chefia de serviços médicos;
III – ensino de disciplinas especificamente médicas;
IV – coordenação dos cursos de graduação em medicina, dos programas de residência médica e dos cursos de pós-graduação específicos para médicos.

Parágrafo único. A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa de médico."11

A interpretação da norma tem gerado críticas, pois muitas vezes em serviços públicos quem exerce funções de chefia e gerencia são profissionais não médicos. No entanto, o projeto inicial é que trazia a previsão dos cargos de chefia e as funções de ensino ser exclusividade do médico. O substitutivo corrigiu de certa forma, a discrepância prevendo a possibilidade de atividades administrativas poderem ficar a cargo de qualquer profissional, médico ou não médico. No entanto, a chefia de atividades clínicas continua com a previsão de exclusividade para o médico.

A alteração realizada em relação ao ensino também foi significativa uma vez que o ensino dos futuros profissionais médicos também não precisa ficar restrito a profissionais da área, há a possibilidade de ampliar os horizontes e compartilhar os saberes de outras áreas, processo importante para o trabalho em equipe.

Diagnóstico e prevenção de doenças

Na forma como foi proposto inicialmente, no PLS 25/2002 interpretou-se que haveria uma subordinação de todas as profissões à profissão médica, pois haveria restrições na prática de diagnósticos ou ações terapêuticas, sem uma definição clara da área de atuação de cada uma, deixando para ser estabelecido por "legislações específicas".

Sem dúvida este é um dos aspectos de maior controvérsia no projeto de Lei, como já foi citado anteriormente, tendo sido alvo de críticas e de sugestões de alterações. As disposições referentes a este campo estão basicamente no artigo 4º do PLS 268/2002 que estabelece quais são as atividades privativas do médico, entre elas: "a formulação do diagnóstico, indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, indicação do uso de órteses e próteses..." 11

O conteúdo da norma demonstraria uma proposta de restringir aos médicos procedimentos já garantidos por lei a outros profissionais, o que estaria ferindo os campos de competências e autonomia de outras profissões5.

Reflexos para os usuários

Os pacientes, que continuam sendo a razão da existência dessas profissões, esperam ser atendidosnas suas demandas, que também se ampliam do ponto de vista individual e coletivo. O objetivo do desenvolvimento dos conhecimentos científicos e tecnológicos devem ser, sempre, o próprio homem, sua vida social e a manutenção de sua qualidade de vida, sua saúde individual e coletiva13.

Os argumentos daqueles que consideram que a aprovação trará benefícios para o atendimento à população convergem no sentido de que, uma vez determinados os campos de atuação, definidas as competências e qualificados os profissionais para a realidade da saúde pública, podem ser aprimorados os projetos para a saúde coletiva e aumentada a disponibilização de médicos. Entende-se que a população será mais bem assistida, recebendo o diagnóstico e a terapêutica por profissionais competentes e capacitados.

A forma como vem sendo feita a proposição da lei provoca o conflito com as outras categorias profissionais investidas no campo da saúde, que identificam no projeto de lei uma ingerência unilateral que prejudica o avanço do modelo de atenção propugnado pelo Sistema Único de Saúde (SUS)14 e não resulta em benefícios para os usuários.

A inovação apresentada pelo SUS é o seu "conceito ampliado de saúde", resultado de um processo de embates teóricos e políticos, que traz consigo um diagnóstico das dificuldades que o setor saúde enfrentou historicamente, e a certeza de que a reversão deste quadro extrapolava os limites restritivos da noção vigente. Considerar a saúde apenas como ausência de doenças nos levou a um quadro repleto não só das próprias doenças, como de desigualdades, insatisfação dos usuários, exclusão, baixa qualidade e falta de comprometimento profissional15. De acordo com Corrêa16, o cuidado com a saúde pela população é um ato político e econômico, dependente do poder aquisitivo das classes mais necessitadas e das políticas de saúde vigentes.

Equipe multiprofissional

O processo de profissionalização e a tentativa de conquistas de espaços no mercado de trabalho surgem a expensas de crescente e intensa produção de novos conhecimentos e tecnologias, o que coincide com o aparecimento de novas especialidades e novas profissões. A formação profissional, principalmente da medicina, que possui setenta especialidades reconhecidas pelo CFM, vem se mostrando cada vez mais fragmentada, restrita a partes e funções do corpo humano13.

Esta discussão não pode ser considerada separadamente dos outros fatos da história atual, pois ao longo dos últimos anos, o setor saúde vem passando por sucessivos reordenamentos, tanto no que se refere à normatização como aos vinculados às mudanças no conhecimento científico, tecnológico, político, social e outros.

A especialização cria uma lacuna na assistência integral ao paciente na medida em que cada um se encarrega de uma parte do tratamento, mas ninguém seria responsável pelo todo. Podem ocorrer conflitos entre as equipes de saúde e não há a possibilidade de atribuir responsabilidades de forma concreta. Para tentar minimizar este problema podem ser utilizados os conceitos de Campo e de Núcleo ao se planejar tanto a formação como a prática dos profissionais de saúde. O Núcleo é o "conjunto de saberes e responsabilidades específicas a cada profissão" e o Campo são "saberes e responsabilidades comuns ou confluentes a várias profissões." Planejar a formação e a assistência desta forma poderia proporcionar aos profissionais uma visão do papel desempenhado por cada um e suas responsabilidades, e ao mesmo tempo reconhecer o papel do outro e respeitar sua área de atuação16.

O Projeto de lei prevê no seu artigo 3º que o "médico integrante da equipe de saúde que assiste o indivíduo ou a coletividade atuará em mútua colaboração com os demais profissionais de saúde que a compõe"11. O Programa de Saúde da Família (PSF)17, uma das estratégias de consolidação do SUS, objetiva melhorar o estado de saúde da população incluindo desde a promoção e proteção da saúde até a identificação precoce e o tratamento das doenças. Estrutura-se a partir de uma equipe multidisciplinar, da abordagem situacional no local onde vivem as pessoas, da incorporação da representação social da doença e utiliza como ferramenta básica a busca ativa de casos.

Este modelo tanto ultrapassa o ato reconhecido como consulta ao profissional de saúde, quanto o amplia, já que nele se inspiram nos aspectos tocantes à intimidade, o respeito, o sigilo das informações, entre outros. Este impõe o recurso a novas teorias, metodologias e tecnologias e se traduz, evidentemente, em nova configuração do trabalho em saúde.

Mais do que nunca, no SUS, e em especial no PSF, prevê-se a organização de equipes, cuja concepção está vinculada à de processo de trabalho e se sujeita, no campo da saúde, às transformações pelas quais este vem passando ao longo do tempo. A idéia de equipe advém da necessidade histórica do homem de somar esforços para alcançar objetivos e da imposição que o desenvolvimento e a complexidade do mundo moderno têm imposto ao processo de trabalho, gerando relações de complementaridade de conhecimentos e habilidades para o alcance dos objetivos19.

Fruto de um intenso debate da sociedade e fortemente liderado por profissionais da área de saúde, notadamente, da área médica, as transições da ação do Estado brasileiro no que se refere ao setor saúde ocorreram muito rapidamente. Nos últimos dez anos, com o aprimoramento da gestão do SUS e das instâncias de controle social, incorporam-se novos espaços de atuação e novos processos de trabalho à atenção à saúde. Este fato requer efetivo compromisso dos trabalhadores com a concepção ampliada de saúde, estabelecendo-se a transcendência do setorial e uma diversificação dos campos de prática20.

Ressalta-se a importância do enfrentamento multiprofissional das questões como elemento impulsionador do conhecimento, da ordenação e do desenvolvimento de novas tecnologias no campo da saúde21,22. Assim, afirmam Araújo & Sene que a regulamentação do ato médico tem que considerar o conjunto das práticas dos profissionais no setor saúde, levando em conta o seu desenvolvimento histórico e a prática sustentada em conhecimento e em realizações concretas23.

Por muito tempo a medicina tem exercido forte domínio sobre as discussões, propostas e tratamento das doenças e dos doentes em nossa sociedade. A emergência de novos papéis e processos de trabalho mudou a configuração do trabalho médico, da sua autonomia e passou a ameaçar, não apenas os setores mais conservadores, mas a profissão como um todo, que luta pela preservação das suas prerrogativas históricas, culturais e de poder.

Destaca-se neste contexto que todas as proposições de definição de espaços profissionais, características do corporativismo vigente conflita com os projetos em discussão, que envolvem a reforma curricular nas escolas de saúde em todo país, estimuladas pelo governo, como proposta de integração entre as equipes de saúde.

 

CONCLUSÃO

Os argumentos contra a aprovação do PL e os seus efeitos, caso seja aprovado, revelam que a maior preocupação de todos os profissionais da área de saúde é a centralização das ações nas mãos dos médicos, com redução da autonomia destas profissões e do valor da contribuição de cada uma, expressando preocupação com as perdas no trabalho em equipe e prejuízo para o modelo de atenção proposto pelo SUS.

Alguns benefícios para a atuação em saúde coletiva são reconhecidos, tais como, melhor divisão de tarefas e melhor qualificação dos médicos dentro do modelo de atenção.

As perdas para a população parecem constituir-se o melhor consenso, embora, os profissionais da área médica reafirmem a posição de que pode haver benefícios decorrentes do atendimento exclusivo por eles.

Os argumentos relacionados aos prejuízos que a população teria no atendimento contemplam um conhecimento da demanda, do volume de necessidades da população, das implicações da restrição do acesso aos serviços de saúde. Agregam ainda o entendimento de que as necessidades não são apenas de diagnóstico e terapêutica, valorizando a abordagem multiprofissional.

 

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Autor correspondente:
Efigênia Ferreira e Ferreira
Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Odontologia
Departamento de Odontologia Social e Preventiva
Avenida Antônio Carlos, 6627 - Pampulha
CEP 31270-901 - Belo Horizonte – MG - Brasil

e-mail:efigeniaf@gmail.com

Recebido em 18/05/2011 – Aceito em 19/08/2011