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Arquivos em Odontologia
versão impressa ISSN 1516-0939
Arq. Odontol. vol.49 no.2 Belo Horizonte Abr./Jun. 2013
Potencialidades e fragilidades da agenda: organização do atendimento clínico nas equipes de saúde da família
Strengths and weaknesses of the agenda: organization of clinical care in family health teams
Simone de Melo Costa I; Alice Batista Medeiros II; André Costa Alencar Dias II; José Rodrigo da Silva III; Carlos Alberto Quintão Rodrigues I; Maísa Tavares de Souza Leite IV
I Departamento de Odontologia, Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Montes Claros, MG, Brasil
II Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Montes Claros, MG, Brasil
III Programa de Pós-Graduação em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
IV Departamento de Enfermagem, Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Montes Claros, MG, Brasil
Contact: smelocosta@gmail.com, alicebmedeiros@gmail.com, andreh2004@hotmail.com, rodrigomaiss@yahoo.com.br, prof.carlosquintao@gmail. com, maisa.leite@unimontes.br
RESUMO
Objetivo: O objetivo deste estudo foi identificar as potencialidades e fragilidades na construção da agenda, no âmbito da saúde da família, a partir da percepção do profissional acerca da organização do atendimento clínico. Materiais e métodos: Estudo quantitativo, transversal e censitário, realizado no PETSaúde. Utilizou-se questionário semiestruturado e autoaplicado. Resultados: Participaram 95 profissionais de nível superior, enfermeiros, médicos e cirurgiões-dentistas do município de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil. Os profissionais atendem ao dia uma média de 15,49(±6,87) pessoas, apesar de considerarem ideal 13,13(±5,13) atendimentos. A organização da agenda clínica foi classificada em "moderadamente ou pouco organizada" para 48,4% dos profissionais. O atendimento domiciliar é realizado (91,6%). Critérios de risco foram incorporados para priorizar a assistência (78,9%), com maior reserva para a demanda programada (70,5%). Conclusão: Apesar de potencialidades na agenda, existem desafios a enfrentar. O gerenciamento do sistema de saúde na atenção primária sugere valorizar o aspecto quantitativo como essencial para uma prática produtivista, o que estrangula o bom funcionamento e organização da agenda clínica na saúde da família.
Descritores: Agendamento de consultas. Saúde pública. Atenção primária à saúde. Saúde da família.
ABSTRACT
Aim: The present study aimed to identify the strengths and weaknesses in building a family healthcare agenda, based on the professional's perception of the organization of clinical care. Material and Methods: This study was crosssectional, quantitative, and census-based, carried out in the Work-Health Education Program. A semistructured and self-applied questionnaire was used. Results: This study included 95 professionals with a higher education degree, including nurses, doctors, and dentists from the city Montes Claros, Minas Gerais, Brazil. The healthcare professionals attend to an average of 15.49 (± 6.87) patients per day, though 13.13 (± 5.13) doctors' appointments per day is considered the ideal. The organization of the healthcare clinic's schedule was classified as "moderately or poorly organized" by 48.4% of the professionals. Home care is performed (91.6%). Risk criteria were incorporated to prioritize medical services (78.9%), with the highest demand reserved for scheduled appointments (70.5%). Conclusion: Despite the strengths in the agenda, there are challenges to be confronted. The management of the healthcare system as regards primary care suggests the need to give due value to the quantitative aspect as an essential element of a productive practice, which smothers both the proper functioning and organization of a family healthcare clinic's agenda.
Uniterms: Appointments and schedules. Public health. Primary health care. Family health.
INTRODUÇÃO
A Estratégia Saúde da Família (ESF) foi implantada com o objetivo de reorientar o modelo assistencial, descentralizar a gestão da saúde e efetivar o Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, a organização do processo de trabalho da equipe multiprofissional não está sendo respeitada, seja pelos gestores ou pelos trabalhadores1, o que poderá gerar fragilidades na construção da agenda em saúde.
A atuação do profissional no território de saúde da família envolve ações na comunidade, principalmente junto às famílias, demandando um resgate de conhecimentos e práticas perdidas pelo uso abusivo da tecnologia2. As dificuldades na definição da agenda podem comprometer a qualidade da assistência à saúde, assim como o planejamento das ações.
Desse modo, analisar o processo de trabalho torna-se importante por contribuir no entendimento das dificuldades enfrentadas pelos profissionais em planejar ações de atenção à saúde com foco na família3. Nesse sentido, este estudo tem como enfoque a organização do atendimento clínico nas equipes de saúde da família a partir da percepção dos profissionais de saúde.
O presente estudo teve por objetivo identificar as potencialidades e fragilidades na construção da agenda, no âmbito da saúde da família, a partir da percepção do profissional acerca da organização do atendimento clínico.
MATERIAIS E MÉTODOS
Estudo quantitativo, transversal e de cunho censitário, conduzido no âmbito do Programa de Educação para o Trabalho- PET-Saúde da Universidade Estadual de Montes Claros, Unimontes, edital 2010-2011. A proposta foi desenvolvida junto aos profissionais de saúde de nível superior, vinculados à Estratégia Saúde da Família – ESF, da zona urbana do município de Montes Claros, Minas Gerais, Brasil, considerado pólo urbano regional do Norte de MG, com uma população estimada em 361.971 mil habitantes.
Este estudo utilizou como instrumento de coleta de dados um questionário semiestruturado e autoaplicado em profissionais vinculados às equipes saúde da família, sendo o potencial de participantes previstos igual a 114 (37 da odontologia, 50 da enfermagem e 27 da medicina). O questionário foi elaborado para atender os objetivos do estudo, a partir da pesquisa bibliográfica sobre a temática. Foi realizado um estudo piloto para testar e adequar o instrumento de coleta de dados, com participação de 10% dos profissionais. Esses sujeitos não foram incluídos no estudo principal.
A classificação da organização da agenda levou em consideração a escala Likert, com opções de cinco respostas (não organizada, pouco, moderadamente, muito e extremamente organizada). A opção não organizada não foi detectada nos resultados. As outras opções foram categorizadas em organização negativa (agenda pouco e moderadamente organizada) e organização positiva (agenda muito e extremamente organizada).
O tratamento estatístico foi realizado com o uso do programa SPSS, versão 18.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos). A análise descritiva envolveu o cálculo de medidas de tendência central e de separatrizes e o cálculo de proporções. A associação entre as variáveis foi feita por meio dos testes estatísticos qui-quadrado de Pearson e o Fisher como alternativo, quando mais de 25% das caselas apresentaram unidades menores que cinco. Já, o teste Mantel-Haenszel foi utilizado para associar conjuntamente as variáveis: formação profissional, opinião sobre ser o agendamento justo e classificação da organização do agendamento clínico no âmbito da saúde da família. Para a comparação dos números de atendimentos clínicos entre os diferentes grupos profissionais (odontologia, enfermagem e medicina) foram realizados os testes Mann-Witney e o Kruskal- Wallis devido à falta de distribuição normal ao teste Kolmogorov-Smirnov. Foi considerado o nível de significância p<0,05 e o intervalo de confiança 95%.
O estudo foi aprovado pela Secretaria Municipal de Saúde do município estudado e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unimontes, sob o parecer nº 1966/2010, em acordo com a Declaração de Helsinki e Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Todas as informações foram confidenciais e não identificadas.
RESULTADOS
Participaram do estudo 95 profissionais de nível superior, dos 114 vinculados à ESF. A formação em enfermagem foi a mais frequente (47,4%), seguida da odontologia (32,6%) e medicina (20,0%). O número de profissionais participantes correspondeu a 83,3% do potencial de trabalhadores para o estudo.
O número de pessoas atendidas diariamente, por cada profissional, variou de três a 45 pessoas, com média igual a 15,49 (±6,87), sendo a média
de pessoas que procuram pelo serviço de urgência igual a 5,93 (±4,09). O número considerado ideal pelos profissionais para o atendimento diário foi igual a 13,13 (±5,13). Na Tabela 1, foram descritas as medidas centrais e de separatrizes do número de pessoas atendidas diariamente por cada categoria profissional (atendimento real), o número considerado ideal para atendimento diário (atendimento ideal) e o número de pessoas que procuram diariamente pelo serviço de urgência/ emergência sem o agendamento prévio (demanda espontânea).
Os serviços de enfermagem e medicina apresentaram uma maior média de atendimentos diários que o serviço odontológico (p<0,001), assim como maior média de demanda espontânea (p=0,001) (Tabela 1).
O número possível de pacientes a ser atendido, diariamente, na demanda espontânea, sem prejudicar a qualidade dos atendimentos clínicos agendados, previamente, foi considerado por 53,7% dos profissionais até três ou quatro pacientes, 32,5% até dois pacientes não agendados e 10,6% consideram aceitável atender mais de quatro pacientes. Uma pequena parte dos profissionais (3,2%) considerou ser possível reservar um turno de trabalho para atendimento da demanda espontânea.
Os procedimentos clínicos mais realizados pelos profissionais de enfermagem foram a prevenção do câncer de colo do útero (PCCU) (33,3%), seguido da consulta de enfermagem (20,0%), acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil (13,3%) entre outros menos citados, como a puericultura e a consulta de pré-natal. Já para os profissionais de medicina, 57,8% mencionaram a consulta médica como sendo o procedimento mais realizado, seguido de outros procedimentos, como a aferição de pressão arterial, lavagem de ouvido, drenagem de abscesso e a prevenção do câncer de colo do útero. Para os profissionais da odontologia foram os procedimentos restauradores (87,0%), seguido de outros procedimentos, por exemplo, profilaxia, tartarectomia e exodontia. Para a maior parte dos profissionais, o atendimento clínico em domicílio é realizado (91,6%) nas situações em que o paciente fica doente e impossibilitado de ir à Unidade de saúde em território da saúde da família.
A construção da agenda de 88,4% dos profissionais é realizada com a participação de outros profissionais da equipe saúde da família, sendo os agentes comunitários de saúde (ACS's) os grandes colaboradores (78,9%). A maioria (78,9%) dos profissionais relatou que o ACS e os profissionais de nível técnico seguem critérios prédefinidos para encaminhamento de indivíduos aos cuidados clínicos.
Na opinião de 95,8% dos profissionais a utilização de critérios de risco organiza melhor a demanda para o atendimento clínico, sendo que, 78,9% informaram utilizar critério de classificação por grau de risco para o agendamento da população.
No que diz respeito às restrições para o agendamento de algum grupo populacional, por exemplo, portadores de deficiências, 94,8% não fazem restrições. Para os que adotam restrições ao agendamento (5,2%), entre os motivos destacam-se a gestação de alto risco e a alergia a anestésicos.
Com relação à distribuição dos horários de trabalho para a demanda programada e espontânea, verificou-se que, 70,5% dos profissionais dedicam maior parte para a demanda programada, 14,7% dedicam maior parte para a demanda espontânea, 11,6% dedicam igual parte para as demandas espontânea e programada, 1,1% dedica sua agenda apenas para a demanda programada e 2,1% utilizam outros critérios.
Quanto à opinião acerca do atendimento à demanda espontânea atrapalhar a rotina de trabalho na Unidade de saúde da família, 45,3% entendem que atrapalha moderadamente, para 24,2% atrapalha muito, 13,7% consideram que atrapalha pouco, 8,4% que atrapalha extremamente, 5,3% dos profissionais relatam que atender pacientes não agendados não atrapalha a rotina de trabalho, e uma pequena parcela (3,1%) dos profissionais não respondeu a essa questão.
A Tabela 2 apresenta os resultados da avaliação dos profissionais quanto à organização da agenda, se negativa ou positiva. Os profissionais que afirmaram ter a agenda uma organização positiva, apresentaram uma maior média de atendimentos diários (16,84±8,510) quando comparados ao grupo que avaliou negativamente a organização da agenda (14,18±4,687); no entanto, sem diferença estatisticamente significativa (p=0,411) (Tabela 3). Na perspectiva dos profissionais a forma de agendamento na Unidade de saúde é "justa" (80,0%) sem associação estatisticamente significativa com as médias de atendimentos diários (Tabela 3) e entre as categorias profissionais (Tabela 4).
A maioria (76,9%) dos profissionais que opinou ser a forma de agendamento injusta também acha que a agenda não é muito organizada (p=0,035). No entanto, ao incluir a variável categoria profissional na análise, não foi encontrada diferença estatística (p=0,074) entre os profissionais (Tabela 5).
DISCUSSÃO
A grande maioria dos trabalhadores das equipes de saúde da família de Montes Claros participou deste estudo, com perda de apenas 16,7% dos profissionais. Os participantes do estudo piloto foram considerados perdas. Desse modo, considera-se o estudo de base censitária e representativo dos profissionais de nível superior que integram as equipes de saúde da família.
O número de pessoas atendidas, diariamente, apresentou ampla variação, de três a 45 pessoas. A média de atendimento, diário, apresentou um valor acima da média do número considerado ideal pelos profissionais. Observou-se uma diferença de mais de três vezes entre a média ideal de atendimento diário (13) e o valor máximo de atendimento na Unidade de saúde (45), o que demonstra sobrecarga de trabalho para uma parte dos profissionais.
Quanto ao excedente de atendimentos tem-se que, a cobrança quantitativa, por parte dos gestores, na Atenção Primária à Saúde-APS deva ser revista, pois o olhar clínico nesse cenário de prática exige ampliação da escuta de subjetividade dos usuários dos serviços de saúde. A exigência de quantificar os resultados caracteriza-se como um dos mais importantes estrangulamentos para o bom funcionamento da saúde da família. Esse fato aponta para a falta de compreensão do sistema de saúde, que quer transferir critérios clínicos hospitalares para a saúde da família4.
Considera-se que, a ESF enfrenta um grande desafio para viabilizar-se como estratégia estruturante dos sistemas municipais. Com isso, desvenda fragilidades inerentes aos processos de mudança. Em relação à gestão do sistema, ele não consegue atender adequadamente as novas necessidades de prestação dos cuidados de saúde, utilizando a tradicional lógica quantitativa da produção e a baixa capacidade de inovação gerencial, por exemplos5.
O atendimento clínico domiciliar foi incorporado pela grande maioria dos profissionais pesquisados, em consonância com o previsto no modelo de atenção à saúde proposto pela ESF. O trabalho no âmbito da saúde da família altera o paradigma de atenção à saúde, não se restringindo apenas às Unidades de saúde, requerendo uma maior dedicação da equipe aos usuários, inclusive com atendimento nos domicílios6.
A construção da agenda clínica da maior parte dos profissionais vinculados à saúde da família é realizada com a contribuição de outros profissionais da equipe. Foi destacada a participação efetiva do ACS, que encaminha pessoas para o atendimento clínico. Em consonância com as atribuições previstas para o ACS, como promover a integração da equipe de saúde com a população e a de vigilância à saúde, mantendo a equipe de saúde sempre informada sobre as famílias em situação de risco.
Os profissionais afirmam que, a utilização de critérios de risco organiza melhor a demanda para os atendimentos clínicos, apesar de uma parcela importante de profissionais (21,1%) não utilizar os critérios de risco.
A recomendação para o uso de escalas/ protocolos que estratifiquem os riscos em níveis na avaliação do estado clínico dos usuários dos serviços de saúde7 tem sido proposto não somente no sistema de saúde brasileiro como em diferentes países.
Entre os protocolos de estratificaçao de risco destaca-se a classificação pelo protocolo de Manchester, utilizado no serviço de urgência e reconhecido como poderosa ferramenta para distinguir os pacientes com alto e baixo risco de mortalidade, discriminando aqueles que não irão necessitar de internação e os que deverão retornar para o seu domicílio8. Para os profissionais de saúde que não utilizam critérios de risco para organizar a agenda, temse como hipótese a falta de capacitação para a adoção de instrumentos de definição de critérios de risco e/ou para realizar os levantamentos epidemiológicos, no serviço. Os referidos instrumentos poderiam priorizar o atendimento de pessoas com maiores necessidades.
Desse modo, a educação permanente em saúde é uma estratégia que favorece ao profissional tornar sua prática crítica e reflexiva, com compromisso e uso de técnica competente. Além do mais, o processo ensinoaprendizagem no setor saúde com o envolvimento de trabalhadores contribui para melhorar a qualidade da assistência à saúde9 e melhor organização da agenda clínica dos profissionais.
Um ponto importante constatado, neste estudo, é que a grande maioria relatou não fazer restrições ao agendamento clínico para algum grupo populacional. Isso demonstra que o papel da APS está sendo cumprido, uma vez que a escuta e o acolhimento parecem fazer parte da agenda dos profissionais, mesmo que haja necessidade de referenciar para os outros níveis de atenção.
A atenção primária é o nível de um sistema de serviços de saúde que oferece a entrada para todas as novas necessidades e problemas. Na APS, a promoção da saúde ajuda a prevenir as doenças e melhorar o quadro de saúde da população, reduzindo as diferenças na saúde entre os subgrupos populacionais. Nesse sentido, outro estudo evidenciou associação entre os cuidados da atenção primária a uma distribuição mais equitativa da saúde em populações10.
Para tanto, faz-se necessário o acolhimento, que busca garantir o acesso dos indivíduos aos serviços de saúde. Por meio do acolhimento todos os que procuram pelo serviço são ouvidos com o objetivo de resolver os problemas mais simples e/ou referenciálos para outros pontos de atenção, se necessário11.
Assim, a recepção de um serviço de saúde deve ser compreendida como um espaço importante para reconhecer as necessidades do sujeito, por meio da investigação, elaborar e negociar quais necessidades serão atendidas12 e quais serão referenciadas. Isso porque o SUS deve assegurar a continuidade do cuidado em saúde, nos diferentes níveis de atenção, do nível primário ao ambulatorial especializado e também ao hospitalar.
Neste estudo, o agendamento programado é o mais contemplado na agenda dos profissionais de saúde, dado importante, porque demonstra uma organização do serviço público de saúde. Esse resultado está em acordo com o princípio da vigilância em saúde proposto para a saúde da família. Em contribuição a esse resultado, a participação de outros profissionais na construção da agenda demonstra uma vigilância em saúde, inter e multidisciplinar, de modo que a equipe de trabalhadores se sente responsabilizada pela integralidade das ações no território saúde da família.
Quanto à agenda dos profissionais que ainda dedicam uma maior parte do tempo para a demanda espontânea e os que dedicam igual parte do tempo para a demanda espontânea e a programada faz-se necessário adotar medidas no processo de trabalho, que possam contribuir para a melhor organização das agendas em saúde. Para esse resultado, têm-se como possíveis justificativas ser os profissionais responsáveis por uma população com demanda reprimida para a assistência à saúde e/ou a necessidade de qualificação profissional para a organização do processo de trabalho e do trabalho em equipe, nos moldes previstos pelas políticas que normatizam o trabalho no âmbito da saúde da família.
A organização do processo de trabalho da equipe é importante e tem relação com a falta de acesso ao atendimento clínico. A desorganização gera filas desnecessárias, no sentido de garantir o acesso ao serviço de saúde. É desejável que, a equipe de trabalhadores na saúde da família abra espaço para as inovações na forma de organizar o processo de trabalho, que deve ser pactuado entre os membros da equipe, definindo-se o campo de atuação de cada profissional1.
O processo de trabalho organizado tende a reduzir a demanda espontânea, restringindo aos casos de urgência e emergência, cuja ocorrência não pode ser prevista pelo profissional, por exemplo, a agudização de um processo crônico, fraturas e viroses. Para esses casos, a maioria considerou a possibilidade de atender de três a quatro pacientes ao dia, o que não acontece no cotidiano de enfermeiros e médicos, que atendem 7,42 e 5,47, respectivamente. Isso pode explicar, em parte, o fato de a maioria julgar que a demanda não programada atrapalha de moderadamente a muito a rotina de trabalho, ou seja, o número excessivo de urgência e emergência dificulta a organização da agenda e é um desafio a ser enfrentado.
Mesmo que, a atenção primária não seja o ambiente adequado para a resolução dos problemas de saúde que impliquem risco à vida, o primeiro atendimento é necessário, pois representa a interface entre a comunidade e os serviços de saúde. Para os agravos agudos ou críticos, a avaliação e a decisão profissional é feita a partir de protocolos pré-estabelecidos, que definem se a necessidade de assistência é imediata ou qual o melhor encaminhamento13. Isso reforça a importância das Unidades de Saúde, da atenção primária à saúde, adotarem o acolhimento, os protocolos e critérios de risco e a articulação com os outros níveis para referenciar os casos necessários de atenção nas Unidades de média e alta complexidade.
Ainda, quanto ao acolhimento no serviço de saúde, ele é considerado reprimido quando as pessoas não são atendidas, e isso pode ocorrer devido à ausência de condições básicas para receber os usuários com suas necessidades particulares. Também a configuração física e os espaços nas unidades de saúde, muitas das vezes, propiciam a exposição do usuário ao público que aguarda o atendimento e, assim, constituem um entrave para o acolhimento14. Sendo assim, o acolhimento reprimido deve ser evitado no âmbito da Saúde da Família, mesmo para a situação de demanda espontânea, que precisa ser acolhida e atendida a partir dos critérios de risco. Contudo, a identificação de agendas que ainda privilegiam a demanda espontânea sugere que, as unidades de saúde continuam perpetuando o modelo tradicional de atenção.
Nesse sentido, uma agenda que privilegia o atendimento de emergência e urgência na estratégia saúde da família reitera o modelo de atenção individualizado e com ênfase na demanda espontânea, desconsiderando o contexto social e familiar dos indivíduos na assistência à saúde15, embora o foco da ação na saúde da família tenha como base, sobretudo, a família.
Além do mais, o atendimento com ênfase na livre demanda contraria o objetivo da proposta saúde da família, de reorientar o modelo de saúde na perspectiva da construção coletiva16.
Quanto à opinião dos profissionais sobre a organização do agendamento de pacientes na saúde da família, verificou-se que uma parcela importante de profissionais, em cada categoria profissional, acredita que ela pode ser melhorada. Esse dado é importante para os gestores, que deveriam ouvir os profissionais in loco e, a partir disso, buscar soluções para a melhoria da organização do serviço. É importante considerar ainda que, a falta de uma melhor organização na agenda, muitas vezes, apresenta causas localizadas como a falta de uma maior comunicação entre os membros da equipe, a falta de escuta à comunidade e a pouca disponibilidade para buscar soluções aos problemas apresentados nos territórios de trabalho (conformismo com a situação local). Outro fator que também pode contribuir para a menor organização do serviço é a exigência, em números, para o atendimento clínico diário em desconsideração à qualidade do serviço prestado.
A mudança do modelo assistencial em saúde relaciona-se muito com os espaços locais e micropolíticos de uma organização. Assim, somente a denominação estratégia saúde da família não significa necessariamente mudança de paradigma assistencial. Muitas vezes, o serviço mantém uma organização por ações programáticas e que não respeita os preceitos do modelo de vigilância à saúde, mesmo adotando a proposta de território e população adscrita1. Quanto à dimensão da organização da atenção e do cuidado integral, a reorientação do modelo assistencial parece estar longe de ser alcançada17, pelo menos em termos da agenda em saúde, que ainda carece de organização.
Construir um novo modelo assistencial em saúde nos valores propostos pela saúde da família é um desafio. O modelo de organização dos serviços de saúde deve estar alicerçado em condições sociais, políticas, materiais e humanas, que viabilize o trabalho de qualidade, tanto para aqueles que o exerce como para os que recebem a assistência. O trabalho deve ser focado no usuário e no profissional, para não correr o risco de fazer ruir a motivação dos profissionais da saúde à proposta saúde da família18. Faz-se necessário criar fóruns de discussão para levantar os principais entraves que dificultam a construção do modelo saúde da família, bem como o planejamento a ser feito pelos trabalhadores, gestores e usuários, conjuntamente. A mudança do modelo assistencial demanda alterações dos processos de trabalho, de gestão e de formação19, como uma melhor organização do atendimento clínico nas equipes de saúde da família.
Ser a agenda justa perpassa pelos valores morais de cada profissional de saúde e não foi associada à organização da agenda e à média de atendimentos efetuados diariamente na Unidade de saúde da família. Os limites dos recursos alocados na saúde exigem critérios e parâmetros para priorizar o que e para quem será ofertado o serviço em saúde. Essa decisão envolve além dos fatores políticos, econômicos e legais, a ideologia e os valores morais presentes em uma dada sociedade20.
O tema que envolve a equidade e a justiça social, no âmbito da estratégia saúde da família, é complexo e se aprofunda em face das históricas diferenças regionais, sociais, econômicas, políticas e administrativas no Brasil. Ainda há uma grande parcela populacional tradicionalmente alijada do acesso à saúde, garantido nacionalmente21. Nesse sentido, implantar estratégias para fortalecer a capacidade da atenção primária à saúde e enfatizar a promoção da saúde contribui para melhorar o status de saúde e reduzir custos22. Uma vez que, a forma como a agenda em saúde está organizada poderá contribuir para perpetuar as desigualdades e a segmentação entre os grupos populacionais.
Cabe discutir a escolha do método quantitativo para levantar a opinião dos profissionais acerca da organização da agenda em saúde. A abordagem quantitativa foi escolhida pela proposta de um estudo censitário, que pudesse representar a opinião da totalidade (ou da grande maioria) dos profissionais. Em adição, o método quantitativo favoreceu o cálculo das médias de atendimentos clínicos diários, na visão dos profissionais, além de identificar o número de atendimento considerado ideal e número de atendimento da demanda espontânea. Além de ter favorecido o cruzamento de variáveis relacionadas à organização da agenda e formação profissional. Contudo, o uso do método quantitativo teve como limitação a impossibilidade de compreender os julgamentos dos profissionais quanto à classificação da organização da agenda: pouco a extremamente organizada. Outra limitação deve-se ao fato do estudo ser de corte transversal, de forma que, os resultados aqui apresentados não podem ser tomados como causa e efeito. Algumas hipóteses foram levantadas para explicar os resultados encontrados, no entanto, trata-se de hipóteses não testadas, mas que poderiam nortear novas perguntas e estudos junto aos territórios de saúde da família.
CONCLUSÃO
Os resultados revelam, a partir da opinião dos profissionais, que a construção da agenda no âmbito clínico das Unidades de Saúde da Família, apesar de todas as potencialidades como o atendimento domiciliar, participação de outros profissionais da equipe saúde da família, utilização de critérios de risco, não restrição a grupos populacionais e a maior reserva para a demanda programada fragilidades como o agendamento excedente de atendimentos clínicos diários é uma prática que pode dificultar a efetividade e qualidade das ações em saúde. No mesmo sentido, como fragilidade destaca-se a classificação da organização da agenda em "moderada" e "pouco organizada", para grande parcela dos profissionais, evidenciando necessidade de avanços na construção da agenda clínica. Sugere-se a articulação entre as diversas competências gerenciais, profissionais de saúde e comunidade para melhor compreender o cenário de prática na atenção primária à saúde, que parece valorizar o aspecto técnico quantitativo como essencial, perpetuando a prática produtivista em detrimento da organização da agenda. Em adição, o atendimento diário excedente sobrecarrega os profissionais em suas funções, podendo causar sofrimento e falta de prazer no trabalho, e prejuízo na qualidade da assistência à saúde.
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