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Revista da ABENO

versão impressa ISSN 1679-5954

Rev. ABENO vol.16 no.4 Londrina Out./Dez. 2016

 

 

 

Mudanças curriculares na educação superior em Odontologia: inovações, resistências e avanços conquistados

 

Curriculum changes in higher education in Dentistry: innovations, resistance and obtained advances

 

 

Juliana Maciel de Souza LamersI; Alexandre BaumgartenII; Fernando Valentim BitencourtIII; Ramona Fernanda Ceriotti ToassiIV

 

I Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
II Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
III Estudante de graduação, Bolsista de Iniciação Científica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IV Doutora em Educação, Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino na Saúde da Faculdade de Medicina, Professora adjunta do Departamento de Odontologia Preventiva e Social e Coordenadora do Núcleo de Avaliação da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Correspondência

 


RESUMO

O artigo analisa o desenvolvimento de um currículo integrado de Odontologia orientado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e baseado na construção de competências em uma universidade pública no sul do Brasil. A articulação das atividades acadêmicas com o mundo do trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS) foi uma das principais mudanças desta proposta curricular. O método de investigação foi predominantemente qualitativo, caracterizando-se como um estudo de caso. O corpus de análise constitui-se pela aplicação de questionários e realização de entrevistas individuais semiestruturadas. Participaram do estudo 59 professores, sete técnicos administrativos e três gestores do curso. Os resultados encontrados qualificam o currículo avaliado quanto à integração entre professores de diferentes departamentos e entre as áreas (interdisciplinaridade); cuidado em saúde humanizado centrado nas necessidades do indivíduo/paciente; estímulo à cidadania; ensino clínico integrado, organizado por complexidade de procedimentos; e estágios supervisionados em cenários de prática do SUS (serviços de Atenção Primária à Saúde, de média e alta complexidade, além da gestão em saúde). A integração curricular, um dos eixos estruturantes do currículo e reconhecida como uma potencialidade, também se estabeleceu como um desafio para a consolidação do processo. A qualificação docente para atuar neste currículo, bem como a avaliação curricular continuada, foram aspectos que se destacaram para o fortalecimento do curso. Potencialidades e desafios são apresentados e discutidos em relação a um modelo curricular integrado em Odontologia, apontando para a necessidade de se repensar permanentemente tal currículo, favorecendo práticas educacionais cada vez mais renovadas e democráticas.

Descritores: Avaliação Educacional. Currículo. Educação Superior. Educação em Odontologia.


ABSTRACT

This article analyzes the development of an integrated curriculum of Dentistry guided by the National Curriculum Guidelines and based on skills in a public university from the southern of Brazil. The articulation of academic activities with the work world in the Unified Health System (SUS) was one of the major changes in this curriculum proposal. The method of research was predominantly qualitative, characterized as a case study. The application of questionnaires and conducting of semi-structured individual interviews composed the analysis corpus. The study included 59 teachers, seven administrative staff and three managers of the course. The results qualify the curriculum evaluated about the integration between teachers from different departments and among other areas (interdisciplinarity); humanized care in health focused on the needs of the individual/patient; incentive to citizenship; integrated clinical teaching, organized by complexity of procedures; and supervised internships in the SUS practice scenarios (primary care, medium and high complexity services, as well as health management). The curriculum integration, one of the main principles in the curriculum, was recognized as a potentiality, but also was established as a challenge to the process of consolidation. The teaching qualifications to act in this curriculum, as well as the continuing curriculum evaluation, were aspects that stood out for the strengthening of the course. Strengths and challenges were presented and discussed in relation to an integrated curriculum model in dentistry, pointing to the need of permanently rethink this curriculum, promoting educational practices renewed and democratic.

Descriptors: Educational Measurement. Curriculum. Education, Higher. Education, Dental.


 

 

1 INTRODUÇÃO

O conhecimento científico, desde meados do século XX, passa por renovações com o surgimento de novas teorias que questionam o pensamento simplista e reducionista, o qual teve origem na organização disciplinar da pesquisa, descontextualizando e isolando muitos fenô-menos pesquisados, separando objetos e pessoas para poder observá-los e melhor quantificá-los. Surgem assim, novos campos do conhecimento voltados para o fazer colaborativo e para o trabalho em equipe multiprofissional1.

O campo de estudos curriculares tem sido alvo privilegiado de atenção e crescimento nas últimas décadas, mostrando reformulações curriculares nos diversos graus de ensino no Brasil2.

Na área da saúde, com a instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), os cursos de graduação passaram a buscar a superação do modelo tradicional de ‘grade' curricular e organização pedagógica marcada pela fragmentação de conteúdos, evoluindo por meio de propostas articuladas e orientadas pela prática profissional vinculada ao mundo do trabalho3.

A ideia de currículos mais sensíveis às necessidades do trabalho significou escuta às práticas curriculares nos espaços em que estas ocorrem, e em outros espaços sociais nos quais se aprende saúde. Esta compreensão trouxe aos currículos a noção de espaços de aprendizagem enquanto locais que articulam, intencio-nalmente, processos de aprendizagem e de trabalho4 e o comprometimento do ensino com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)5, tendo a integração ensino-serviço como uma ferramenta capaz de potencializar as atividades curriculares desenvolvidas no curso6.

Para os cursos de Odontologia, as DCN foram implantadas em 20027, a partir da necessidade apontada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB)8. Tais Diretrizes definiram o objetivo do curso e o currículo de base nacional comum, a ser complementado pelas instituições de ensino superior, com uma parte diversificada capaz de refletir a experiência de cada instituição - flexibilização curricular - e aos condicionantes do quadro regional em que se situa9.

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o curso de graduação em Odontologia passou ao longo dos anos por diversas reestruturações baseadas no modelo de currículo mínimo, em 1952, 1962, 1972 e 1982. A LDB e a instituição das DCN favoreceram uma avaliação do currículo vigente no curso, o que levou à ampla discussão pela comunidade acadêmica do modelo de ensino-aprendizagem adotado. Tal processo de reestruturação curricular se concretizou, em 2005, com o então ‘novo' currículo integrado do curso de Odontologia, pautado pelo panorama político do Brasil e baseado na construção de competências10, o que envolve a preparação do estudante para um saber aplicável, saber em ação11.

A arquitetura curricular implementada trouxe inovações pedagógicas nos seguintes aspectos: Seminários de Integração da 1ª a 4ª etapa do curso (75 horas), associando os conteúdos das disciplinas que compõem cada uma das etapas; Acompanhamentos Clínicos da 2ª à 4ª etapa (90 horas), que envolvem o contato com estudantes de etapas mais avançadas, já inseridos em atividades clínicas; Clínicas Integradas da 5ª à 8ª etapa do curso (1005 horas), com abordagem integral ao paciente em graus crescentes de complexidade de procedimentos; e Estágios Curriculares Supervisionados no SUS, no último ano do curso (930 horas)10.

Integrar atividades acadêmicas com o mundo do trabalho no SUS foi um dos principais eixos da mudança do currículo. Desde as etapas iniciais do curso, os estudantes de Odontologia têm a oportunidade de experienciar atividades de ensino teórico-práticas de aproximação, conhecimento e vivência junto aos serviços públicos de saúde, que se intensificam no último ano da formação com o aumento expressivo da carga horária dos estágios curriculares no SUS. Os estágios foram implantados de forma progressiva, buscando propiciar aos estudantes do curso a inserção nos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), por meio da atuação em Unidades Básicas de Saúde e Unidades de Saúde da Família, assim como, em serviços de Gestão e Atenção Especializada na saúde bucal12.

No segundo semestre de 2009, a primeira turma formada no novo currículo concluiu sua graduação. Entendendo o currículo como algo que adquire forma e significado educativo à medida que sofre uma série de transformações no seu desenvolvimento e dentro das atividades práticas13, o projeto de avaliação curricular do curso de Odontologia da UFRGS teve início, no segundo semestre de 2010.

Na primeira etapa do estudo, 360 estudantes do primeiro ao décimo semestre foram ouvidos em relação ao atual currículo (88,5% do total de estudantes matriculados). Foram identificadas questões referentes ao conhecimento dos estudantes sobre a estrutura curricular e projeto pedagógico, planos de ensino, metodologias de ensino-aprendizagem, competências adquiridas ao longo da formação, avaliação da aprendizagem, disciplinas curriculares, seminários, clínicas integradas, estágios e trabalho de conclusão de curso14.

Dando continuidade ao processo de avaliação, a segunda e a terceira etapas da pesquisa envolveram, respectivamente, professores do curso, funcionários técnicos administrativos e gestores, todos atores do processo de mudança curricular. O presente artigo tem como objetivo analisar o desenvolvimento do currículo atual do curso de Odontologia da UFRGS na perspectiva de seus professores, técnicos administrativos e gestores, apresentando os resultados relativos a segunda e terceira etapas do projeto de avaliação curricular.

 

2 METODOLOGIA

A presente pesquisa assume a modalidade estudo de caso15 como método de investigação, numa forma predominantemente qualitativa16, cujo campo de investigação foi o curso de graduação em Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Os sujeitos do estudo foram professores, funcionários técnicos administrativos e equipe diretiva do curso. Todos os professores foram convidados a participar da pesquisa. A seleção dos funcionários técnicos administrativos e gestores aconteceu de modo intencional, levando em consideração o objetivo proposto. Foi utilizado o método da ‘amostragem por bola de neve', na qual o pesquisador faz uma entrevista em profundidade, com um sujeito indicado pela vivência pessoal e informações que este detém sobre o assunto pesquisado; em seguida, o entrevistador seleciona um segundo sujeito, o qual foi recomendado pelo primeiro a pedido do pesquisador e assim, sucessivamente, até o momento em que percebe não encontrar dados novos17. Ao final, fizeram parte do estudo 59 professores, sete técnicos administrativos e três gestores do curso de Odontologia (n= 69).

O corpus de análise constitui-se pela aplicação de um instrumento de coleta de dados - questionário semiestruturado - previamente testado, não identificado (para os professores) e da realização de entrevistas semiestruturadas (para os técnicos administrativos e gestores).

A elaboração do questionário foi baseada no projeto pedagógico do curso, na revisão de literatura realizada sobre o tema em estudo, e no instrumento de pesquisa aplicado aos estudantes do curso na primeira etapa da pesquisa. O questionário foi composto por questões abertas e fechadas, contemplando os seguintes aspectos: perfil docente; sobre a reestruturação curricular; sobre o curso de Odontologia; sobre a prática docente e desafios/sugestões. Os professores receberam informações prévias sobre a realização do estudo e preenchimento do questionário enviado por correio eletrônico. Os questionários, assim, foram entregues aos professores, na forma impressa e, também, encaminhados por correio eletrônico, junto com os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. Os professores tiveram um período de 30 dias para preenchimento e entrega do material, depositando-o em uma urna disponibilizada em local discreto na recepção da Faculdade de Odontologia.

As entrevistas com os técnicos administrativos e equipe diretiva foram realizadas por um único pesquisador, seguindo um roteiro pré-testado, de forma individual, gravadas em equipamento de áudio e integralmente transcritas. Todas as transcrições foram devolvidas aos entrevistados para que pudessem lê-las, verificando se estavam de acordo com as ideias apresentadas e, se julgassem necessário, complementassem seus relatos. A coleta de dados aconteceu entre 2012 e 2013.

Foram analisados, descritivamente, os dados de perfil docente e as respostas referentes às questões fechadas do questionário, por meio do software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS). Já os dados qualitativos foram interpretados pelo método da análise de conteúdo18.

O estudo teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade (Projeto nº 20297).

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os protagonistas do estudo: perfil dos profes-sores, técnicos administrativos e gestores

A percepção dos professores, responsáveis pela mediação do conhecimento e pelo processo de avaliação das aprendizagens, a respeito da implantação do novo currículo é de suma importância, pois, pela experiência cotidiana com os estudantes e pela atuação como mediadores do conteúdo, os docentes representam fonte significativa para uma avaliação das turmas de estudantes que ingressaram em um novo currículo19.

De um total de 113 professores vinculados ao curso de Odontologia da UFRGS no período do estudo, 59 (52,2%) participaram dessa pesquisa de avaliação curricular. Destes, a maioria eram mulheres (50,8%), com idade entre 29 e 38 anos (52,5%), que exerciam atividades docentes em diferentes períodos do curso. Eram professores adjuntos (71,2%), doutores (96,6%), com carga horária de trabalho de 40 horas com dedicação exclusiva (74,5%) (Tabela 1).

O estudo contou com a avaliação de professores de diferentes áreas, incluindo desde aquelas voltadas ao ensino clínico (Endodontia, Periodontia, Prótese, Cirurgia, Dentística, Materiais Dentários, Patologia Bucal/Esto-matologia, Odontologia Preventiva, Radiologia, Ortodontia), até as de formação fundamen-tal/básica (Ciências Biológicas - Biologia Mole-cular, Farmacologia; e Ciências Sociais - Saúde Coletiva, Saúde Pública, Epidemiologia, Sociologia, Psicologia).

Em relação aos técnicos administrativos, sete funcionários participaram das entrevistas, com idade entre 39 e 57 anos, todos apresentando ensino superior completo. Os três gestores do curso de Odontologia participantes do estudo fizeram parte tanto da construção quanto da implementação do currículo avaliado.

Processo de reestruturação curricular: construção coletiva de uma proposta de mudança na formação em saúde

Quando se fala em currículo, entra-se em um campo intenso de discussão, uma vez que o currículo nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos que de algum modo aparece nos documentos de referência e nas salas de aulas. É sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da escolha de alguém ou da visão de um determinado grupo sobre o que seja um conhecimento específico. Por isso mesmo “é produto de tensões, conflitos e concessões culturais e econômicas que organizam e desorganizam um povo” (p. 59)20.

 

 

 

No curso de Odontologia avaliado, pouco mais da metade dos professores que responderam ao instrumento de avaliação curricular (54,2%) relatou ter participado do processo de reestruturação curricular. Os demais ainda não tinham vínculo de trabalho com a UniversidadeNo curso de Odontologia avaliado, pouco mais da metade dos professores que responderam ao instrumento de avaliação curricular (54,2%) relatou ter participado do processo de reestruturação curricular. Os demais ainda não tinham vínculo de trabalho com a Universidade quando da mudança, ou seja, são professores que ingressaram após 2005. Dos professores que participaram, a maior parte afirmou que esta proposta foi construída de forma democrática, participativa, com espaço para contribuir, apresentando conflitos, mas também, com ampla participação da comunidade acadêmica.

"A reforma curricular foi construída de forma democrática. Os diferentes setores da faculdade foram convidados a participar e houve diversos momentos de debate e discussões". (Professor 22)

"Foi construída com participação demo-crática, mas com muitos conflitos devido ao entendimento diverso sobre o papel da Universidade na formação de profissionais de saúde. A lógica privatista influenciou estes conflitos, mas as diretrizes curriculares auxiliaram na determinação dos objetivos". (Professor 44)

Os técnicos, da mesma forma que os professores, relataram que o processo de reestruturação contou com a participação de todos os segmentos da comunidade acadêmica, com espaço para participação, sendo um momento de forte discussão na Faculdade de Odontologia.

"Eu me lembro das reuniões que aconteciam, dos professores externos que vinham conversar sobre o currículo. [...]. A proposta foi construída, sim, por toda a comunidade, tanto de alunos como de técnicos, técnicos sempre em pequeno número, mas dos professores e dos alunos com certeza, dos alunos também, mas todos os professores participaram das suas áreas dando os seus pensamentos...foi uma construção coletiva, com certeza". (Técnico administrativo 5) "Tinham muitas reuniões com os professores, muitas discussões, muita gente a favor, muita gente contra. Foi um período bem turbulento porque tinha que fazer aquela mudança. [...] Momento de discussão muito forte na Universidade". (Técnico administrativo 6)

Os gestores também destacaram a importância da construção coletiva do processo para a efetividade da mudança, contando inclusive com a participação de outros setores da Universidade, como a Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) e da parceria estabelecida com a Associação Brasileira de Ensino Odontológico (ABENO).

"[...] a construção do currículo que temos implantado desde 2005, para mim, é um divisor de águas no modelo de fazer da nossa faculdade. [...] a participação sempre foi muito intensiva. [...] eu entendi que a gente estava caminhando no sentido de fazer a Faculdade de Odontologia ser um centro de formação qualificada de atendimento que superasse o modelo mecanicista de Odontologia e que a gente pudesse trabalhar dentro da lógica da saúde. [...] a reforma curricular foi o motor que impulsionou a mudança de posicionamento político dentro da unidade. Isto realmente foi uma construção coletiva. [...] a gente chamava as pessoas e discutia, ouvia demandas, ouvia críticas, ouvia, e a coisa foi sendo construída por todos. Por todo mundo. Isso foi um dos aspectos mais bonitos da construção, ela foi em conjunto". (Gestor 2)

"[...] desde 2002 que a gente vinha discutindo a mudança, e essa discussão se deu de forma ampla com toda a comunidade da faculdade e envolveu outros setores da Universidade, a própria PROGRAD na época esteve aqui, a ABENO esteve aqui. Isto é, teve uma construção que foi liderada pela COMGRAD que trouxe para dentro da comunidade da faculdade a discussão da adaptação às diretrizes, e essa adaptação a gente decidiu que seria uma mudança efetiva". (Gestor 3)

A mudança na formação dos profissionais da saúde deve começar no próprio processo de construção do projeto pedagógico, que deve ser coletivo, baseado na reflexão crítica sobre as práticas tradicionais de aquisição de novos conhecimentos e possibilitando a participação do maior número possível de todos os envolvidos no cotidiano do currículo21.

Outra característica importante apontada pelo gestor do curso é que a mudança realizada não foi uma simples adaptação de um modelo ‘antigo' para um ‘novo', mas sim, uma mudança estrutural do currículo norteada pelo texto das DCN.

"Na época, eu me lembro que ficou decidido que a gente faria uma reforma geral, não seriam só algumas adaptações, então a gente fez um estudo do que as diretrizes estavam pedindo e tentou na hora de planejar, semestre a semestre, fazer um curso que tivesse o encadeamento de conteúdos no semestre e entre os semestres". (Gestor 1)

Feuerwerker22 reitera que as mudanças no processo de formação profissional têm que ser profundas, não podem ser mudanças de fachada, de simples rearranjos de cargas horárias ou introdução de novas disciplinas. E, mudanças assim, profundas e estruturais, como a proposta pela Odontologia da UFRGS, muitas vezes criam mais resistências do que adesões, sendo fundamental criar uma base comum de diálogo e discussão entre seus protagonistas. Longe de ser um ato neutro, "fazer currículo, é um ato de comprometimento e filiação social de uma particular comunidade ocupacional" (p. 351)23.

Estas resistências também marcaram as mudanças curriculares nessa Universidade, especialmente no que referiu à proposta de trabalho integrado nas clínicas odontológicas.

"Não era a forma de trabalho usual e no início muitas pessoas tiveram resistência, não queriam, não compareciam às reuniões. Assim, eu me lembro que dois anos consecutivos a gente ficou trabalhando em cima disso, até que as pessoas foram se engajando, foram entendendo o que as diretrizes estavam pedindo, que na verdade mudava bastante o perfil do profissional formado neste modelo. Houve muita resistência, especialmente pelos professores da área clínica, em que havia toda uma argumentação de que se perderia qualidade, que os alunos efetivamente não teriam a formação planejada". (Gestor 1)

O currículo deve ser pensado como algo complexo, que não se dá em uma "única lógica, que não se estabelece a partir de explicações simples ou de relações permanentes, simples-mente previstas, planejadas e previsivelmente controladas" (p. 146)24.

As resistências, assim, não devem ser vistas como uma fragilidade da proposta, mas sim, como uma reação necessária e até esperada, já que o conflito remete ao refinamento, revisão, criação de ideias, problematização, prevenindo a cristalização e o dogmatismo de um paradigma25.

A consolidação do currículo e os avanços con-quistados a partir da reestruturação curricular

O currículo se dinamiza na prática educativa como um todo, e nela assume feições que o conhecimento e a compreensão do documento por si só não permitem elucidar26.

No contexto da prática do desenvolvimento curricular, 64,4% dos professores relataram conhecer bem a estrutura do currículo e 47,4% conheciam, já leram alguma coisa sobre o Projeto Pedagógico do curso de Odontologia (Tabela 2).

Dos sete técnicos administrativos ouvidos, dois responderam conhecer bem a estrutura curricular e o projeto pedagógico do curso, quatro conhecem um pouco e um afirmou não conhecer.

Estudo realizado com os estudantes da 1ª à 10ª etapa no curso de Odontologia da UFRGS, avaliando o atual currículo, mostrou que a maior parte deles não conhecia a proposta curricular ao ingressarem no curso (78,6%) e que esta foi apresentada ao chegarem à Universidade (81,4%). Mais de 50% dos estudantes afirmou conhecer bem a estrutura curricular do curso, e 34,2% conhecia um pouco/já tinha lido alguma coisa sobre o projeto pedagógico14.

 

 

 

Quando questionados se o curso de Odontologia possibilita uma formação que prepare o estudante para atuar no mercado do trabalho, a maioria dos professores entende que sim (81,3%). O mesmo foi percebido pelos técnicos e gestores. É um estudante que conclui sua graduação preparado tanto para atuar tanto nos serviços públicos de saúde quanto nos privados.

"A Odontologia proporciona uma formação completa e integrada. O aluno sai com bases sólidas para atuar no mercado de trabalho". (Professor 9)

"Se ele (o estudante) quiser, ele pode sair daqui muito mais preparado para uma vida profissional, seja inserido em saúde pública, em sistemas públicos de saúde ou em uma clínica privada, do que antes". (Técnico administrativo 7)

"Eu tenho segurança que o nosso aluno sai qualificado podendo trabalhar e podendo se comportar num ambiente de clínica privada com competência e podendo trabalhar em um ambiente de serviço público, conhecendo o Sistema Único de Saúde na sua essência e trabalhando. Tanto é que a grande maioria dos aprovados nas residências multiprofissionais são da nossa faculdade, isso é um ganho na formação enorme". (Gestor 2)

Esta mesma percepção positiva em relação à formação para atuar no mercado de trabalho foi relatada por 85,3% estudantes de Odontologia da UFRGS14.

No que se referiu às maiores ênfases do curso de Odontologia, os professores destacaram a formação generalista, ampliada e integral, ênfase na Saúde Coletiva/ Saúde Pública/ Odontologia Social/ Formação para o SUS e a formação em áreas específicas. Já para os técnicos, as maiores ênfases do curso são a formação integral, a Saúde Coletiva, a formação em áreas específicas e a formação generalista/clínico geral.

Ênfases semelhantes foram observadas pelos estudantes do curso, destacando a Saúde Pública/Saúde Coletiva/SUS, as disciplinas específicas e a formação com ênfase no humano/saúde como um todo14.

Os professores perceberam mudanças a partir da reestruturação curricular em relação aos seguintes aspectos: integração curricular entre professores de diferentes departamentos e entre as áreas (interdisciplinaridade), estudantes mais humanizados, metodologias de ensino que permitem espaço para mais discussão, melhorias no atendimento aos pacientes, atividades didáticas diversificadas e estágios curriculares no SUS.

"Integração com colegas, paciente mais bem atendido, aluno mais humanizado, meto-dologias de ensino que permitem espaço para mais discussão". (Professor 2)

"[...] atividades integradoras de várias áreas, atividades didáticas diversificadas como seminários, casos clínicos, etc." (Professor 54)

"[...] o aluno acompanha o paciente de acordo com suas necessidades e de forma mais integrada. Estágios em serviço do SUS é o mais positivo!" (Professor 34)

A integração curricular, prevista desde o início do curso, por meio dos Seminários de Integração e dos Acompanhamentos Clínicos e na sequência curricular, pelas Clínicas Integradas do 5º ao 8º semestre, também foi destacada na fala dos gestores do curso.

"[...] trabalhar integrado, mas para trabalhar integrado tu tens que trabalhar desde o início do curso, tu não podes pensar em integrar quando tu aprendeu aos pedaços, então tem que começar integrado desde o primeiro momento, então, os seminário de integração, os acompanhamentos clínicos eram formas de viabilizar este modelo, de construir conhecimento que deixasse o aluno no último ano capaz de ir para o cenário de prática do SUS com segurança de que aquele espaço, é um espaço legal pra ele." (Gestor 2)

"Eu vou enumerar algumas coisas que deram certo: primeiro: um grande temor que a gente tinha era com o final das disciplinas específicas (perio, dentística, endo), que isso levaria ao extermínio da área do conhecimento, nada mais equivocado. O que eu percebo hoje é que as áreas como perio, dentística, endo, estão mais fortes hoje do que eram na época em que elas tinham aquele domínio, aquele monopólio. Claro que obrigou as pessoas a estudar. Acho que uma grande vantagem, hoje, é o convívio nas clínicas, um convívio muito interessante para o professor. Com isso houve uma integração maior da docência, um reforço das áreas de conhecimento, e quem realmente ganha com isso é o aluno, porque o aluno tem uma oportunidade de trabalhar integradamente [...] não havia pacientes na faculdade, havia necessidades, e hoje eu acho que tem o conceito de paciente, o que eu ouço, o que as pessoas falam em pacientes, no meu paciente, não mais naquele molar que eu preciso fazer diagnóstico de pulpite." (Gestor 3)

As DCN estabelecem a integração curricular como condição essencial da estrutura do curso de graduação em Odontologia7. O ensino baseado na integração proporciona uma aprendizagem mais estruturada e rica, pois os conceitos estão organizados em torno de estruturas conceituais e metodológicas compartilhadas por várias disciplinas27.

Segundo Anastasiou28, as ações integrativas auxiliam o estudante a construir um quadro teórico-prático global mais significativo e mais próximo dos desafios presentes na realidade profissional dinâmica e única, na qual atuará depois de concluída a graduação.

Essa abordagem interdisciplinar da construção do conhecimento na formação em saúde implica em ultrapassar "as fronteiras entre as disciplinas - espaços de confinamento por excelência - e a articulação dos processos de ensino-aprendizagem ao trabalho e à pesquisa" (p. 262)29.

Na percepção dos técnicos, as mudanças curriculares mais significativas aconteceram em relação aos estágios curriculares extramuros que passaram a enfatizar a integração ensino-serviço-comunidade, acontecendo em cenários de prática do SUS (serviços de APS, de média e alta complexidade e gestão em saúde pública) e nas clínicas, que eram organizadas por especialidade e passaram a se constituir por complexidade de procedimentos, prevendo a integração entre as diferentes áreas do conhecimento, com ênfase nas necessidades do paciente.

"[...] no último semestre os alunos faziam um estágio de saúde coletiva no módulo, que era fora da Universidade, eles diziam que era extramuros, mas era só uma clínica que não funcionava aqui dentro. Com a vinda do novo currículo abriram-se os campos de estágios na rede do SUS, e com isso se esgotou aquele modelo. A integração das clínicas também, isso é uma coisa muito positiva, que as áreas começaram a se falar." (Técnico administrativo 1)

"Eu percebo uma integração maior entre as diferentes disciplinas, os diferentes setores, é perceptível uma interação maior entre as diferentes áreas do conhecimento e eu, particularmente, acho muito positivo. O que eu vejo quando eu passo pelas clínicas e que é uma coisa muito bacana é uma série de professores de diferentes áreas dando cobertura ao atendimento. Não é mais aquela forma de tratar por especialidade e cada um olhando para o seu quadrado sem olhar a boca inteira." (Técnico administrativo 7)

Outro aspecto do currículo ressaltado pelos técnicos como um diferencial importante para a atuação profissional do cirurgião-dentista foi a inclusão de conteúdos da área das Ciências Humanas e de Gestão em Saúde.

"[...] é uma mudança muito grande pensar que tu não vem mais só pra aprender a técnica e a pesquisa sobre aquela área, que é muito importante esse lado tecnológico da odontologia, enfim, mas outra área que é a área de humanas e a área da gestão em saúde também e que são outras capacidades que eles precisam desenvolver para o mundo do trabalho e que estavam muito afastados disso." (Técnico administrativo 4)

Avaliação realizada na Universidade Federal da Paraíba sobre o perfil do estudante de Odontologia formado a partir de 2002, por um currículo adequado às DCN, mostrou que os estudantes consideraram importante para o exercício profissional as disciplinas que envolviam as Ciências Humanas30.

As Ciências Humanas na educação em Odontologia constituem-se, ao mesmo tempo, um caminho complexo e fértil para um projeto de humanização que tem o homem como objeto central de reflexão. Seu papel nos currículos é pensar a finalidade e a qualidade da existência humana para além do simples alongamento de sua duração ou bem-estar baseado no consumo e nas metas pré-estabelecidas dos agentes financeiros internacionais31.

Em relação ao perfil de formação do estudante, os professores perceberam as seguintes mudanças: humanização/saberes humanísticos, ética, interesse e conhecimento pela Saúde Pública/ Saúde Coletiva/ SUS, maior entendimento multiprofissional, conhecimento técnico, prática integral/ integralidade, formação generalista com perfil mais amplo, focado nas necessidades do sujeito/paciente.

"Humanização, interesse por saúde pública, maior entendimento de multiprofis-sionalidade." (Professor 2)

"A busca pelo conhecimento técnico de excelência convive com naturalidade com a busca pelos saberes humanísticos assim como o saber em saúde coletiva assumiu um papel central na formação dos estudantes." (Professor 7)

"O estudante é formado no conceito da integralidade, identificado com sua rea-lidade social, expressão humanista e ética de acordo com o perfil traçado pelo projeto da faculdade." (Professor 54)

Essa mesma percepção foi destacada pelos técnicos e gestores, os quais observaram mudanças no perfil dos estudantes quanto aos aspectos relacionados à formação clínica - atuando em todas as clínicas não de forma fragmentada, isolada por especialidades, e sim de modo integrado, realizando diferentes procedimentos de acordo com a necessidade do paciente - e a integração das atividades acadêmicas com o mundo do trabalho no SUS.

"O que eu vejo é que todos os alunos, de uma forma geral, eles modificaram a sua postura. Hoje eu vejo o aluno, semana num paciente fazendo endo, no outro paciente fazendo raspagem, no outro restaurando, na sequencia apresentando um plano de tratamento multidisciplinar." (Técnico administrativo 5)

"Percebo nitidamente diferença. No modelo antigo o aluno era realmente preparado para ir para dentro de um consultório, exercer clínica privada, isso é bem nítido e partir deste modelo novo, a visão que se dá para este aluno e o modelo de profissional, o perfil profissional, tem se voltado para a rede pública e eu vejo que este aluno tem realmente uma visão diferente. Isso eu consigo concretizar, materializar que é assim, através das conversas com os alunos." (Gestor 1).

Corroborando com essas evidências em relação às mudanças no perfil do cirurgião-dentista que vivenciou o currículo integrado, os estudantes do curso apontaram como potencialidades da formação a ênfase na humanização da saúde e o período dos estágios curriculares supervisionados no SUS14.

É preciso compreender que as transformações nos processos educativos não se constroem simplesmente na prática pedagógica, no papel, em ‘ambientes especiais', como as clínicas das faculdades de Odontologia, mas sim em todos os cenários nos quais se dá a prática profissional, enfrentando problemas que se apresentam nas realidades, permitindo reflexão e propondo mudanças32. Além da capacidade e habilidade técnica de tratamento de doenças, é imprescindível que os profissionais sejam capazes de produzir níveis crescentes de saúde na população. Assim, a vivência dos profissionais em todos os espaços onde possa ser produzida a saúde, torna-se uma exigência, sobretudo, se o objetivo é formar profissionais aptos para atuar no SUS33.

Ceccim e Feuerwerker34 argumentam que a atualização técnico-científica é apenas um dos aspectos da qualificação do profissional da saúde e deve englobar aspectos de produção de subjetividade, produção de habilidades técnicas e de pensamento, além do adequado conhecimento sobre o SUS.

A integração ensino-serviço é um dos eixos que busca concretizar as mudanças curriculares por meio de ações diversas na interface do ensino com o serviço35. É uma forma de experiência educacional na qual os estudantes se engajam em atividades que abordam as necessidades do homem e da comunidade, em conjunto com as oportunidades intencionalmente estruturadas para promover a aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes36.

Nessa perspectiva, a inserção dos estudantes de graduação nos serviços do SUS, tem se constituído uma estratégia de grande potencial para a integração da teoria com práticas colaborativas e interprofissionais na formação dos profissionais da saúde37.

No Brasil, o ensino integrado aos serviços públicos de saúde por meio de estágios curriculares tem contribuído para a formação do cirurgião-dentista pela possibilidade do ganho clínico associada com o estabelecimento de vínculos com os pacientes e equipe de saúde, fortalecimento da autonomia para a resolução de problemas/tomada de decisões, comunicação, trabalho em equipe multiprofissional nos serviços de APS, mudança na compreensão sobre as redes de atenção à saúde e o desenvolvimento da competência cultural30,38,39,40.

Por fim, experiências de aprendizagens que promovam a cidadania, também se destacaram como um diferencial na formação deste estudante de Odontologia.

"No modelo curricular anterior a gente nem pensava na formação da cidadania, pensava só na formação profissional, agora não, ele é um cidadão que tem uma atividade profissional. Como cidadão ele tem algumas tarefas, daí entram as competências que ele tem que desenvolver. Às vezes eu vou nas atividades do estágio 1 do estágio 2 e eu vejo o amadurecimento dos alunos, como eles estão inseridos como profissional e como cidadão e isto eles adquiriram aqui dentro." (Gestor 1).

O estímulo ao desenvolvimento da cidadania, entendida como um conjunto de atitudes e valores correspondentes à ética profissional e ao compromisso com a sociedade está presente no texto das DCN7, deve fazer parte de processos educativos dos profissionais da saúde e da própria universidade que pretenda ser socialmente responsável41.

Professores, técnicos e gestores entendem que a mudança curricular trouxe ganhos importantes para todos os seus participantes - especialmente os usuários - melhorou em relação ao currículo anterior, mas não é um processo acabado. Está em constante transformação e deve ser aprimorado, o que passa, necessariamente, pela qualificação do corpo docente e pelo apoio da equipe diretiva.

"O atual currículo do curso tem uma estrutura muito adequada para dar conta do que preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais, o que me motiva para atuar cada vez mais, como uma facilitadora dessa estrutura curricular. Mas também vejo a necessidade de avançarmos na proposta. Isso passa pela capacitação contínua do corpo docente e pelo apoio incondicional da equipe diretiva da Faculdade." (Professor 5)

"É um currículo em construção permanente, que permanentemente ele pode e deve ser alterado, acho que melhorou muito em relação ao currículo passado, a gente perdeu aquele feudalismo das áreas, uma em cada dia [...] a sociedade, que é o nosso usuário final, ganha com isso." (Técnico administrativo 5)

"[...] certamente houve benefícios, mas o processo é permanente, a avaliação é permanente, não existe um fim para o modelo. [...] A transformação é permanente. Não tem currículo estabelecido, tem currículo em construção. Quem pensar em currículo estabelecido já perdeu a mão. Tem que haver mudança, e aí aproveitar o pessoal mais novo, buscar essas novas metodologias e novos recursos de ensino." (Gestor 3)

Vivenciando o currículo: um processo contínuo de aprendizagens e desafios

Buscar o novo na organização curricular é desejável. A inovação é essencial em toda mudança educacional42. Na UFRGS, o currículo do curso de Odontologia modificado a partir das DCN, incorporou aspectos estruturais e pedagógicos inovadores na trajetória acadêmica do estudante. A vivência nesse currículo mostrou importantes mudanças que permitiram qualificar ainda mais a formação do cirurgião-dentista egresso. Com os avanços, desafios também foram observados.

Os desafios mais apontados pelos professores no desenvolvimento curricular referiram-se à integração entre as disciplinas, entre as áreas do conhecimento e entre teoria e prática, à qualificação docente para atuação nessa proposta curricular e à necessidade de discussão continuada dos resultados da avaliação curricular, com avanços em questões específicas, tais como avaliação dos estudantes, melhoria nas condições de trabalho, integração nas disciplinas/ clínicas/ estágios.

"Muito já se avançou com a atual proposta curricular da Odontologia. Discute-se, hoje, questões que há uns poucos anos, nem eram mencionadas. Mas a proposta é processual, precisa de um tempo até que as mudanças pretendidas se concretizem na prática, na rotina da formação. Entendo, desse modo, que precisamos avançar na integração nas disciplinas/ Clínicas/ Estágios e entre elas, na proposta de avaliações baseadas em processos de aprendizagem, nas capaci-tações docentes e em avaliações constantes do currículo." (Professor 5)

Sugeriram, além disso, uma maior integração entre professores da Odontologia com os professores dos demais cursos da saúde na Universidade.

"Achei importante a direção e professores de Odontologia se integrarem em projetos com outros cursos, creio que ainda falta estimularmos nossos alunos a participarem desse processo, bem como os professores das clínicas e disciplinas de início de curso. O fato da Comissão de Graduação do curso participar e apoiar a constituição da Disciplina Integradora com os outros cursos de saúde também considero relevante." (Professor 44)

Para os técnicos, resistências em relação ao atual modelo curricular integrado em áreas específicas e articulado ao SUS - ‘velhas' práticas - são os maiores desafios a serem enfrentados para a consolidação da proposta curricular.

"[...] algumas áreas de resistência. Eu acho que mesmo com a implementação do currículo e a proposta da integração, não são todas as áreas que estão completamente integradas ou atuando de uma forma que é realmente proposta, isso eu percebo. A integração não está concluída, eu enxergo como uma coisa que andou muito, mas que ainda não está concluída, que ainda falta para haver realmente a integração ou a interdisciplinaridade e outra coisa que eu acho que é um desafio, mas não é um desafio única e exclusivamente do currículo, mas é isso, no local de ensino, isso que a gente acabou de ver, com essa senhora que veio aqui e com outras pessoas que vem aqui, que é o desafio de aliar um lugar de ensino que precisa de determinadas coisas, de determinadas, digamos assim, lesões, de doenças pra tratar de forma hierárquica, em termos de complexidade, mas às vezes as pessoas, as pessoas que buscam o atendimento aqui e que ao mesmo tempo a escola precisa delas, elas vão ficando pra trás porque elas não estão na complexidade que se precisa... isso é um nó, isso é um grande nó que vem de muitos anos, aliar o ensino com a necessidade real da população no serviço." (Técnico administrativo 7)

Essa mesma dificuldade na integração curricular foi percebida pelos estudantes do curso que a compreendem em processo de construção14.

Entendendo que reestruturações curriculares acontecem em processo, pode-se afirmar que o contexto apresentado no curso de Odontologia da UFRGS é favorável à mudança de perfil do cirurgião-dentista formado a partir das DCN. No entanto, somente haverá aprendizado a partir de reconhecimento e da compreensão das falhas43 e da noção de que espaço ocupa o conhecimento no currículo (conhecimento em si ou conhecimento para fazer algo)44. A efetivação dessa mudança requer uma atitude crítica dos que desenvolvem e vivenciam cotidianamente o currículo, ajudando a olhar a situação de maneira mais abrangente, com sensibilização e mobilização.

"Os processos de emancipação são estimuladores de intervenções compromis-sadas com as rupturas que atuam no sentido de mudança. Não são medidos pelo tamanho e abrangência, mas sim pela profundidade e significado que têm para os sujeitos envolvidos. São difíceis de dimensionar objetivamente, pois atuam nos espaços de subjetividade e necessitam um tempo de maturação para poder produzir efeitos, que podem ser múltiplos e heterogêneos" (p. 17)45.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados encontrados mostram evidências positivas no perfil do cirurgião-dentista formado pelo currículo do curso de Odontologia estudado, qualificando-o nos seguintes aspectos: ensino integrado que possibilita a articulação entre professores de diferentes departamentos e de diferentes disciplinas (interdisciplinaridade), cuidado humanizado em saúde centrado nas neces-sidades do indivíduo/paciente com estímulo à cidadania dos estudantes, ensino clínico integrado organizado por complexidade de procedimentos e estágios supervisionados em cenários de prática do SUS.

A integração curricular, um dos eixos estruturantes da mudança proposta e reconhecida como uma potencialidade, também se estabeleceu como um desafio para a consolidação do processo. A qualificação docente para a atuação neste currículo aliada à possibilidade de discussão continuada dos resultados da avaliação curricular foram aspectos destacados para o fortalecimento do curso e que merecem a atenção da comunidade acadêmica, já pensando em novas propostas de mudanças na estrutura curricular vigente.

A visão das potencialidades e desafios apresentados e discutidos em relação ao currículo integrado do curso de Odontologia aqui analisado aponta para a necessidade de se repensar permanentemente tal currículo. Não é um currículo acabado e sim vivo, em processo de construção/reconstrução, o que favorece práticas educacionais cada vez mais renovadas e democráticas.

 

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Correspondência para:
Ramona Fernanda Ceriotti Toassi
Faculdade de Odontologia da UFRGS
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