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Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial

versão On-line ISSN 1808-5210

Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac. vol.13 no.3 Camaragibe Jul./Set. 2013

 

 

Manifestações maxilomandibulares de interesse odontológico nos pacientes portadores de displasia cleidocraniana. Relato de um caso clínico

 

Maxillomandibular dental manifestations of interest in patients with dysplasia cleidocraniana. Report of a clinical case.

 

 

Ivson Souza CatundaI; Adelmo Cavalcanti Aragão NetoI; Fabrício Souza LandimII; Isabela Albuquerque DouradoIII; Rebeca Pereira AlcântaraIII; Eduardo Borges da Costa LeiteIV

I DDS. Professor Temporário do Departamento de Prótese e Cirurgia Buco-Facial da Universidade de Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil.
II DDS.Residente do programa de Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial da FOP/UPE, Recife, PE, Brasil
III Acadêmico de Odontologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE, Brasil.
IV DDS. Professor Associado do Departamento de Prótese e Cirurgia Buco-Facial da UFPE, Recife, PE, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Displasia Cleidocraniana é uma anomalia rara, que tem como características principais a aplasia ou hipoplasia clavicular, retardo na ossificação craniana, atresia maxilar, retardo na erupção dentária e presença de supranumerários. Tendo isso em vista, o presente relato se propõe a descrever o caso de um paciente do sexo masculino de 55 anos que compareceu ao ambulatório de Cirurgia Buco-Maxilo-Facial da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com o intuito de se submeter à reabilitação protética implanto-suportada. Foi indentificada, após avaliação imaginológica, a presença de 31 dentes inclusos e lesão radiolúcida, compatível com cisto dentígero, associada a 4 destes. Para o tratamento da lesão e preservação da funcionalidade nervosa, foi instituída a utilização de dispositivo de descompressão. O presente relato apresenta como características relevantes a exposição de uma síndrome rara e aspectos marcantes, bem como a exposição da necessidade de um maior conhecimento por parte dos profissionais de saúde, de forma a se evitar um diagnóstico tão tardio.

Descritores: Displasia Cleidocraniana; Dente não Erupcionado; Cisto Dentígero.


ABSTRACT

The Cleidocranial dysplasia is a rare anomaly that has as main features the clavicular hypoplasia or aplasia, delayed ossification, maxillary hypoplasia, delayed tooth eruption and the presence of supernumerary tooth. The present case report describes the case of a 55 years old male patient who was evaluated at the Oral and Maxillofacial service of the Federal University of Pernambuco (UFPE) in order to undergo an implant-supported prosthesis rehabilitation. Were found, after an image evaluation, the presence of 31 impacted teeth and a radiolucent lesion, compatible with dentigerous cyst that of in proximity with 4 teeth. Regarding lesion treatment, aiming to the preservation of nerve function, was established the placement of a decompression device. This report presents relevant characteristics, as the exposure of a rare syndrome with striking aspects, as well as exposure of the need for greater awareness on the part of health professionals in order to avoid a delayed diagnosis.

Descriptors: Cleidocranial Dysplasia; Tooth, Unerupted; Dentigerous Cyst.


 

 

INTRODUÇÃO

O primeiro caso de Displasia Cleidocraniana foi descrito por Marie e Sainton em 18971. Desde então, mais de quatro mil casos foram publicados sobre essa rara desordem congênita2. A Displasia Cleidocraniana é um distúrbio ósseo autossômico, causado por um defeito no gene CBFA1 do cromossomo 6p21, cuja função principal é a diferenciação osteoblástica1. A doença afeta os ossos que sofrem ossificação intramembranosa e caracteriza-se pela aplasia ou hipoplasia clavicular, retardo na ossificação craniana, alargamento do osso frontal e occiptal3. Pacientes portadores da displasia podem apresentar hipoplasia da maxila, retardo na erupção dos dentes, retenção de dentes decíduos e múltiplos dentes supranumerários4. Outros achados odontológicos podem ser a falha na esfoliação de dente decíduo, fissura submucosa de palato e mal oclusão5. O objetivo deste artigo é relatar um caso de displasia cleidocraniana por meio de uma breve revisão da literatura, correlacionando os achados de interesse com a odontologia.

 

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 55 anos, compareceu ao ambulatório de Cirurgia Buco Maxilo Facial da Universidade Federal de Pernambuco, com intenção de reabilitação por próteses implantosuportadas, haja vista a dificuldade de adaptação das suas próteses removíveis. Questionado sobre a história médica, o paciente negava doenças de base, alterações similares nos familiares, discrasias sanguíneas, hábitos e vícios ou qualquer informação sobre sua condição clínica. O aspecto sindrômico do paciente era relevante, devido a sua baixa estatura, bossas frontais e parietais protuberantes e completava seu exame físico geral com a hipoplasia das clavículas possibilitando um grau extremo de rotação ântero-medial dos ombros.(Figura 1A)

 

 

 

Os exames de imagem preliminares evidenciavam 31 dentes inclusos, sendo 12 maxilares e 19 mandibulares e imagem radiolúcida associada a quatro desses elementos inclusos em íntima relação com o canal do feixe vásculo-nervoso do alveolar inferior esquerdo. (Figura 1B e 2) Diante desses achados, optou-se pela biópsia da lesão cística sob anestesia local e instalação de dispositivo de descompressão conforme descrito por Catunda et al6.(Figura 1C e D) O paciente seguiu em acompanhamento ambulatorial e irrigações diárias de solução fisiológica 0,9% (2X/dia) e digluconato de clorhexidina 0,12% (1X/dia) durante 60 dias que possibilitaram a confirmação do resultado do exame histopatológico de cisto dentígero e posterior enucleação/ exérese cística com menor probabilidade de lesão nervosa, haja visto a formação de tecido ósseo intralesional.

 

 

 

Seguiu-se, então, a programação de proservação dos demais elementos dentários totalmente inclusos e sem evidência radiográfica de patologia com posterior planejamento para a confecção de próteses maxilomandibulares.

 

DISCUSSÃO

A displasia cleidocraniana representa uma patologia óssea geneticamente mediada por um defeito na expressão do gene CBFA1, que é responsável pela diferenciação e formação osteoblástica. A expressão fenotípica dessa entidade patológica varia em função da penetrância gênica, que pode repercutir clinicamente com baixa estatura, hipoplasia clavicular, hipermobilidade dos ombros, hiperdontia, hipoplasia do terço médio da face, bossa frontal proeminente causada pela deficiência da maturação óssea da fontanela anterior e hipertelorismo.7-9

O diagnóstico da displasia cleidocraniana é feito a partir dos sinais clínicos e radiográficos do paciente. No caso em tela, o paciente apresentava dentes supranumerários, hipoplasia clavicular e bolsas parietais e frontais protuberantes, devido ao alargamento do osso frontal e occiptal. Não foi observada relação hereditária, visto que o paciente não apresentava nenhum parente com essa condição.

Os primeiros indícios dessa condição foram descritos por Greic em 1933, com a caracterização de um fóssil Neanderthal que apresentava características clássicas da displasia cleidocraniana. Outra descrição foi feita no esqueleto de uma mulher que vivia na região de Pylos na Grécia Antiga e apresentava ausência de clavículas, baixa estatura e sem evidências suturais na região anterior do crânio. Porém os primeiros relatórios clínicos documentados cientificamente foram atribuídos aos estudos descritivos de Meckel em 1760, que padronizou uma série de características dessa patologia óssea. Os médicos parisienses Marie e Sainton (1897) documentaram 12 casos, e no ano seguinte, observaram o traço familial geração em geração, nomeando formalmente o transtorno em "On hereditária cleidocraniana dysostosis ".10

Apesar de a literatura apresentar relatos de casos consistentes, trata-se de uma condição rara, que acomete cerca de 1 indívíduo em 1.000.000 de habitantes.11 Mesmo sendo considerada uma entidade patológica inócua ao indivíduo e o fato de não envolver nenhum déficit cognitivo, as alterações odontológicas e de desenvolvimento facial podem ocasionar transtornos psicossociais importantes e predispor a alterações patológicas associadas, como maior predisposição ao desenvolvimento de cistos e tumores odontogênicos. Ressaltamos que, no caso apresentado, nenhuma alteração de déficit cognitivo ou de ordem psicossocial foi observada, incluindose a esse fato o total desconhecimento da condição pelo próprio paciente.

A patogênese da displasia cleidocraniana envolve o defeito molecular no cromossomo 6p21, que modifica a transdução do gene de ligação RUNX2, responsável pela indução do gene CBFA1 na diferenciação de osteoblastos e formação óssea. O gene RUNX2 desempenha um papel importante nas Interações epitélio-mesenquimais, que controlam progressivamente a morfogênese dentária e histodiferenciação de o órgão de esmalte.12

Estudos experimentais revelaram que os ratos que faltam o gene RUNX2 falham no desenvolvimento de osso e da estrutura do dente, enquanto que ratos com genes mutantes RUNX2 exibem múltiplos dentes em desenvolvimento.9 A ausência de ambos os alelos do gene resulta na ausência de diferenciação osteoblástica, enquanto haploinsuficiência de RUNX2 em ratos prejudica a diferenciação e o recrutamento de osteoclastos, juntamente com redução na capacidade das células dos ligamentos periodontais para induzir à diferenciação osteoclástica. Esses processos poderiam, em parte, ser responsáveis por erupção dentária retardada.10

Algumas características clínicas isoladas podem simular a displasia cleidocraniana e fazerem parte de variações anatômicas isoladas ou síndromes agressivas. A presença da hipoplasia clavicular é um forte indicativo dessa patologia, mas essa anomalia, quando se apresenta unilateral, pode não apresentar correlação com síndromes. Na Síndrome de Yunis-Varon, há ausência das clavículas, déficit cognitivo importante e alterações em outros sistemas. Alterações da ossificação craniana e presença de fontanelas tardias também podem fazer parte da osteogênese imperfeita. A hiperdontia também pode fazer parte da síndrome de Gardner bem como a falha de erupção dentária pode estar associado a cistos ou tumores odontogênicos.10

Diagnóstico diferencial da displasia cleidocranina

• Síndrome de Gardner

• Síndrome de Yunis-Varon

• Osteogênese imperfeita

• Síndrome Hallerman-streiff

• Síndrome Orofaciodigitais tipo I

O objetivo principal do tratamento do paciente com displasia cleidocraniana é restabelecer o padrão funcional e estético deficiente.13 A abordagem multidisciplinar entre cirurgia bucomaxilofacial, ortodontia e prótese visam remover precocemente elementos dentários supranumerários, com má formação e/ou envolvidos em lesões patológicas, com a finalidade de estimular ortodonticamente a dentição permanente ou reabilitar com próteses. Um parâmetro questionável refere-se à reabilitação por implantes, visto que deficiência de maturação óssea poderia afetar a osseointegração com implantes de titânio, porém não há evidência científica de que responda apropriadamente a tal questionamento.

Dentes decíduos retidos, supranumerários ou com anomalias devem ser removidos, e a assistência ortodôntica deve viabilizar a erupção dos dentes permanentes.9 Dentes permanentes com anomalias devem ser removidos e reabilitados com prótese, com exceção aos elementos que são pilares de aparelhos fixo em crianças. Os dentes inclusos permanentes que não forem passíveis de tracionamento orto-cirúrgico ou de autotransplante devem ser removidos, sobretudo os que apresentam patologias associadas, como odontomas ou cistos dentígeros. A hipoplasia maxilar deve ser tratada precocemente, através da ortopedia dos maxilares.10,11

 

 

 

Alguns autores definem protocolos de tratamento em função do estágio de desenvolvimento dentário e da idade do paciente. Os regimes ortodônticocirúrgicos mais populares são o Toronto-Melbourne, Belfast-Hamburgh e a Abordagem de Jerusalém. O método Toronto-Melbourne baseia-se na extração seriada da dentição decídua programada e depende da medida em que as raízes dos dentes permanentes têm-se desenvolvido. Durante cada processo, que é realizado sob anestesia geral, os supranumerários também são removidos em conjunto com o osso que cobre os dentes permanentes subjacentes. A razão é a de facilitar a erupção espontânea dos dentes permanentes.12

A abordagem Belfast-Hamburgo defende um único procedimento cirúrgico sob anestesia geral para remover toda dentição decídua retida e todos os dentes supranumerários. Além disso,todos os dentes permanentes não erupcionados são expostos para em seguida serem submetidos à tração elástica com a finalidade de completar a atividade eruptiva. A vantagem desse procedimento é que o paciente é exposto a uma única operação cirúrgica sob anestesia geral.8,10

A abordagem Jerusalém se fundamenta em, pelo menos, duas intervenções cirúrgicas, baseada no grau de desenvolvimento da dentição permanente. Durante o primeiro procedimento, os dentes decíduos anteriores e supranumerários são extraídos, e os dentes anteriores permanentes são expostos. Ao mesmo tempo, bráquetes ortodônticos e tração elástica são aplicados, e a ferida cirúrgica é fechada. Durante o segundo componente da abordagem Jerusalém, que ocorre a cerca de 13 anos de idade, os dentes decíduos residuais são extraídos, e expõem-se caninos e pré-molares, finalizando o processo cirúrgico.12

Todos esses métodos terapêuticos apresentam eficiência clínica, desde que cada caso seja avaliado criteriosamente, de forma que seja estabelecido o tratamento mais previsível e com menor morbidade.

Uma das características mais marcantes desse caso é a completa ausência de um diagnóstico inicial. A idade média dos pacientes diagnosticados com a síndrome é de 18.12, contrastando enormemente com o relato apresentado, em que este passou 55 anos, desconhecendo a natureza da patologia.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentre os fatores passíveis de extrapolação conjectural para a ausência de um diagnóstico inicial, estão as precárias condições da saúde no Brasil da metade do século XX até o começo do XXI, o que, com certeza, corroborou para a subnotificação da condição, não deixando de mencionar um desconhecimento dos sinais, sintomas e características de uma síndrome tão marcante quanto a displasia cleidocraniana por parte dos cirurgiões dentistas que o atenderam anteriormente. Dessa forma, foi do intuito dos autores à apresentação de um caso clínico que ilustrou a totalidade das nuances da síndrome bem como abordagem de uma modalidade de tratamento conservadora para os cistos dentígeros em um paciente portador de múltiplas inclusões dentárias.

 

REFERÊNCIAS

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7. Becker A, Lustmann J, Shteyer A. Cleidocranial dysplasia: Part 1--General principles of the orthodontic and surgical treatment modality. American journal of orthodontics and dentofacial orthopedics : official publication of the American Association of Orthodontists, its constituent societies, and the American Board of Orthodontics 1997;111:28-33.

8. Becker A, Shteyer A, Bimstein E, Lustmann J. Cleidocranial dysplasia: Part 2--Treatment protocol for the orthodontic and surgical modality. American journal of orthodontics and dentofacial orthopedics : official publication of the American Association of Orthodontists, its constituent societies, and the American Board of Orthodontics 1997;111:173-183.

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10. Roberts T, Stephen L, Beighton P. Cleidocranial dysplasia: a review of the dental, historical, and practical implications with an overview of the South African experience. Oral surgery, oral medicine, oral pathology and oral radiology 2013;115:46-55.

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Endereço para correspondência:
Ivson Souza Catunda
Departamento de Prótese e Cirurgia Buco-Facial
da Universidade Federal de Pernambuco
Av. Prof. Moraes Rego, 1235 - Cidade
Universitária Recife - PE - CEP: 50670-901

e-mail:
ivsoncatunda@gmail.com