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Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial

versão On-line ISSN 1808-5210

Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac. vol.14 no.1 Camaragibe Jan./Mar. 2014

 

 

Fasceíte Necrotizante Facial Causada por Infecção Odontogênica

 

Facial necrotizing fasciitis caused by odontogenic infection

 

 

Fábio de Freitas Pereira FreireI; Renata Moura Xavier DantasI; Thiago Felippe Oliveira de MacedoI; Leonardo Morais Godoy FigueiredoI; Laís Gomes SpínolaII; Roberto Almeida de AzevedoIII

I Cirurgião Dentista, Residente do Serviço de CTBMF do Hospital Santo Antônio OSID/ HGE/ UFBA.
II Cirurgiã-Dentista, Interna do Serviço de Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial do Hospital Geral do Estado – UFBA no ano 2012.
III Preceptor do Serviço de CTBMF do Hospital Santo Antônio OSID/ HGE/ UFBA.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A fasceíte necrotizante (FN) da região cérvico-facial é uma infecção rara, que acomete, geralmente, os pacientes com doenças que levam à imunossupressão sistêmica. É caracterizada por uma necrose extensa dos tecidos moles, com possível formação de gases nos tecidos subcutâneos, seguida por progressão rápida e potencialmente fatal. Este trabalho tem por objetivo descrever um caso de fasceíte necrotizante com origem odontogênica, enfatizando o diagnóstico, evolução clínica e o tratamento dessa patologia. Paciente do gênero feminino, 22 anos, com histórico de infecção odontogênica evoluindo para um quadro de fasceite necrosante, sendo tratada por equipe multidisciplinar e realização de desbridamento cirúrgico e antibioticoterapia. A FN facial é uma infecção de progressão rápida e potencialmente fatal, que requer diagnóstico e tratamento adequado e imediato. O tratamento é composto por antibioticoterapia sistêmica, desbridamento cirúrgico e monitoramento intensivo.

Descritores: Infecção; Infecção focal dentária; Angina de Ludwig.


ABSTRACT

Necrotizing fasciitis (NF) of the cervical-facial region is a rare infection that usually affects patients with diseases that lead to systemic immunosuppression. It is characterized by extensive soft tissue necrosis with possible formation of gas in the subcutaneous tissues, followed by rapidly progressive, potentially fatal. The aim that this paper is described a case of necrotizing fasciitis with odontogenic origin, emphasizing the diagnosis, clinical course and treatment of this pathology. Female patient, 22 years old, with a history of odontogenic infection, evolving into a framework of necrotizing fasciitis, being treated by a multidisciplinary team and performing surgical debridement and antibiotic therapy. The NF facial infection is rapidly progressive, potentially fatal condition requiring diagnosis and treatment and immediate. The treatment consists of systemic antibiotics, surgical debridement and intensive monitoring.

Descriptors: Infection; Focal infection dental; Ludwig's angina.


 

 

INTRODUÇÃO

A Fasceíte Necrotizante (FN) foi descrita pela primeira vez, em 1871, embora o termo FN tivesse sido reportado pela primeira vez, em 1952, por Wilson, que denominou, assim, as infecções necrotizantes de tecidos moles, em que a fáscia é invariavelmente envolvida.1 A FN, que acomete a região de cabeça e pescoço, é uma infecção rara, que se espalha rapidamente, pelos tecidos moles, de origem polimicrobiana, caracterizada por necrose extensa e formação gasosa no tecido subcutâneo e fáscia superficial.2 As bactérias patogênicas mais comumente envolvidas na FN são as espécies Streptococcus e Staphylococcus, especialmente o grupo β- hemolítico (Streptococcus pyogenes).3

O sucesso para o tratamento dessa infecção consiste em um diagnóstico rápido, acompanhado de uma intervenção cirúrgica agressiva e antibioticoterapia sistêmica. Caso esse tratamento não seja instituído precocemente existe, uma possibilidade alta de septicemia, insuficiência múltipla de órgãos e morte. 2,3,4,5

Os Cirurgiões Bucomaxilofaciais, muitas vezes, se deparam com casos de FN de cabeça e pescoço, pois as infecções dentárias são as causas mais comuns da doença.2 Este artigo tem como objetivo relatar um caso raro de FN de origem odontogênica, discutir o diagnóstico, as alterações fisiológicas e os aspectos atuais no tratamento dessa patologia.

 

RELATO DE CASO

Paciente C.J.S. do gênero feminino, 22 anos, ASA I compareceu ao serviço de cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial do Hospital Geral do Estado da Bahia (HGE-BA) com aumento de volume importante em região submandibular direita, com histórico de pericoronarite há quatro dias. Ao exame físico, apresentava fácies tóxica, frequência respiratória 22 IPM, frequência cardíaca 96 BPM, pressão arterial 110x80mmHg, temperatura corporal periférica de 37ºC, referindo odinofagia, disfagia e queixa álgica intensa. A área edemaciada apresentava-se hipertérmica, lisa, brilhante, avermelhada e com ponto de flutuação extraoral (Figura 1). Ao exame intrabucal, observou-se raiz residual correspondente à unidade 46 e lesões cariosas extensas nas unidades 47 e 48, higiene oral deficiente, tendo sido estabelecido o diagnóstico de trismo. Foi determinada a internação hospitalar para monitorização de vias aéreas, terapêutica medicamentosa venosa e drenagem cirúrgica. A antibioticoterapia venosa inicial empírica foi realizada com penicilina G cristalina 5.000.000 IV 4/4horas, associada a metronidazol 500 mg IV 8/8horas; analgesia realizada com tramadol 100mg IV 12/12horas e dipirona sódica 1g IV 6/6horas. Foi realizado hemograma cuja contagem de leucócitos foi 19.2 10^3/μL, hematócrito, 29.1%, e hemoglobina, 10.5g/dl. Os demais parâmetros hematológicos e bioquímicos não apresentaram alterações. A drenagem do abscesso foi realizada sob anestesia local, com instalação de dreno rígido permitindo, assim, vias de acesso para drenagem e irrigação diárias. No terceiro dia pós-drenagem, a região da pele tornou-se enegrecida, abrangendo toda a área do dreno, com limites mal definidos e aspecto liso (Figura 2.A ), evoluindo em poucas horas para uma extensa área rugosa e de coloração arroxeada em região submandibular/cervical direita com secreção purulenta e drenagem espontânea, além de pontos endurecidos e eritematosos em sua periferia, descolamento da fáscia e trismo severo (Figura 2.A). A tomografia computadorizada contrastada apresentou imagens múltiplas de lojas hipodensas em espaço massetérico, compatível com conteúdo gasoso, envolvendo músculo masseter e pterigoideo medial (Figura 3). Dessa forma, foi caracterizado o quadro de fasceíte necrotizante, e a medicação antibiótica foi substituída por Gentamicina 240mg EV 24/24h e Clindamicina 600mg EV 08/08 horas. No mesmo dia, foi realizado desbridamento cirúrgico sob anestesia geral e remoção das unidades 46,47 e 48 que, devido a cáries extensas, se constituíam em focos infecciosos (Figura 4). O leucograma dessa data apresentou-se em 22 10^3/μL, diminuindo progressivamente, após a intervenção. A paciente permaneceu internada por 75 dias, pós desbridamento. Nesse período, realizava-se irrigação 03 vezes ao dia, com soro fisiológico 0.9%, e se fazia uso de curativo com pomada à base de sulfadiazina de prata 1% e nitrato de cério 0,4% e revestimento

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao ser admitida, a paciente cursava com parâmetros clínicos compatíveis com discreta anemia, e o hematócrito e a hemoglobina oscilaram entre parâmetros de normalidade e alterações frequentes. Foi solicitada avaliação com hematologista que diagnosticou a paciente com anemia e plaquetose e precreveu Noriporum 01 ampola IM 3/3 dias e sulfato ferroso 150mg via oral até normalização dos parâmetros laboratoriais.

A paciente evoluiu sem intercorrências pós desbridamento cirúrgico e, após resolução da infecção, foi submetida a procedimento estético para recobrimento com enxerto de pele da área afetada pela equipe de cirurgia plástica (Figura 5).

 

 

 

DISCUSSÃO

A idade dos pacientes acometidos com FN varia de 12 a 82 anos, sendo uma média de 45,2 anos. Em geral, o gênero masculino é mais afetado que o feminino, numa proporção de 3:1, respectivamente. Possui uma predominância maior pela mandíbula em relação à maxila e, geralmente, está associada a diabetes, má-nutrição, uso abusivo de álcool, tabaco ou drogas, hipertensão arterial, administração prolongada de corticosteroides, infecção pelo vírus da imunodeficiência humana, cardiopatia, cirrose hepática, insuficiência renal e esquizofrenia. 2,4,5

Apesar disso, FN pode acometer, também, pacientes saudáveis.6 Como no caso descrito, não foram encontrados na literatura casos relatados de FN com anemia, mas esse fator já é compreendido como fator de risco. É necessária uma análise criteriosa da relação de causalidade entre as patologias, uma vez que a disfagia provocada por infecções odontogênicas pode gerar anemia assim como o quadro anêmico contribui para o surgimento da FN como fator imunossupressor.

Geralmente os pacientes com FN apresentam-se fracos, apáticos, confusos, com episódios febris, taquicardia, taquipneia, hipotensão e leucocitose. No caso relatado, observou-se fraqueza, apatia, episódios febris, taquicardia, taquipneia, leucocitose e neutrofilia acentuada. 1,2,4,6

Após a etapa indiferenciada da doença, o estágio seguinte é a rápida disseminação da infecção ao longo dos planos fasciais superficiais. Esse processo é mediado pela colagenase e hialuronidase produzidas por estreptococos do grupo A, que atuam na destruição do tecido local, na extensão da infecção e na toxicidade sistêmica, determinando a natureza fulminante do processo necrótico. 1,4,7,8,9 Na FN, a fáscia aparece primariamente envolvida, e o músculo é inicialmente poupado, o que foi claramente observado neste relato. No entanto, com a progressão, se a fáscia do músculo estiver completamente envolvida, a necrose muscular ocorre. A evolução da doença, mesmo com tratamento adequado, pode levar ao choque séptico, uma vez que são as defesas naturais do paciente os verdadeiros responsáveis pela cura. Por isso, o choque ocorre, principalmente em pacientes com imunossupressão. 4,10

A literatura defende que a aparência da FN se assemelha a uma ferida eritematosa, quente, edemaciada, de bordos mal definidos. 4,11,12 Com a continuidade do processo infeccioso, a dor local é substituída por dormência ou analgesia, como resultado da destruição ou compressão dos nervos cutâneos. Com a evolução da infecção, a pele torna-se inicialmente pálida, em seguida, roxa e, por fim, gangrenosa, podendo haver a formação de gás, que é percebida pela presença de crepitação durante a palpação da região acometida. A avaliação clínica da FN pode ser baseada nos sinais cutâneos, sendo que o estágio I (precoce) inclui sinais clínicos de rigidez, eritema e edema da pele; estágio II (Intermediário), a formação de bolhas, e estágio III (avançado) envolve crepitação, anestesia e necrose da pele. No caso apresentado, houve eritema, calor, edema, trismo, superfície cutânea necrosada e formação gasosa, detectada durante a palpação. 13 De acordo com essa classificação, a paciente evoluiu rapidamente para o estágio III da FN.

O tratamento consiste em internação hospitalar com terapia antibiótica sistêmica, desbridamento cirúrgico radical, monitoramento constante, suporte eletrolítico, manutenção das vias aéreas e remoção do foco infeccioso, assim que possível. A penicilina endovenosa é a droga inicial de escolha, seguida de um esquema triplo de antibióticos, compostos por penicilina resistente à penicilinase/meticilinase, aminoglicosídio, como Vancomicina (ou uma cefalosporina de terceira geração) e para bactérias gram-negativas anaeróbias, é recomendada cobertura com Clindamicina ou Metronidazol. 1,2,3,4,12

Em caso de propagação da infecção, mesmo após o desbridamento inicial, o paciente deverá ser devolvido à sala de cirurgias tantas vezes quanto necessário para mais desbridamentos cirúrgicos.14 Em função dessa variável, a reconstrução imediata após tratamento de FN é contraindicada.4 O recobrimento do tecido exposto deve ser realizado, quando não mais houver sinais de infecção, e os parâmetros clínicos e laboratoriais estiverem normalizados. Dessa forma, a reintegração do paciente acometido por FN na sociedade requer um tratamento multidisciplinar e dividido em etapas condicionadas à resposta individual, à infecção e aos tratamentos propostos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A FN facial é uma infecção de progressão rápida, potencialmente fatal, que requer o diagnóstico e a intervenção imediatos. A antibioticoterapia sistêmica, associada à remoção da causa, no caso das de origem odontogênica a remoção de focos infecciosos intraorais e, o desbridamento cirúrgico e o monitoramento intensivo, consistem na terapêutica adequada. A boa e rápida resposta dessa paciente ao tratamento deve-se à condição clínica satisfatória, com ausência de doença imunossupressora subjacente.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Fábio Freire
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