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RGO.Revista Gaúcha de Odontologia (Online)
versão On-line ISSN 1981-8637
RGO, Rev. gaúch. odontol. (Online) vol.61 supl.1 Porto Alegre Jul./Dez. 2013
REVISÃO / REVIEW
Amelogênese imperfeita: aspectos clínicos e tratamento
Amelogenesis imperfecta: clinical aspects and treatment
Marina Sousa AZEVEDOI; Marília Leão GOETTEMSI; Dione Dias TORRIANIII; Ana Regina ROMANOII; Flávio Fernando DEMARCOI
I Universidade Federal em Pelotas, Faculdade de Odontologia, Programa de Pós-Graduação em Odontologia. Rua Gonçalves Chaves, 457/504, Centro, 96015-560, Pelotas, RS, Brasil.
II Universidade Federal em Pelotas, Faculdade de Odontologia, Departamento de Odontologia Social e Preventiva. Pelotas, RS, Brasil.
RESUMO
O objetivo deste trabalho foi apresentar uma revisão de literatura, avaliando aspectos clínicos e opções de tratamento da amelogênese imperfeita, com a intenção de fornecer ao cirurgião-dentista subsídios para o diagnóstico e escolha de tratamento mais apropriado, levando em consideração a individualidade de cada caso. Apesar de a amelogênese imperfeita ser uma doença rara, em que a formação do esmalte é afetada, o profissional deve estar preparado para lidar com a situação e fornecer o suporte, tanto clínico quanto emocional, necessário para esses pacientes. Historicamente, pacientes com essa condição eram tratados com extrações e a confecção de próteses totais. Entretanto, atualmente é possível restaurar estética e função a níveis aceitáveis e como consequência interferir positivamente no comportamento e autoestima do paciente. Estudos com maior tempo de acompanhamento ainda são necessários, com o intuito de verificar a durabilidade dos diferentes materiais e técnicas restauradoras em casos de amelogênese imperfeita.
Termos de indexação: Amelogênese imperfeita. Esmalte dentário. Reabilitação bucal.
ABSTRACT
The purpose of this article is to present a review regarding clinical aspects and treatment alternatives for AmelogenesisImperfecta with the intention of facilitating dentists' diagnosis and most appropriate treatment choices, taking into account the peculiarities of each case. Although AmelogenesisImperfecta is a rare disease that affects enamel formation, professionals must be prepared to deal with this condition to give the clinical and emotional support needed by patients. Historically, patients with AmelogenesisImperfecta were treated by means of extractions and by the use of fully removable dentures. However, it is possible to restore esthetics and function to an acceptable level that can positively affect the patient's self-confidence and behavior nowadays. Patient long-term follow up studies are still needed in order to verify the durability of the different materials and restorative techniques in AmelogenesisImperfecta cases.
Indexing terms: Amelogenesis imperfecta. Dental enamel. Mouth rehabilitation.
INTRODUÇÃO
A Amelogênese Imperfeitacompreende um amplo grupo de anomalias genéticas que afetam a formação do esmalte pela diferenciação imprópria dos ameloblastos1, podendo ocorrer em ambas as dentições, decídua e permanente2.
De acordo com Wiktop & Rao3, o termo deveria ser usado apenas para descrever defeitos hereditários, não associados com achados sistêmicos. Esta definição implica que a mutação ocorreria apenas em genes altamente especializados na formação do esmalte.
Entretanto, dada a possibilidade de interações complexas tanto genéticas quanto bioquímicas ocorrerem, Aldred et al.4 sugerem uma redefinição do termo amelogênese imperfeita como um grupo de condições de origem genética, que afeta a estrutura e aparência clínica do esmalte de todos ou praticamente todos os dentes, e que pode estar associado com mudanças morfológicas e bioquímicas em qualquer lugar do organismo.
As formas de herança relatadas incluem autossômica dominante ou recessiva e ligada ao cromossomoX dominante ou recessiva3. Mutações no gene amelogenina (AMELX) causam as formas de herança autossômica5.
Os padrões anatômicos e histológicos incluem hipoplasia de esmalte, hipomineralização que pode ocorrer devido à hipomaturação ou hipocalcificação do esmalte, ou há a presença de um fenótipo combinado, visto na maioria dos casos6-8.
A prevalência da amelogênese imperfeita, considerando-se todos as formas, varia de 1:700 to1:14.000, de acordo com a população estudada6. Embora os casos possam ser considerados esporádicos, o suporte necessário para o atendimento desses indivíduos é substancial, tanto no aspecto clínico quanto no aspecto emocional9, sendo fundamental que o profissional esteja preparado para lidar adequadamente com a situação.
Dentre os objetivos do tratamento dispensado aos pacientes com amelogênese imperfeita incluem-se o alívio da sensibilidade e a melhora da estética facial e da função1. Historicamente, estes costumavam ser tratados com extrações e a confecção de próteses totais10. Esta opção pode ser psicologicamente danosa, especialmente para pacientes jovens11. Atualmente, técnicas restauradoras adesivas, overdentures, confecção de coroas metalocerâmicas ou livres de metal, próteses parciais fixas e restaurações inlay/onlay são possibilidades para o tratamento reabilitador de pacientes com amelogênese imperfeita1.
O objetivo deste trabalho foi realizar uma revisão de literatura sobre aspectos clínicos e opções de tratamento da amelogênese imperfeita, com a intenção de auxiliar o cirurgião-dentista no diagnóstico e definição do plano de tratamento mais apropriado, evidenciando a importância de considerar-se a individualidade de cada caso.
Aspectos clínicos e diagnóstico
Para estabelecer-se o diagnóstico, exames radiográficos intra e extra-orais devem ser realizados, em conjunto com a análise clínica. Como em qualquer condição potencialmente hereditária, deve-se avaliar a presença de casos na família. O diagnóstico genético e laboratorial é, atualmente, usado apenas para fins de pesquisa9.
De acordo com o aspecto clínico, a amelogênese imperfeitapode ser subdividida em várias formas, dependendo do tipo de defeito apresentado e estágio de formação do esmalte em que tenha ocorrido a alteração.
Amelogênese imperfeita hipoplásica: No tipo hipoplásico, em que o defeito ocorre na formação da matriz do esmalte, este se apresenta fino e com presença de sulcos e fossas. Radiograficamente apresenta-se menos espesso, mascom radiopacidade e contraste normais com a dentina12.
Amelogênese imperfeita hipocalcificada: Na forma hipocalcificada, o defeito ocorre na mineralização do esmalte e, portanto, este se mostra áspero, descolorido e com menor consistência. Apresenta maior susceptibilidade ao desgaste e desta forma, a anatomia dentária tende a ser afetada7,9,13. A radiopacidade do esmalte é semelhante à da dentina nesses casos12.
Amelogênese imperfeita hipomaturada: Quando o defeito ocorre na maturação do esmalte, este tende a apresentar espessura e dureza normais, mas com um manchamento opaco, que pode variar de branco a amarelo-amarronzado ou vermelho-amarronzado e tendência a descolar-se em lascas ao invés de desgastarse3,9,13. Devido ao seu aspecto, pode ser confundida com a fluorose dentária. O esmalte hipomaturado apresenta radiodensidade similar ou menor que a dentina12.
De acordo com a literatura, a sintomatologia e as complicações bucais, independente do tipo, são similares: sensibilidade dentária, estética deficiente e dimensão vertical diminuída. A insatisfação com tamanho, forma e cor dos dentes e a deficiência mastigatória são queixas frequentes em pacientes com amelogênese imperfeita14-16.
A higiene bucal frequentemente apresentase insatisfatória, como consequência da sensibilidade e também da maior suscetibilidade ao manchamento por café, cigarro e alimentos12.
Além das deficiências quantitativas e qualitativas, podem estar eventualmente associadas anomalias como calcificação pulpar, taurodontismo e má-formação radicular, falha na erupção e impactação de dentes permanentes ou agenesia, reabsorção radicular e coronária além de problemas oclusais como mordida aberta anterior e posterior17.
Tratamento
A existência de uma diversidade de materiais e métodos restauradores amplia as possibilidades de tratamento, embora possam confundir o profissional quanto ao mais adequado1. Certas condições devem ser levadas em consideração durante a elaboração de um plano de tratamento, que vão além da escolha da técnica a ser realizada, como por exemplo, os desejos e expectativas do paciente, possibilidade financeira, tipo e severidade da amelogênese imperfeita, idade e estado de saúde bucal. É fundamental considerar ainda, a importância do tratamento não apenas do ponto de vista funcional, como também sua influência na saúde psicossocial do indivíduo14,17-18.
Essa influência foi comprovada no estudo de Coffieldet al.18, que mostrou efeitos psicossociais marcantes em pacientes com amelogênese imperfeita, comparandose com indivíduos sem qualquer alteração. Tais resultados sugerem que o tratamento reabilitador pode significar uma importante melhora na qualidade de vida e aspectos sociais, o que ressalta sua importância.
No atendimento de crianças e pacientes jovens, o planejamento deve considerar o desenvolvimento dentário e o potencial crescimento maxilar e mandibular10. Dessa forma, restaurações adesivas são indicadas19. É importante que tão logo se realize o diagnóstico, seja instituído o tratamento provisório, para melhorar a aparência e função10, bem como evitar o desgaste dentário característico.
A atrição na região de molares pode resultar na perda da dimensão vertical de oclusão. Nesses casos, fazse necessária a realização de aumento de coroa clínica e/ou aumento da dimensão vertical. Siadatet al.20 realizaram o aumento de coroa nos dentes superiores e inferiores de um paciente com amelogênese imperfeita cujo enceramento diagnóstico evidenciou espaço inter-oclusal insuficiente para colocação de próteses fixas.
Em outro caso apresentado pela literatura, o desgaste dos molares resultou na perda da dimensão vertical, sendo realizado pelo autor confecção de restaurações provisórias em uma nova dimensão vertical estabelecida, as quais foram usadas por três meses, sem qualquer complicação16. O mesmo procedimento foi realizado por Robinson et al.15, porém preconizando-se um tempo maior de uso das restaurações provisórias na nova dimensão, cerca de seis meses.
Bouvieret al.10 optou por aumentar a dimensão vertical de oclusão somente após a erupção dos segundos molares e monitorou por um período de 3 meses, checando problemas na articulação ou funcionais, comuns durante esta etapa de tratamento.
Em virtude dos expressivos avanços na área da Odontologia estética, é possível, atualmente, restaurar estética e função a níveis aceitáveis. A necessidade de preparos coronários totais tem diminuído e restaurações adesivas colocadas em supra-oclusão são uma alternativa às coroas totais no manejo do paciente com amelogênese imperfeita12.
A questão financeira também deve ser considerada e discutida15, Sengun & Ozer12 ao tratar um paciente de nível socioeconômico considerado baixo, estabeleceram um plano de tratamento incluindo onlays de níquelcromo e restaurações diretas de resina composta. Estes materiais foram escolhidos devido ao seu baixo custo quando comparados às restaurações de cerâmica e porque asseguram a reabilitação estética e funcional até que o paciente tenha possibilidades de cobrir os custos de uma restauração de porcelana que, de acordo com os autores, seria a opção mais adequada para estes casos.
É importante considerar ainda que a adesão em estruturas dentárias morfologicamente alteradas pode ser complicada, havendo alguns relatos de falha na adesão da resina à dentina em dentes afetados por amelogênese imperfeita, devido ao fato de que a dentina exposta ao meio bucal sofre transformações morfológicas e de composição que resultam em diminuição da dentina peritubular e obliteração parcial dos túbulos dentinários, o que torna-a mais resistente ao ataque ácido. Hiraishiet al.19 avaliaram em dentes decíduos a resistência de união de um adesivo convencional em dentina sadia e afetada por amelogênese imperfeita. Encontrou-se menor resistência nos dentes decíduos com amelogênese imperfeita. A tentativa de aumentar o tempo de condicionamento ácido de 15 para 30 segundos não aumentou a resistência de união.
Em outro caso revisado, a terapia com implantes1 foi apresentada ao paciente como parte do tratamento e foi recusada em virtude da condição financeira. Fatores socioeconômicos também foram o motivo de um paciente recusar o tratamento ortodôntico que proporcionaria resultados mais favoráveis, tendo sido realizadas apenas restaurações de resina composta, com o objetivo de lhe devolver estética com baixo custo11.
Alguns pacientes com amelogênese imperfeita apresentam uma higiene bucal insatisfatória. A relutância em escovar apropriadamente é consequência da insatisfação com a aparência e, principalmente, da sensibilidade dentária1,11-12. Deste modo, a reabilitação pode não só melhorar estética e função, como também facilitar o auto-cuidado bucal. Nesse caso, instruções de higiene bucal devem fazer parte dos objetivos do tratamento. Algumas vezes, um programa intensivo de higiene, incluindo raspagem e alisamento radicular é necessário11. Soluções fluoretadas podem ser prescritas, com recomendação de uso diário15.
Após o término do tratamento, avaliações periódicas devem ser realizadas. Turkun11 realizou consultas mensais, durante os primeiros seis meses e após a cada dois meses/ano. O impacto psicológico do tratamento foi considerado positivo após o primeiro retorno.
Robinson & Haubenreich15 fizeram reavaliações com quatro meses de intervalo por um período de dois anos, e o paciente não apresentou queixa de hipersensibilidade ou qualquer outra complicação associada à reabilitação ou qualquer outra complicação associada à reabilitação bucal, a qual atendeu suas expectativas estéticas e funcionais.
Siadatet al.20 realizaram o acompanhamento anual por seis anos de um caso de amelogênese imperfeita. Nos primeiros anos a paciente se mostrou contente com o resultado e motivada em manter sua higiene oral. No sexto ano, gengivite moderada estava presente ao redor dos dentes anteriores reabilitados, as restaurações do primeiro e segundo molares do lado direito estavam fraturadas, sendo necessária a substituição das coroas devido à severidade.
Sholapurkaret al.16 seguiram um programa de retornos a cada 3 meses e o paciente estava satisfeito com o tratamento, a sensibilidade dentária desapareceu e as dificuldades mastigatórias foram sanadas.
A literatura apresenta diversos relatos clínicos de reabilitação de pacientes com amelogênese imperfeita. O Quadro 1 sintetiza alguns casos relatados. Dados quanto à idade, queixa do paciente, tipo de amelogênese imperfeitae tratamento realizado foram incluídos.
DISCUSSÃO
A amelogênese imperfeita é considerada um grupo heterogêneo de condições clínicas e genéticas, que afetam o esmalte dentário, ocasionalmente em associação a alterações em outros tecidos dentais, orais e extra-orais9. O manejo do paciente pode ser um desafio, devido à dificuldade encontrada por muitos profissionais em se estabelecer o diagnóstico.
Ambas as dentições podem ser afetadas, assim os Odontopediatras são frequentemente os primeiros a se depararem com pacientes com essa anomalia. No caso do paciente infantil, procedimentos preventivos e tratamentos provisórios, com o intuito de melhorar a qualidade de vida e evitar problemas clínicos e emocionais no futuro, devem ser efetuados. Dessa forma, toda intervenção deve ser planejada a longo prazo, uma vez que a fase restauradora envolve etapas de acordo com o estágio de erupção dentário, ou seja, inicialmente poderão ser realizadas restaurações com cimento de ionômero de vidro, depois resina composta e se, necessário, quando a coroa clínica representar a coroa anatômica, facetas ou coroas de porcelana. A opção de métodos mais simples na fase transitória (dentição mista), postergando tratamentos mais invasivos até a fase adulta, tem se mostrado benéfica para os pacientes23.
O diagnóstico deve ser precoce para que o tratamento provisório seja executado e possa prevenir o desgaste excessivo dos dentes, evitando, dessa forma, a subsequente perda da dimensão vertical26. Depois de estabelecido o diagnóstico, a maior dificuldade consiste na seleção da melhor opção de tratamento. Muitos fatores, incluindo não só a idade, mas também nível socioeconômico, quantidade e qualidade do esmalte afetado e condição periodontal devem ser cuidadosamente avaliadas para a escolha do tratamento.
Na presente revisão, próteses fixas parciais ou unitárias, coroas de cerâmica ou metalocerâmicas e restaurações de resina composta direta e indireta são algumas das opções utilizadas para reabilitação de pacientes com amelogênese imperfeita1,11,16,21. É importante destacar que técnicas conservadoras devem ser a primeira opção. Nesse sentido, o aprimoramento das resinas compostas aumenta sua indicação, inclusive para dentes posteriores28. Também o tratamento protético fixo, embora possa parecer invasivo, é uma opção mais conservadora do que outras alternativas, como extrações e confecção de próteses totais removíveis, às vezes observadas em pacientes com AI21.
Independente da técnica ou material escolhido é importante que o plano de tratamento abranja todas as seguintes fases: preventiva (incluindo instrução de higiene bucal e aplicação tópica de flúor), restauradora e fase de manutenção16,21-22. Os profissionais também devem estar atentos da importância das avaliações de retorno para monitorar a higiene e a condição periodontal e pulpar, como parte do tratamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realização do diagnóstico e o estabelecimento de um plano de tratamento adequado às necessidades do paciente são as maiores dificuldades no atendimento de pacientes com amelogênese imperfeita. A partir da literatura revisada, observa-se que, dado o avanço no campo da Odontologia Restauradora, atualmente é possível restabelecer estética e função a níveis aceitáveis e, desta maneira, intervir positivamente na autoestima e no comportamento dos pacientes. Estudos com maior tempo de acompanhamento de casos tratados ainda são necessários, com o intuito de verificar a longevidade dos diferentes materiais empregados nos casos de amelogênese imperfeita.
Colaboradores
MS AZEVEDO e ML GOETTEMS participaram do levantamento da literatura e redação do artigo. DD TORRIANI, AR ROMANO e FF DEMARCO trabalharam na concepção e redação final.
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Endereço para correspondência:
MS AZEVEDO
e-mail: marinasazevedo@hotmail.com
Submetido em: 4/12/2008
Versão final reapresentada em: 13/5/2010
Aprovado em: 24/5/2010