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RSBO (Online)
versão On-line ISSN 1984-5685
RSBO (Online) vol.7 no.3 Joinville Set. 2010
SHORT COMMUNICATION
Endocardite infecciosa e profilaxia antibiótica: um assunto que permanece controverso para a odontologia
Infective endocarditis and antibiotic prophylaxis: an issue that remains controversial in dentistry
Orlando Cavezzi Junior
Odontologia, prática privada Avaré SP Brasil
RESUMO
INTRODUÇÃO: O assunto endocardite infecciosa e sua profilaxia antibiótica tem passado por grandes mudanças recentemente. Todas essas modificações são muito dinâmicas e, por isso, provocam grande controvérsia. Tem-se atribuído muita ênfase, historicamente e sem base científica, ao conceito de que os procedimentos odontológicos são a principal causa dos casos de endocardite infecciosa.
OBJETIVO: Esta comunicação busca repensar as condutas aplicadas na clínica odontológica, observando aspectos importantes na prescrição do antibiótico e minimizando o uso da profilaxia antibiótica para procedimentos odontológicos.
CONCLUSÃO: O cuidado com a saúde bucal e o controle do biofilme dental devem ser os primeiros passos na prevenção da endocardite infecciosa, de origem odontogênica.
Palavras-chave: endocardite; antibiótico; Odontologia.
ABSTRACT
INTRODUCTION: The issue of infective endocarditis and its antibiotic prophylaxis has passed through major changes recently. All these changes are very dynamic and therefore cause much controversy. Historically and with no scientific basis, great emphasis has been given to the concept that dental procedures are the main cause of infective endocarditis cases.
OBJECTIVE: The purpose of this communication is to reconsider the procedures in dental practice, analyzing the important aspects in the prescription of antibiotics and minimizing the use of antibiotic prophylaxis for dental procedures.
CONCLUSION: The oral health care and biofilm control should be the first steps in the prevention of infective endocarditis of odontogenic origin.
Keywords: endocarditis; antibiotic; Dentistry.
A endocardite infecciosa (EI) é sempre fatal quando não tratada e continua causando substancial morbimortalidade, apesar dos avanços alcançados em seu diagnóstico e tratamento. Essa patologia inicia-se por uma bacteremia e tem relação com diferentes fatores de risco do paciente, podendo apresentar complicações cardíacas, sistêmicas, imunes e vasculares [13].
Há mais de 80 anos, Lewis e Grant [6] sugeriram que as bacteremias poderiam causar endocardite infecciosa em pacientes com anormalidades valvares. Assim, enfatizou-se o conceito de que o tratamento odontológico era a principal causa de endocardite infecciosa, ao relacionar os estreptococos do grupo viridans diretamente como agentes bacterianos envolvidos nessa infecção [18].
O primeiro protocolo para prevenção da endocardite, associado ao tratamento odontológico, foi publicado em 1955 pela American Heart Association (AHA), e por mais de meio século se recomenda, para prevenção de endocardite infecciosa, a profilaxia com antibióticos para determinados pacientes que recebem atendimento odontológico. Numa rápida análise das atuais orientações quanto à profilaxia da endocardite, divulgadas por diversas entidades de saúde [3, 9, 18], observamos que estamos distantes de um consenso.
A British Society for Antimicrobial Chemotherapy (BSAC) [3], em 2006, e a American Heart Association (AHA) [18], em 2007, atualizaram as recomendações para profilaxia da endocardite infecciosa em procedimentos odontológicos, tendo protocolos muito semelhantes (tabela I).
A profilaxia antibiótica passou a ser indicada somente para pacientes de alto risco cardíaco em uma gama de procedimentos odontológicos. Desse modo, um número restrito de pacientes é selecionado para receber a profilaxia com antibióticos: apenas aqueles em que a endocardite levaria a uma maior morbimortalidade.
Nessas novas recomendações, o foco passou a ser as bacteremias geradas por ocorrências da vida diária num processo cumulativo [4, 17] e não mais as bacteremias causadas por procedimentos odontológicos. Todavia isso não significa dizer que os procedimentos odontológicos sejam isentos de risco. O risco existe, mas a ocorrência é provavelmente rara para ser demonstrada estatisticamente em amostras populacionais pequenas [5, 15, 17]. Além do mais os parâmetros que mais contribuem para o risco de endocardite infecciosa ainda continuam incertos, pois não há dados nem provas convincentes. Existem inúmeras publicações sugestivas de associações de causa entre procedimentos odontológicos, bacteremias e endocardite infecciosa. As poucas publicações de estudos de caso controle [5, 15, 17] dão conta de não haver elo significativo entre a endocardite infecciosa e os procedimentos odontológicos. Além disso, não há evidências de que o uso da profilaxia com a penicilina seja eficaz contra a endocardite infecciosa em pessoas de risco que se submetem a tratamento odontológico [10], como também não se demonstrou que essas drogas não sejam eficazes [14].
Aspectos importantes relacionados ao uso de antibióticos são os efeitos que tais drogas podem gerar, os quais devem ser levados em conta.
Foi sugerido que o risco de reação anafilática fatal à penicilina é consideravelmente maior que o de contrair endocardite infecciosa [2]. Nos últimos anos, a amoxicilina tem sido o suporte principal para recomendações de profilaxia da endocardite, por ser mais bem absorvida pelo trato gastrointestinal e proporcionar níveis sanguíneos mais elevados e prolongados. Essa droga vem sendo usada há mais de 35 anos, mostrando-se muito segura. Na literatura não há registros de casos que relacionem reação anafilática associada à amoxicilina usada como dose profilática da endocardite. O Medicines and Healthcare Products Regulatory Agency do Reino Unido (MHRA), que coleta suspeitas de reações adversas sobre drogas administradas, armazena essas reações à amoxicilina desde fevereiro de 1972 [14]. Existem, desde então, oito casos registrados de fatalidades ligados à anafilaxia, dos quais cinco por via intravenosa, dois por via desconhecida e apenas um caso fatal por via oral, mas não relacionado à profilaxia da endocardite infecciosa.
A própria AHA relatou não ter conhecimento de caso de anafilaxia fatal associada a antibióticos empregados no protocolo da profilaxia da endocardite nos Estados Unidos durante os últimos 50 anos [18].
Outro aspecto é a preocupação com a resistência bacteriana aos antibióticos na prática clínica [8, 11, 16, 19]. A comunidade científica tem estado alerta para o uso inadequado de antibióticos e à crescente prevalência de microrganismos muito resistentes. Os altos níveis de resistência às penicilinas, demonstrada pelos estreptococos bucais, são motivo de preocupação, ao ficar evidente, na avaliação de pacientes ambulatoriais, que receberam doses de antibióticos de curta duração e se tornaram importantes reservatórios de microrganismos resistentes [16]. Os patógenos diretamente associados à endocardite infecciosa apresentaram taxas elevadas de resistência aos antibióticos mais utilizados para a profilaxia em Odontologia [8]. As bactérias têm mais uma vez evidenciado enorme flexibilidade genética, ao se tornarem resistentes a um antibiótico após outro. A terapia com antibióticos trouxe notável progresso ao tratamento das doenças infecciosas, mas os riscos relacionados ao uso generalizado e à carência de dados sobre a eficácia dessas drogas nos levam a repensar nossa prática diária com bom senso e julgamento clínico.
Uma única dose de 2 g de amoxicilina, uma hora antes do procedimento odontológico, conforme preconizado pelo protocolo da profilaxia antibiótica da endocardite infecciosa [3, 18], teria pouco ou nenhum efeito sobre o surgimento do número de estreptococos resistentes e de importância significativa na redução da bacteremia. Apenas a partir da segunda e da terceira dose se observa um acréscimo significativo do número de estreptococos resistentes e persistentes por quatro a sete semanas [19]. Assim, nos pacientes de risco que necessitassem de sucessivas sessões para procedimentos odontológicos associados à produção de bacteremias, a opção seria um regime alternativo antibacteriano [3, 18] ou esperar, no mínimo, um intervalo de quatro semanas entre as sessões [19] (tabela II).
Por outro lado, uma recente publicação do National Institute for Health and Clinical Excellence (Nice) [9], de março de 2008, apresentou surpreendente recomendação, sugerindo abandonar a profilaxia antibiótica da endocardite infecciosa para tratamento odontológico, mesmo nos pacientes de alto risco. Assim, paciente nenhum receberá a profilaxia com antibióticos para realização de tratamento odontológico, embora o Nice reconheça a necessidade de os pacientes serem conscientemente informados sobre as mudanças na prática. Essas recomendações enfrentam muitas reações, principalmente de cardiologistas que acreditam que o novo protocolo para prevenção da endocardite infecciosa é uma perigosa base de partida a ser estabelecida na prática [1].
Após três anos de publicação das atuais recomendações para a prevenção da endocardite infecciosa, lançadas pela British Society for Antimicrobial Chemotherapy e American Heart Association [3, 18], notamos certa resistência em adotá-las, tanto por parte de pacientes como de profissionais de saúde. Provavelmente isso se deva à falta de evidências sobre a exposição aos novos protocolos [5, 15, 17] ou até mesmo pelo limitado conhecimento quanto à endocardite infecciosa [12].
As novas recomendações devem ser muito bem-vindas e ser adotadas até que mais observações surjam. Fica evidente que não há conclusões definitivas em torno da profilaxia antibiótica, permanecendo a questão em debate. Aplicar a profilaxia antibiótica somente ao grupo de pacientes de alto risco em desenvolver endocardite infecciosa e priorizar o controle do biofilme dental e a manutenção da saúde bucal são medidas extremamente importantes, porquanto é fato que a deficiência na higiene bucal e as doenças bucais compõem importantes fatores para a ocorrência da endocardite infecciosa [7].
As atuais recomendações para prevenção da endocardite infecciosa mudaram a forma de abordar a profilaxia, ao torná-la mais simples e objetiva, pois a atual tendência é minimizar ou até mesmo evitar o uso da profilaxia antibiótica para procedimentos odontológicos.
Referências
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Endereço para correspondência:
Rua Alagoas, 790
CEP 18700-010 Avaré São Paulo
E-mail: didi@apcd.org.br
Recebido em 22/3/2010
Aceito em 19/5/2010
Received on March 22, 2010
Accepted on May 19, 2010