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Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

 ISSN 0004-5276

     

 

RELATO DE CASO CLÍNICO

 

Barodontalgia: relato de dois casos clínicos

 

Barodontalgia: two case reports

 

 

Giselle P. C. Abi-RachedI; Alexandre A. ZaiaII; Caio C. R FerrazIII; José F. A. AlmeidaIV; Francisco J. Souza-FilhoV; Brenda P. F. A. GomesVI

IMestrado - Aluna de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Clínica Odontológica, área de Endodontia, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Brasil
IIDoutorado, Livre Docência - Professor Associado do Departamento de Odontologia Restauradora, área de Endodontia, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Unicamp – Brasil
IIIDoutorado, Livre Docência - Professor Associado do Departamento de Odontologia Restauradora, área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Unicamp – Brasil
IVDoutorado - Professor Assistente do Departamento de Odontologia Restauradora, área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Unicamp – Brasil
VDoutorado, Livre Docência - Professor Titular do Departamento de Odontologia Restauradora, área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Unicamp – Brasil
VIDoutorado, Livre Docência - Professora Titular do Departamento de Odontologia Restauradora, área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Unicamp – Brasil

Autor para correspondência

 

 


 

RESUMO

O objetivo desse trabalho foi relatar dois casos clínicos sobre barodontalgia, que é um evento que envolve o aumento ou a diminuição da pressão atmosférica na prática de mergulho ou em viagens aéreas, causando sintomatologia. Os casos clínicos reportam barodontalgia na presença de vitalidade e de necrose pulpar. Tratamento endodôntico foi realizado no elemento envolvido, seguido da restauração coronária. Concluiu-se que o Cirurgião-Dentista deve ter conhecimento sobre a barodontalgia para considerá-la no diagnóstico diferencial da dor dentária comum.

Descritores: endodontia; odontalgia; diagnóstico diferencial


 

ABSTRACT

The aim of this study was to report two cases of barodontalgia, which is an event that involves an increase or decrease of the atmospheric pressure in diving or air travel, causing symptomatology. The clinical cases reported barodontalgia in the presence of vital and necrotic pulp tissues. Endodontic treatment was performed in the tooth involved, followed by coronal restoration. It was concluded that the dentist must have the knowledge about barodontalgia in order to consider it in the differential diagnosis of common dental pain.

Descriptors: endodontics; toothache; clinical diagnosis


 

 

RELEVÂNCIA CLÍNICA

Auxiliar Cirurgiões-Dentistas no diagnóstico e tratamento das barodontalgias, devendo considerá-las no diagnóstico diferencial da dor dentária comum, uma vez que as variações de pressão atmosférica estão intimamente relacionadas a estas intercorrências.

 

INTRODUÇÃO

O efeito que as alterações da pressão exercem sobre o corpo humano tem sido um tema muito estudado, devido a sua importância no campo da investigação aeroespacial. Os primeiros estudos foram realizados em 1923, com o início da aviação. Com a 2a Guerra Mundial e seus voos subsônicos, pilotos de cabines não-pressurizadas relataram sentir odontalgias durante alguns voos, surgindo assim o termo aerodontalgias1,2. Entretanto, como estas odontalgias também foram associadas ao mergulho, o nome para este fenômeno passou a ser barodontalgia, referindo-se ao aumento ou à diminuição da pressão atmosférica na prática de mergulho ou em viagens aéreas3. Em ambiente submarino, essa dor também é chamada de "squeeze dente".

De acordo com Kieser & Holborow (1997)4 a Lei de Boyle afirma que o volume de um gás varia de forma inversamente proporcional à pressão absoluta, enquanto que a densidade varia de forma diretamente proporcional com a pressão absoluta, desde que a temperatura se mantenha constante. Portanto, quando uma pessoa está em baixa altitude como um mergulhador, a pressão exercida sobre ele aumenta e volume de gases diminui em espaços fechados como em dentes e seios nasais. Já em altitudes elevadas (em voos), a pressão exercida no passageiro diminui, permitindo que o volume de gases aumente.

Esta patologia pode ser devido a: a) restaurações insatisfatórias e cárie dental sem envolvimento pulpar (29,2%), b) necrose pulpar com inflamação periapical (27,8%), pulpite (13,9%), tratamento odontológico recente (11,1%) e barossinusite (9,7%).

Desta forma, os Cirurgiões-Dentistas, como profissionais da área de saúde oral, devem ter conhecimento sobre a etiologia e a conduta em casos de barodontalgias, devendo considerá-la no diagnóstico diferencial da dor dentária comum5. O objetivo do presente trabalho é descrever dois casos de barodontalgia em que foi necessária a realização do tratamento endodôntico para a remoção da dor, tendo em vista o comprometimento pulpar.

 

RELATO DE CASOS

Caso 1

Paciente do sexo feminino, 33 anos relatou dor no elemento 26 durante a decolagem de um voo que durou aproximadamente 1 hora. Ao exame clínico, observou-se que o elemento dental apresentava uma restauração em resina composta na face oclusal, e lesão cariosa na face distal. Ao exame radiográfico verificou-se ausência de alterações significativas como lesão periapical e ausência de aumento do espaço do ligamento periodontal (Figura 1). A presença de dor intensa e de longa duração ao estímulo frio (Roeko Endo-Frost, Coltène Whaledent Group, Langenau, Alemanha), percussão e palpação negativa levou ao diagnóstico de pulpite irreversível.

Após anestesia infiltrativa, a restauração em resina composta e a cárie foram removidas por meio de broca esférica diamantada, de número 1016 HL (KG Sorensen, São Paulo, SP). O acesso coronário também foi promovido por meio desta broca e a remoção do teto foi realizada por meio de broca tronco-cônica de ponta inativa (número 3082, KG Sorensen, São Paulo, SP).

Após a abertura coronária, procedeu-se o isolamento absoluto constituído de lençol de borracha, grampo endodôntico e arco de Ostby. Para melhor vedamento do isolamento foi aplicado cianoacrilato de etila (Super-Bonder, Loctite, São Paulo, SP) na interface entre o dente e o lençol de borracha. O conjunto dente-grampo-lençol de borracha e arco de Ostby foi descontaminado com clorexidina gel 2% (Endogel, Itapetininga, SP) para início do tratamento endodôntico.

Realizou-se então o preparo da embocadura por meio de broca largo no 2 (KG Sorensen). A substância química auxiliar de escolha foi a clorexidina gel 2% e o agente irrigante, o soro fisiológico (Sanobiol, Pouso Alegre, MG). A primeira fase do tratamento utilizou-se da sequência de brocas Gates-Glidden (KG Sorensen) de 5 a 2, nos terços cervical e médio. Ao final desta fase realizou-se a odontometria dos canais radiculares por meio do localizador foraminal Novapex (Forum Engineering Technologies, Rishon Lesion, Israel). Olimite apical foi estabelecido no zero, ou seja, no forame apical. A segunda fase (descontaminação e modelagem apical) foi realizada por meio de limas endodônticas manuais (#20 a #40) (Malleifer, Baillagues, Suíça) assim como o step-back, com 3 limas superiores a lima anatômica final (LAF). Durante toda a terapia endodôntica, a cada troca de instrumento utilizado, os canais foram irrigados com 5 mL de soro fisiológico e novamente preenchidos com clorexidina 2% gel.

Ao término do preparo químico-mecânico, os canais foram irrigados com soro fisiológico, aspirados e preenchidos com clorexidina gel. Cones de guta-percha Fine Medium (canais MV e DV) e Medium (canal palatino) foram calibrados 2 diâmetros superiores a LAF, ficando 2 mm aquém do comprimento de trabalho. A seguir eles foram introduzidos e retirados dos canais, com movimentos de vaivém para serem modelados e o dente foi radiografado. Realizou-se então a irrigação com 5 mL de soro fisiológico para remover a clorexidina. Os canais foram secos com pontas de papel estéreis (Maillefer/ Dentsply, Balaigues, Suíça) e obturados pela técnica do Cone Único Modelado da FOP/Unicamp6 com posterior condensação lateral e compressão vertical, utilizando condensadores de Paiva e termocompactador (Easy Endo, Belo Horizonte, MG), respectivamente. Para a obturação foi utilizado o cimento Endométhasone (Septodont Brasil Ltda., Barueri, SP) e os cones de guta-percha (Konne Ind. e Com. de Mat. Odontol., Belo Horizonte, MG) foram calibrados por meio de régua calibradora (Maillefer/Dentsply).

Terminada a obturação do sistema de canais radiculares, e após a remoção de 2 mm cervicais da guta-percha, Coltosol (Coltène, Altstatten, Suiça) foi colocado em incrementes neste espaço para proteção da embocadura dos canais. A seguir, o dente foi restaurado com resina composta Filtek Z 250® (3M ESPE, St. Paul, MN, EUA) na cor A3, sendo realizados ajustes oclusais, finalizando o tratamento com uma radiografia (Figura 2). Posteriormente, a paciente relatou alívio da dor e ausência de sintomatologia pós-operatória, mesmo após outras viagens aéreas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caso 2

Paciente do sexo masculino, 51 anos relatou dor no dente 21, no momento da decolagem do avião, procurando um endodontista ao final de sua viagem. No exame clínico-radiográfico foi verificado escurecimento da coroa e lesão periapical circundando o referido elemento dental (Figura 3).

Após anestesia infiltrativa regional, a abertura coronária foi realizada por meio de broca esférica diamantada 1014 HL (KG Sorensen), complementada pela utilização da broca tronco-cônica de ponta inativa 3082 (KG Sorensen). Depois do isolamento absoluto e descontaminação do conjunto grampo-lençol de borracha-arco de Ostby, realizou-se o preparo da embocadura do canal com a broca de Largo no 3 (KG Sorensen). A substância química auxiliar e o agente irrigante também foram a clorexidina 2% gel e o soro fisiológico, respectivamente.

O preparo do corpo do canal (terços cervical e médio) foi realizado com as brocas de Gates-Glidden, na sequência de 5 a 2. Após a odontometria eletrônica, realizou-se o preparo da porção apical por meio de limas endodônticas manuais (#30 a #45). Em seguida, procedeu-se o step-back com três instrumentos superiores a lima #45. A seguir foi feito a calibração do cone de guta-percha e sua modelagem com clorexidina. O canal foi irrigado com soro fisiológico, seguido da remoção da smear layer com EDTA 17% da mesma forma descrita no caso 1. A técnica de obturação, cimento endodôntico e cone de guta-percha foram os mesmos utilizados no primeiro caso, assim como a restauração coronária do dente (Figura 4). O paciente também relatou alívio da dor e ausência de sintomatologia pós-operatória, mesmo após outras viagens aéreas.

Os dois pacientes foram esclarecidos sobre a necessidade de prevenção da ocorrência da barodontalgia por meio de consultas periódicas ao Cirurgião-Dentista, sendo também conscientizados sobre a não realização de atividades como mergulho ou voo imediatamente após procedimentos dentais.

 

DISCUSSÃO

A incidência de manifestações dentais em voos hoje em dia é relativamente baixa em relação com as relatadas na primeira metade do século XX. Tal fato deve-se a presença de câmara de pressurização no avião, a alta qualidade do atendimento odontológico, e ao reforço da saúde bucal7,8.

A barodontalgia é um sintoma e não uma condição patológica em si, representando uma agudização de doença oral preexistente9, sendo esta geralmente assintomática.

Nos dois casos relatados neste estudo, foram descritas as causas para que o evento da barodontalgia pudesse ocorrer.

O primeiro caso é um exemplo típico de um quadro de pulpite, onde a cárie era o fator predisponente para a inflamação pulpar. Entretanto, a sintomatologia foi causada por um aumento da pressão atmosférica durante a decolagem do avião.

Pulpite é a principal causa de barodontalgia relatada desde a década de 194010, sendo esta dor explicada pelos seguintes mecanismos: 1) isquemia direta decorrente da inflamação em si, 2) fatores resultantes da isquemia intrapulpar, entre eles o aumento da pressão resultante da vasodilatação e a difusão de fluido para o tecido, 3) expansão do gás intrapulpar, que é o subproduto de ácidos, bases e enzimas do tecido inflamado, 4) difusão do gás intrapulpar através dos vasos sanguíneos8.

Segundo Zadik, 200910, as barodontalgias são favorecidas pela ascensão, especialmente em casos de polpa vital, devido à hiperemia pulpar. Esta poderá ocorrer na presença de restaurações insatisfatórias com áreas de infiltração cariosa ou com fratura ou ausência de material restaurador, assim como na presença de lesão cariosa com grande proximidade da câmara pulpar. Desta forma, quando um elemento dental dói durante a decolagem do avião indica a presença de uma polpa vital, e quando dói na descida indica que o elemento está necrosado.

No segundo caso, o paciente relatou dor na decolagem do avião, entretanto, observou-se depois que o dente em questão apresentava-se com polpa necrosada e lesão periapical. A dor foi causada provavelmente pela elevada pressão dentro desta lesão10.

Dente com comprometimento periapical pode apresentar barodontalgia tanto na decolagem como na aterrissagem do avião, sendo mais frequente durante a subida10. Barodontalgia também pode ocorrer tanto em dentes endodonticamente tratados, devido à expansão das bolhas de ar no interior da obturação radicular, como em dentes impactados, devido ao aumento da pressão dentro da cripta óssea10.

Na barodontalgia, os dentes superiores e inferiores são afetados igualmente, entretanto, a região supero-posterior é a mais afetada (50%)11.

A literatura relata que 14,8% dos casos de barodontalgia não são diagnosticados, principalmente devido ao desconhecimento dos profissionais da área da saúde. Desta forma, o Cirurgião-Dentista deverá fazer uma anamnese adequada, questionando o paciente quanto a existência de tratamentos odontológicos recentes, sinais e sintomas que precederam a dor, e no relato de atividades relacionadas a variação de pressão atmosférica10.

Ao exame clínico, cabe ao Cirurgião-Dentista avaliar: 1) lesões cariosas, 2) restaurações (ausência/presença, presença de infiltrações cariosas e fraturas), 3) presença de fístulas, 4) bolsas periodontais e 5) erupção dental (3o molar). Os testes de sensibilidade pulpar, percussão e palpação também devem ser realizados, principalmente nos dentes suspeitos e respectivos antagonistas. Radiograficamente devem ser observados dentes impactados, cistos e a presença de lesões periapicais. Radiografias panorâmicas com intervalos de 3 a 5 anos, devem ser realizadas como medida de prevenção12,13.

 

CONCLUSÃO

O melhor método para o tratamento das barodontalgiasé a remoção de suas causas, ou seja, a prevenção por meio de consultas periódicas ao Cirurgião-Dentista. A conscientização sobre a não realização de atividades como mergulho ou voo imediatamente após procedimentos dentais, também é uma alternativa de prevenção da barodontalgia.

 

REFERÊNCIAS

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Autor para correspondência:
Brenda P. F. A. Gomes
FOP/Unicamp
Av. Limeira, 901 - Caixa Postal 52
Piracicaba - SP
13414-903
Brasil

e-mail: bpgomes@fop.unicamp.br

Recebido em: set/2011
Aprovado em: nov/2011