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Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

versão impressa ISSN 0004-5276

Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.68 no.3 Sao Paulo Jul./Set. 2014

 

Excelência na Odontologia

 

Como as pesquisas de excelência em qualidade de vida relacionada à saúde bucal podem contribuir para a prática clínica?

 

How the research excellence in oral health related quality of life can contribute for clinical practice?

 

Marcelo BöneckerI;Jenny Abanto II

IBolsista de produtividade em Pesquisa 2 CNPq. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, Área de Concentração Odontopediatria - Fousp
IIPós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Odontológicas, Área de Concentração Odontopediatria – Fousp – Bolsista Fapespq

 

Conceitos de saúde bucal e qualidade de vida Desde o ano de 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já definia saúde como "estado completo de bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência da doença ou enfermidade".1 Com base nessa definição, conceitos contemporâneos de saúde sugerem que a saúde bucal seja definida em termos de bem-estar físico, psicológico e social em relação ao estado bucal.2 Por tal motivo, o conceito de saúde bucal englobou também aspectos da qualidade de vida (QV) e a inclusão de fatores antes não considerados, tais como: sintomas bucais, limitações funcionais, bem-estar emocional e social. A QV pode ser definida como "a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e do sistema de valores nos quais ele vive, e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações".3

Qualidade de vida relacionada à saúde bucal (QVRSB) A QVRSB refere-se ao impacto que as condições bucais têm nas atividades diárias, bem-estar e qualidade de vida dos indivíduos. Tal conceito remete a avaliação da saúde bucal por meio de métodos que incluem ambos os aspectos clínicos objetivos e subjetivos em relação ao impacto das condições de saúde/ doença nas atividades físicas e psicossociais de um indivíduo.

Em função desses aspectos, os instrumentos de mensuração da QVRSB devem considerar a perspectiva das pessoas e das populações e não se restringir apenas à perspectiva de profissionais de saúde e pesquisadores.4 Nas últimas duas décadas, os indicadores clínicos utilizados na prática odontológica estavam restritos à presença e severidade das doenças bucais, à dor e a aspectos estéticos, porém, apesar de ainda não ser uma prática comum, atualmente, entende-se que para realizar o diagnóstico e plano de tratamento é também importante analisar o impacto que estes indicadores clínicos têm na vida da população adulta e infantil.

Na prática clínica, a percepção do paciente (adultos, pais e/ ou próprias crianças) sobre a sua saúde bucal e o conhecimento dos fatores que motivam estas percepções são de grande importância para os clínicos. Estas informações auxiliam na elaboração do planejamento e tratamento necessário para melhorar a saúde bucal do indivíduo, possibilitando, também, uma melhor QVRSB e, consequentemente, melhores possibilidades e expectativas psicossociais para as pessoas. Compreender os fatores que afetam a percepção sobre a saúde bucal e QVRSB pode mudar a Odontologia e desenvolver estratégias que ajudem a superar obstáculos no acesso aos serviços odontológicos. Do ponto de vista epidemiológico, a avaliação da QVRSB pode auxiliar na elaboração e/ou modificação de políticas de Saúde Pública, destinando os recursos humanos, técnicos e econômicos para doenças bucais que sejam efetivamente consideradas como problemas de saúde bucal desde a percepção da própria população.

Instrumentos de mensuração da QVRSB
Os instrumentos de QVRSB procuram refletir a multidimensionalidade do conceito de QV e devem possuir certas propriedades psicométricas consideradas essenciais enquanto instrumentos de medida: confiabilidade, validade e responsividade.5,6

Antes de testar as propriedades psicométricas de um instrumento em idioma diferente à sua versão original é muito importante que o mesmo tenha passado previamente por um rigoroso processo de tradução, retro-tradução e adaptação transcultural ao idioma em que vai ser testado, antes que as suas características como instrumento mensurador sejam avaliadas. A adaptação transcultural e a validação de instrumentos de QVRSB para um idioma diferente do original têm importantes implicações para a pesquisa e a prática clínica. Em primeiro lugar, pode fornecer conhecimento sobre os impactos das condições bucais nas atividades diárias dos indivíduos. Em segundo lugar, pode ser usado pelos clínicos para avaliar o sucesso de tratamentos odontológicos e, em terceiro lugar, pode ser potencialmente usado como desfecho na avaliação de programas de saúde pública para ponderar a necessidade de serviços odontológicos para a faixa etária alvo7.

Além disso, para que um instrumento possa ser empregado como desfecho em estudos clínicos, o mesmo precisa ser responsivo, ou seja, deve detectar mudanças clínicas minimamente importantes depois do tratamento.6 Atualmente, a responsabilidade dos instrumentos de QVRSB têm se tornado relevante dada a tendência gradativa de usar medidas de QVRSB como desfechos em ensaios clínicos e estudos longitudinais. Assim, instrumentos com responsabilidade comprovada devem ser utilizados em estudos clínicos com o objetivo de conhecer quais intervenções odontológicas proporcionam uma melhor QVRSB para os pacientes e, desta maneira, fornecer ao clínico as opções de tratamento que garantem um sucesso não somente clínico, mas também psicossocial. Dessa forma, os recursos institucionais ou do governo poderão ser destinados para intervenções que possuam efetividade abrangente para a melhoria da QVRSB de uma população.

Na prática clínica, o profissional também pode lançar mão do uso destes instrumentos dentro da anamnese e evolução do tratamento odontológico do paciente, visto que desta maneira pode se monitorar as mudanças positivas ou negativas geradas pelo tratamento nos sintomas bucais, limitações funcionais, bem-estar emocional e social do paciente, fazendo com que novas estratégias ou tratamentos complementares sejam adotados caso não tenha sido atingido o sucesso integral do tratamento na vida do paciente.

É importante destacar que no Brasil muitos instrumentos de QVRSB para uso em adultos e crianças já têm sido adaptados transculturalmente e validados, podendo ser utilizados no contexto de pesquisa e na prática clínica diária. Dentro do curso de pós-graduação em Ciências Odontológicas, área de concentração em Odontopediatria, da Universidade de São Paulo (USP), temos produzido artigos científicos referentes a esta linha de pesquisa, principalmente em pré-escolares. Em parceria com a University College London e a UFMG, recentemente foi adaptado transculturalmente ao idioma português do Brasil e validado o instrumento Scale of Oral Health Outcomes for 5-year-old children (SOHO-5)8, o qual mensura a QVRSB de crianças por meio de auto-relatos e relatos secundários dos pais. A versão brasileira do SOHO-5 apresentou propriedades psicométricas satisfatórias de confiabilidade e validade, podendo ser aplicada como instrumento de mensuração de QVRSB em crianças de cinco e seis anos de idade no Brasil. O nosso grupo de pesquisa também avaliou a responsividade deste instrumento9, sendo que foi constatada uma melhora significativa na QVRSB das crianças após o tratamento odontológico e destacado o papel fundamental do tratamento na melhora da QVRSB da população infantil.

Impacto das condições bucais na QVRSB
Até o presente momento, a nossa equipe na Fousp tem publicado estudos no estado de São Paulo, avaliando o impacto de problemas bucais, tais como a cárie dentária, lesões dentárias traumáticas (LDT) e maloclusões na QVRSB de pré-escolares10-12 e seus pais13. Em relação à cárie dentária, verificou-se que, tanto a baixa quanto a alta experiência desta doença, afetam negativamente a QVRSB durante a infância, tanto desde a percepção dos pais, quanto das próprias crianças10,11. Assim, pré-escolares com cárie dentária têm uma maior frequência e gravidade de impactos bucais em atividades tais como comer, beber, falar, dormir, ficar irritadas, evitar sorrir/rir e brincar em comparação às crianças livres de cárie. Também foi demonstrada uma associação significativa entre a maior experiência de cárie em crianças e alguns sentimentos negativos e atividades restritas nos pais, tais como perda de dias de trabalho, menor tempo para os pais cuidarem deles mesmos, sono, atividades familiares interrompidas, sentimentos de culpa, preocupação com o futuro dos seus filhos e, inclusive, sentimentos de constrangimento em lugares públicos13. Existe, atualmente, um consenso na literatura mundial em relação ao impacto negativo da doença cárie na QVRSB de pré-escolares.

Um estudo epidemiológico recente publicado pelo nosso grupo verificou que a presença de LDT's complicadas (aquelas com exposição pulpar e/ou luxação do dente) estão associadas a uma pior QVRSB em pré-escolares, enquanto que as maloclusões não apresentam impacto nesta faixa etária12. O impacto negativo das LDT's complicadas estão associadas ao domínio de sintomas orais, auto-imagem e interação social da criança. Porém, para aguçar a controvérsia atual sobre o assunto em pré-escolares, outro estudo recente do nosso grupo utilizando o SOHO-5 demonstrou que, de forma geral, as LDTs não apresentam impacto na QVRSB de crianças de cinco e seis anos de idade11. Contudo, há poucos estudos avaliando o impacto das LDT's e maloclusões na QVRSB de crianças com idade igual ou inferior a seis anos, sendo que a evidência é ainda conflitante.

A partir do exposto, fica claro como as pesquisas de excelência em QVRSB vêm contribuindo para a prática clínica e planejamento de políticas públicas, direcionando os recursos públicos e enfatizando a priorização do tratamento odontológico para doenças bucais com impacto negativo na QV da população.

 

REFERÊNCIAS

1. WHO. Preamble to the Constitution of the World Health Organization as adopted by the International Health Conference, New York, 19-22 June, 1946; signed on 22 July 1946 by the representatives of 61 States (Official Records of the World Health Organization, no. 2, p. 100) and entered into force on 7 April 1948. Disponível em: http://www. who.int/about/definition/ en/print.html).         [ Links ]

2. Gherunpong S, Sheiham A, Tsakos G. A sociodental approach to assessing children's oral health needs: integrating an oral health-related quality of life (OHRQoL) measure into oral health service planning. Bull World Health Organ. 2006;84(1):36-42.

3. World Health Organization. WHOQOL – measuring quality of life. The World Health Organization quality of life instruments. Geneva: World Health Organization; 1997.

4. Seidl EM, Zannon CMLC. Quality of life and health: conceptual and methodological issues. Cad Saúde Pública. 2004;20(2):580-8.

5. McDowell I, Neweel C. Measuring health: a guide to rating scales and questionnaires. 2nd ed. New York: Oxford University Press; 1996.

6. Guyatt G, Walter S, Norman G. Measuring change over time: assessing the usefulness of evaluative instruments. J Chron Dis. 1987;40(2):171-8.

7. Watt RG, Harnett R, Daly B, Fuller SS, Kay E, Morgan A, Munday P, Nowjack-Raymer R, Treasure ET. Evaluating oral health promotion: need for quality outcome measures. Community Dent Oral Epidemiol. 2006;34(1):11-7.

8. Abanto J, Tsakos G, Paiva SM, Goursand D, Raggio DP, Bönecker M. Cross-cultural adaptation and psychometric properties of the Brazilian version of the scale of oral health outcomes for 5-year-old children (SOHO-5). Health Qual Life Outcomes. 2013;11:16.

9. Abanto J, Tsakos G, Ardenghi TM, Paiva SM, Raggio DP, Sheiham A, Bönecker M. Responsiveness to change for the Brazilian Scale of Oral Health Outcomes for 5-year-old children (SOHO-5). Health Qual Life Outcomes. 2013; 11(1):137.

10. Abanto J, Carvalho TS, Mendes FM, Wanderley MT, Bönecker M, Raggio DP. Impact of oral diseases and disorders on oral health-related quality of life of preschool children. Community Dent Oral Epidemiol. 2011;39(2):105-14.

11. Abanto J, Tsakos G, Paiva SM, Carvalho TS, Raggio DP, Bönecker M. Impact of dental caries and trauma on quality of life among 5- to 6-year-old children: perceptions of parents and children. Community Dent Oral Epidemiol. 2014 Jan 25. doi: 10.1111/cdoe.12099. [Epub ahead of print]

12. Abanto J, Tello G, Bonini GC, Oliveira LB, Murakami C, Bönecker M. Impact of traumatic dental injuries and malocclusions on quality of life of preschool children: a population-based study. Int J Paediatr Dent. 2014 Jan 5. doi: 10.1111/ipd.12092. [Epub ahead of print]

13. Abanto J, Paiva SM, Raggio DP, Celiberti P, Aldrigui JM, Bönecker M. The impact of dental caries and trauma in children on family quality of life. Community Dent Oral Epidemiol. 2012;40(4):323-31.