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Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

versão impressa ISSN 0004-5276

Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.68 no.4 Sao Paulo Out./Dez. 2014

 

Excelência na Odontologia

 

Como as pesquisas de excelência em remoção parcial de tecido cariado podem contribuir para a prática clínica?

 

How the research excellence in partial caries removal can contribute for clinical practice?

 

Marisa MaltzI;Juliana Jobim Jardim II

IBolsista de produtividade em Pesquisa CNPq; Professora Titular do Departamento de Odontologia Preventiva e Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Professora do Programa de Pós-Graduação em Odontologia da UFRGS – Área de Clínica Odontológica
IIProfessora Adjunta do Departamento de Odontologia Preventiva e Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Professora do Programa de Pós-Graduação em Odontologia da UFRGS – Área de Clínica Odontológica

 

O grupo de Cariologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desenvolveu nos últimos 15 anos uma série de pesquisas laboratoriais e estudos clínicos relacionados ao diagnóstico e controle da doença cárie. Uma linha de pesquisa importante do nosso grupo é relacionada à remoção de dentina cariada. Neste artigo discutiremos as evidências científicas atuais sobre esta importante etapa do tratamento restaurador.

A cárie dentária resulta de uma série de fatores que afetam o biofilme localizado na superfície dentária, como por exemplo, componentes salivares, dieta e hábitos de higiene bucal. Uma vez que a lesão de cárie está estabelecida na superfície do esmalte, se nenhuma medida para controlar a doença cárie for tomada, esta perda inicial de minerais pode progredir e invadir a dentina podendo levar à formação de uma cavidade. A lesão de cárie com cavidade e sem cavidade pode ser controlada através do controle dos fatores determinantes da doença (dieta e biofilme dentário). Entretanto, no momento em que a remoção mecânica do biofilme não é mais passível de ser realizada, faz-se necessário selar/restaurar a lesão.

Na Odontologia tradicional, a remoção total de tecido cariado era preconizada visando à obtenção de um tecido dentinário endurecido e livre de microrganismos, condição que era considerada fundamental para a paralisação do processo de cárie. Entretanto, sabe-se que há presença de bactérias em lesões clinicamente confinadas ao esmalte, inclusive o tecido dentinário, e que, mesmo assim, essas lesões são passíveis de controle (Parolo et al., 2006). Além disso, a remoção completa de dentina cariada não deixa a cavidade isenta de microrganismos (MacGregor et al., 1956; Shovelton, 1968; Banerjee et al., 2002) e não existe evidência da relação entre a dureza do tecido dentinário e seu nível de contaminação (Iost et al., 1995). Em estudo clínico recente, a contaminação microbiana em tecido dentinário após a remoção parcial de tecido cariado foi comparada com a remoção total de tecido cariado, e os resultados mostraram que o selamento da dentina cariada resulta em níveis de infecção mais baixos do que a remoção tradicional da dentina cariada (Maltz et al., 2012). Assim, a manutenção de microrganismos no tecido dentinário abaixo de restaurações ocorre independentemente do tipo de remoção de tecido cariado utilizado – total ou parcial -, e não impede o sucesso clínico do tratamento.

No caso de lesões profundas de cárie, caso a remoção total de tecido cariado seja realizada, o tratamento expectante tem sido preconizado com o objetivo de diminuir o risco de exposição pulpar (Magnusson et al., 1977; Leksell et al., 1996; Bjørndal et al., 2010). O tratamento expectante consiste na remoção parcial de dentina cariada na primeira sessão e colocação de uma restauração provisória. Isto permite a remineralização do tecido e formação de dentina terciária. Numa segunda visita (60-90 dias após) realiza-se a remoção total de dentina cariada e a restauração. Se a exposição pulpar ocorre na presença de tecido cariado, o prognóstico dos tratamentos de capeamento pulpar direto ou curetagem pulpar é ruim, apresentando taxas de sucesso após um ano em torno de 30% (Bjørndal et al., 2010), e de 13% após 10 anos (Barthel et al., 2000). O tratamento expectante configura- se como alternativa à remoção total de tecido cariado em uma etapa, mostrando taxa de sucesso de 92% após de 3-4 anos (Bjørndal et al., 1999). Recentemente, em um ensaio clínico randomizado controlado (Bjørndal et al., 2010), o tratamento expectante foi comparado à remoção total de tecido cariado em pacientes com dentes permanentes com lesões de cárie profunda. Após um ano de acompanhamento, o sucesso do tratamento expectante em manter a vitalidade pulpar foi de 71,4%, comparado a 62,4% da remoção completa de tecido cariado.

O tratamento expectante - que é a remoção total de tecido cariado em duas sessões - apresenta, entretanto, alguns problemas: requer duas sessões para sua realização, o que resulta em custo adicional, tempo e desconforto para o paciente, além da possibilidade de exposição pulpar, fratura e perda da restauração provisória e não retorno do paciente para a segunda visita.

Estudos que utilizaram o tratamento expectante mostram que, após a remoção parcial do tecido cariado na parede pulpar e selamento da cavidade, a dentina remanescente apresenta características de inatividade: tecido endurecido, seco e com redução significativa do número de microrganismos (Bjørndal et al., 1997; Bjørndal e Larsen, 2000).

Baseado em todas as evidências apresentadas anteriormente, passou-se a questionar a necessidade da remoção total de tecido cariado previamente ao tratamento restaurador.

Nosso Grupo de Cariologia pesquisou uma técnica mais conservadora de escavação dentinária realizada em uma única sessão para dentes permanentes, chamada de remoção parcial de tecido cariado (RPTC). Neste tratamento, a dentina cariada é completamente removida das paredes da cavidade, com exceção da parede pulpar, na qual apenas a dentina necrótica e desorganizada é removida. Quando a dentina assume maior consistência e resistência ao corte, a escavação é interrompida e a cavidade é restaurada. Uma série de publicações nossas (Maltz et al., 2002; Oliveira et al., 2006; Maltz et al., 2007; Maltz et al., 2011) têm demonstrado que a RPTC em lesões profundas de cárie é uma alternativa viável para preservar a vitalidade pulpar. Após 10 anos de acompanhamento, a taxa global de sucesso foi de 62%, incluindo as falhas relativas ao material e à técnica restauradora. Quando somente o desfecho de vitalidade pulpar é analisado, a taxa de sucesso passa a ser de 80%. Radiograficamente há um aumento na radiopacidade da dentina cariada deixada sob a restauração, indicando ganho mineral com o tempo (Alves et al., 2010). O número de micro-organismos é reduzido após o selamento da cavidade (Maltz et al., 2002), alcançando níveis usualmente encontrados em cavidades nas quais a remoção completa de tecido cariado foi realizada (Maltz et al 2012).

A fim de gerar um maior nível de evidência sobre a RPTC, um ensaio clínico randomizado controlado multicêntrico foi realizado com o objetivo de comparar a efetividade do tratamento expectante e da remoção parcial de tecido cariado em uma sessão para lesões profundas de cárie (Maltz et al, 2012; Maltz et al. 2013). Os tratamentos foram realizados em serviços públicos de saúde e universidades de Brasília (DF) e de Porto Alegre (RS). Foram incluídos 232 pacientes com 299 lesões de cárie profundas em molares permanentes com idade de 9 a 53 anos que apresentassem sinais clínicos e radiográficos de vitalidade pulpar. Após três anos de acompanhamento, 213 dentes foram reavaliados e as taxas de sucesso (manutenção da vitalidade pulpar) foram de 91% no grupo que recebeu remoção parcial de dentina cariada e restauração em sessão única e de 69% no grupo que recebeu o tratamento expectante (p<0,005) (Maltz et al, 2012). O sucesso dos tratamentos não mostrou correlação com a idade dos indivíduos, com o tipo de material restaurador utilizado (amálgama ou resina composta), nem com o nível socioeconômico dos pacientes. Os tratamentos foram avaliados, ainda, em sua relação de custo-efetividade, mostrando uma economia de 68% da RPTC em relação ao tratamento expectante.

A menor taxa de sucesso do tratamento expectante levou à realização de uma análise de subgrupo, na qual os dados dos tratamentos realizados de forma completa (comparecimento do paciente às duas consultas no tempo esperado) foram comparados aos tratamentos realizados de forma incompleta (não retorno do paciente no período de tempo correto para conclusão do tratamento). Nessa análise, a taxa de sucesso do tratamento expectante completo foi de 88% enquanto a taxa do tratamento incompleto foi de 13% após três anos. Este resultado evidencia a principal desvantagem do tratamento expectante em relação a RPTC: a necessidade de duas consultas para realização do tratamento, com altos índices de não retorno do paciente.

Assim, o conjunto de todas as evidências discutidas indica que a remoção parcial de tecido cariado pode ser realizada de forma definitiva em uma única sessão em dentes permanentes, tornando a reabertura da cavidade e escavação final desnecessárias. A manutenção de dentina cariada não interfere na manutenção da vitalidade pulpar e longevidade da restauração.

 

REFERÊNCIAS

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