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Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

versão impressa ISSN 0004-5276

Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.69 no.1 Sao Paulo Jan./Mar. 2015

 

Autor convidado clínico

 

Freio lingual: abordagem clínica interdisciplinar da Fonoaudiologia e Odontopediatria

 

Lingual frenulum: interdisciplinary clinical approach of Speech Terapy and Pediatric Dentistry

 

 

Erissandra GomesI; Fernando Borba de AraújoII; Jonas de Almeida RodriguesIII

 

I Doutorado - Professora adjunto do curso de Fonoaudiologia do Departamento de Cirurgia e Ortopedia da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
II Doutorado - Professor associado do curso de Odontologia do Departamento de Cirurgia e Ortopedia da Faculdade de Odontologia da UFRGS
III Doutorado - Professor adjunto do curso de Odontologia do Departamento de Cirurgia e Ortopedia da Faculdade de Odontologia da UFRGS

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

Introdução: O freio lingual é uma estrutura anatômica cujo papel é muito importante para a sucção, fala e alimentação. Um freio curto e aderido pode impedir o movimento da língua e com isso causar impactos anatômicos e funcionais para o paciente. Objetivos: O objetivo deste relato de caso é demonstrar, com olhar clínico interdisciplinar, as ações conjuntas entre a Odontopediatria e a Fonoaudiologia frente à alteração de freio lingual em uma criança com alteração na fala. Foi realizado diagnóstico em conjunto e traçado o plano de tratamento que constou de frenectomia e acompanhamento fonoaudiológico no intuito de monitorar as evoluções e proporcionar tratamento global. Conclusão: O procedimento cirúrgico, realizado pela Odontopediatria trouxe ganhos anatômicos e de mobilidade de língua, entretanto os aspectos alterados da fala permaneceram imediatamente após a intervenção, enfatizando a necessidade do tratamento e do acompanhamento fonoaudiológico.

Descritores: cirurgia bucal; freio lingual; odontopediatria; fonoaudiologia; terapia miofuncional lingual.


 

ABSTRACT

Introduction: The lingual frenulum is an important anatomic structure involved in the act of suction, speech and feeding. A short and adhered frenulum limits the tongue movement and therefore, can cause anatomic and functional impacts in the patient. Aim: The aim of this case report is to show, with an interdisciplinary approach, strategies implemented by the Speech Therapy and Pediatric Dentistry for alterations in a lingual frenulun of a child with speech problems. This alteration was diagnosed and the treatment plan defined by both professionals and the frenectomy was conducted. Speech therapist followed up the patient in order to provide global treatment. Conclusion: Surgical procedure, conducted by the pediatric dentist improved tongue mobility, however speech alterations still were present after the intervention, emphasizing the need of a speech monitoring and therapy.

Descriptors: surgery, oral; frenum; pediatric dentistry; speech, language and hearing sciences; myofunctional therapy.


 

 

RELEVÂNCIA CLÍNICA

Demonstrar ações interdisciplinares da Fonoaudiologia e da Odontopediatria para o diagnóstico e tratamento clínico das alterações de freio lingual com repercussões funcionais no paciente.

 

INTRODUÇÃO

O freio lingual é uma prega mediana de túnica mucosa que recobre a face lingual da crista alveolar anterior.1 A alteração ocorre quando uma pequena porção de tecido embrionário, que deveria ter sofrido apoptose durante o desenvolvimento, permanece na face ventral da língua, causando alterações de inserção e/ou comprimento.2 A alteração nesta estrutura pode se manifestar de diversas formas, desde uma prega que tem a inserção na crista alveolar até a que surgirá após as carúnculas sublinguais. O mesmo ocorre com a inserção na base da língua que pode estar inserida no ápice lingual ou antes dele. Esta alteração no freio da língua é denominada de anquiloglossia e popularmente conhecida como língua presa.3-5

Aspectos relacionados ao diagnóstico variam conforme o referencial teórico utilizado, baseando-se, na sua maioria, em critérios anatômicos relacionados à cavidade bucal na apresentação do freio lingual como curto e espesso. Há menção ao formato de "coração" e aos aspectos funcionais, entretanto não há um protocolo validado para avaliação de crianças em idade pré-escolares ou maiores.4 No Brasil há um consenso entre fonoaudiólogos para utilização de um protocolo que está em processo de validação.6

A prevalência da alteração do freio lingual pode variar conforme os critérios diagnósticos estabelecidos, dado que na literatura não há um consenso sobre o mesmo, sendo que os estudos indicam uma variação de 0,1 a 10,7%.4,7 A etiologia é desconhecida, mas há predomínio desta alteração no gênero masculino e quando há histórico positivo da alteração na família.4

As alterações funcionais vão depender da idade da criança. Sabe-se que em muitos casos a alteração do freio da língua pode prejudicar o aleitamento materno; após, a aquisição de outras funções orofaciais, como a mastigação e a deglutição. E, por fim, alterar a aquisição e produção de alguns sons na fala ou até mesmo em comprometimentos sociais. As alterações mais comumente encontradas são a redução ou inabilidade na mobilidade da língua (principalmente a vibração), a imprecisão articulatória devido a redução da abertura da boca e a dificuldade na aquisição ou produção distorcida do fonema [r] e dos grupos consonantais com [l] e com [r], além da distorção para os fonemas fricativos.3,5

A técnica cirúrgica envolve procedimentos simples e pode ser facilmente realizada em consultório odontológico. Sob a anestesia local do nervo alveolar inferior e lingual, insere-se um fio de sutura no ápice da língua para que seja realizado o tracionamento. É realizada então a secção da porção mais fina deste tecido localizada entre o processo alveolar e o dorso da língua. Por fim, é realizada a sutura e o paciente permanece sob avaliação.

São poucos os relatos na literatura que abordam a intervenção fonoaudiológica em conjunto com a intervenção cirúrgica na população infantil8,9,10,11,12,13, entretanto, os mesmos demonstram a necessidade da prescrição de exercícios de mobilidade de língua e de técnicas para a produção dos fonemas para a evolução do paciente. Um estudo nacional demonstrou as modificações anatômicas e funcionais que ocorreram após a intervenção cirúrgica.14

 

RELATO DO CASO CLÍNICO

Paciente com 6 anos de idade, do sexo masculino, com boa saúde geral, compareceu a consulta de retorno para reavaliação do tratamento de lesões de cárie não cavitadas ativas. Neste momento, foi encaminhado, no mesmo local, para interconsulta com a Fonoaudiologia, pois havia a queixa da mãe do "falar errado" e suspeita pela equipe da Odontopediatria de que o freio lingual curto fosse a causa. Este relato de caso clínico faz parte de um estudo maior, aprovado pela Comissão de Pesquisa e Ética em Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sob número 21471/2012. O responsável pelo paciente autorizou o relato e assinou ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Inicialmente o paciente foi submetido à avaliação pelo odontopediatra que, em cadeira odontológica e sob luz artificial identificou a presença de freio lingual, curto, aderido, volumoso e que limitava a amplitude dos movimentos de elevação (Figuras 1 e 2), de protrusão e lateralidade (Figura 3) da língua. Em seguida, foi avaliado pela fonoaudióloga que aplicou o "Protocolo de Avaliação do Frênulo de Língua"6 por meio de observação indireta complementada e pela análise posterior de imagens em vídeo e fotos, registrados a 1 metro de distância, momento em que a criança permaneceu sentada com os pés apoiados no chão e com a cabeça em posição habitual. O referido protocolo consta de anamnese e avaliação clínica (provas anatômicas e funcionais).

A indicação pela intervenção cirúrgica com acompanhamento fonoaudiológico foi realizada em comum consenso entre os profissionais envolvidos. O procedimento cirúrgico ocorreu na Clínica Infanto-Juvenil da Faculdade de Odontologia da UFRGS. A frenectomia lingual foi realizada em consultório odontológico e sob anestesia local dos nervos alveolar inferior e lingual. Agulha e fio de sutura foram utilizados para o tracionamento do ápice da língua, com o objetivo de facilitar a secção do tecido, a qual foi realizada na região entre o processo alveolar inferior e o seu dorso (Figura 4). Após a divulsão de fibras musculares, foi realizada a verificação em conjunto com a fonoaudióloga para avaliar se a elevação lingual, mesmo sendo passiva, estava de acordo com o necessário para o bom desempenho das funções orais. Em seguida, foi realizada a sutura (Figuras 5 e 6).

Na anamnese a queixa principal foi em relação à fala. Não foi amamentado no seio materno e utilizou mamadeira até os três anos. Histórico de dificuldades de mastigação com alimentos mais consistentes e presença de hábito oral. Os aspectos fonoaudiológicos avaliados segundo o protocolo proposto, no pré-cirúrgico imediato e no pós-cirúrgico (30 dias após) serão descritos a seguir.

O freio lingual foi classificado como curto com a fixação no assoalho da boca visível a partir da crista alveolar inferior e na face inferior da língua entre a parte média e o ápice. Os principais achados das alterações observadas durante a elevação e o percentual de abertura estão descritos no Quadro 1. Considerando que o protocolo em questão atribui escores ao longo do mesmo, optou-se por apresentá-los, na sua totalidade, para fins de discussão. Nas provas anatômicas (alterações anatômicas na elevação da língua, mensuração do percentual de abertura oral e fixação do freio lingual) no pré-cirúrgico o escore alcançado foi 8 e no pós-cirúrgico foi 1, sendo que o melhor resultado para este bloco da testagem é 0 e o pior resultado é 9.

As provas funcionais abrangem a mobilidade de língua, o tônus, a posição da língua durante o repouso e a fala (incluindo os fones alterados e aspectos como abertura da boca, movimento mandibular, imprecisão e voz). A mobilidade de língua é analisada durante os movimentos isolados (protruir, elevar, lateralizar, sugar e vibrar). Também foi observado que o tônus de língua estava diminuído e a posição no assoalho da cavidade oral, no pré e no pós-cirúrgico. A fala foi analisada através do relato informal, contagem de números, dias da semana e meses do ano, assim como a nomeação de figuras. Além da análise de quais fonemas estavam alterados e o tipo de alteração (omissão, substituição e/ou distorção), outros aspectos da fala também foram percebidos. As alterações de fala encontradas, assim como as alterações de mobilidade da língua estão descritas no Quadro 1. Em relação aos outros aspectos, tanto no pré quanto no pós-cirúrgico houve presença de redução de abertura de boca, língua em posição rebaixada e imprecisão articulatória. O escore alcançado nas provas funcionais no pré-cirúrgico foi de 26 pontos e no pós-cirúrgico de 21 (sendo zero o melhor e 44 o pior escore que poderia ser obtido), com melhoras somente no item relacionado aos movimentos isolados de mobilidade da língua, entretanto, sem ganhos nos aspectos de postura, tônus e articulação (fala).

Considerando que após 30 dias da intervenção cirúrgica a alteração de fala persistia, apesar de melhoras principalmente nas provas anatômicas, o paciente iniciou terapia fonoaudiológica semanal na mesma instituição com o objetivo de aquisição e automatização dos fones não produzidos ou substituídos.

 

DISCUSSÃO

Os dados obtidos na anamnese corroboram com a literatura ao indicarem que a alteração no freio lingual pode causar impacto nas funções orais primárias, como o aleitamento materno, e na aquisição de habilidades aprendidas como a mastigação e a fala.4,5,8,15 A classificação atribuída para a fixação do freio lingual justifica as alterações de anatômicas e funcionais encontradas no paciente3,14 assim como os achados anatômicos estão de acordo com o descrito na literatura.4

O caso clínico em questão demonstra que ocorreram melhoras somente com o procedimento cirúrgico, entretanto essas são especialmente decorrentes dos itens das provas anatômicas. Justifica-se tal achado na medida em que o pro-

 

 

 

 

 

cedimento de frenectomia libera a prega e as fibras musculares, possibilitando a elevação da língua sem movimentos compensatórios associados.14,16 A técnica cirúrgica realizada é bastante simples e foi bem aceita pelo paciente, o qual não apresentou queixa e nem sensibilidade pós-operatória.

Nas provas funcionais, principalmente nas habilidades de movimentação da língua isolada (protruir, elevar, lateralizar) a melhora ocorreu pelo mesmo motivo acima citado. Entretanto, não foi observada melhora no aspecto de vibração do ápice da língua, o que pode ser explicado por este movimento requerer do paciente uma habilidade motora mais precisa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para a fala não houve melhora, segundo o protocolo proposto. Alguns estudos acompanharam, sob a perspectiva fonoaudiológica, crianças após a realização do procedimento cirúrgico e citam um ganho significativo na protrusão e elevação da língua, bem como melhora subjetiva no discurso sem especificar quais foram os aspectos analisados; outros não encontraram evoluções significativas na fala após o procedimento.9,8,10,12

Cabe enfatizar a necessidade da intervenção cirúrgica nos casos de alteração do freio lingual com repercussões funcionais. A liberação da língua que é realizada exclusivamente através desta técnica é essencial para que a Fonoaudiologia tenha condições posteriores de trabalhar com os exercícios mioterápicos e de instalação e automatização dos fonemas alterados.

Ressalta-se a importância deste estudo para apresentar à comunidade odontológica a necessidade da intervenção cirúrgica e do trabalho interdisciplinar com a Fonoaudiologia em casos com alteração de freio lingual com repercussão funcional. Muito se tem discutido sobre a relevância do diagnóstico precoce com o objetivo de minimizar as alterações, principalmente para a articulação (fala). Alguns estudos tem demonstrado que intervenções precoces, ressaltando a

 

 

 

importância de correto diagnostico, são fundamentais para as funções primárias, como a sucção necessária para o aleitamento materno, bem como para o aprendizado de futuras funções orofaciais aprendidas.4,5,15

 

CONCLUSÃO

O procedimento cirúrgico, realizado pela Odontopediatria, trouxe ganhos anatômicos e de mobilidade de língua, entretanto, as alterações funcionais, especialmente a fala, permaneceram após a intervenção, necessitando do tratamento e do acompanhamento fonoaudiológico. O planejamento interdisciplinar mostrou a necessidade da atuação conjunta entre a Fonoaudiologia e a Odontopediatria.

 

APLICAÇÃO CLÍNICA

Este relato de caso enfatiza a importância do trabalho clínico interdisciplinar em especial com interfaces com outras áreas da saúde, como a Fonoaudiologia, principalmente no que se refere aos aspectos funcionais de estruturas anatômicas importantes.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Jonas de Almeida Rodrigues
Faculdade de Odontologia da UFRGS
Rua Ramiro Barcelos, 2492
Bom Fim - Porto Alegre – RS
Brasil 90035-003

e-mail:
erifono@hotmail.com

 

Recebido: fev/2015
Aceito: fev/2015