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    Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

      ISSN 0004-5276

    Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.69 no.3 Sao Paulo jul./sep. 2015

     

    Relato de caso clínico (Autor convidado)

     

    Relato de caso clínico: tumor odontogênico queratocístico na primeira infância

     

    Case report: keratocystic odontogenic tumor in early childhood

     

     

    Israel ChilvarquerI; Maria da Graça Naclero HomenII; Eduardo Felippe Duailibi NetoIII; Isabela Goulart Gil ChoiIV; Michel Eli Lipiec XimenezV; Jorge Eli HayekVI; Andrea Aparecida TrainaVII

     

     

    I Professor associado e livre-docente da disciplina de Radiologia da Fousp - Diretor clínico do Instituto de Documentação Ortodôntica e Radiodiagnóstico (Indor)
    II Professora associada e livre-docente da disciplina de Cirurgia Oral da Fousp
    III Mestre e doutorando em Diagnóstico Bucal pela Fousp
    IV Mestranda em Diagnóstico Bucal pela Fousp
    V Especialista em Radiologia pela FOB-USP - Diretor clínico do Indor
    VI Especialista em Radiologia pela Fousp, mestre e doutor em Diagnóstico Bucal pela Fousp e diretor clínico do Indor
    VII Professora doutora do Departamento de Cirurgia Bucomaxilofacial da Fousp

    Endereço para correspondência

     

     


     

    RESUMO

    Em 2005, o queratocisto odontogênico foi renomeado e reclassificado para tumor odontogênico queratocístico pela Organização Mundial de Saúde. Seu comportamento agressivo e invasivo, sua elevada taxa de recidiva pós-operatória e novas descobertas moleculares possibilitaram esta reclassificação. Neste artigo pretendemos recordar alguns conceitos desta lesão bem como discutir alguns parâmetros de imagem destacando um caso clínico atípico desta lesão. Discutindo de que modo as novas tecnologias de diagnóstico por imagem auxiliam o Cirurgião-Dentista no planejamento terapêutico e no diagnóstico deste tipo de lesão.

    Descritores: patologia oral; radiologia oral; tomografia computadorizada de feixe cônico; odontopediatria


     

    ABSTRACT

    In 2005 the Keratocyst Odontogenic was renamed and reclassified to Keratocystic Odontogenic Tumor by the World Health Organization. His aggressive and invasive behavior, its high postoperative recurrence rate and new molecular discoveries made possible this reclassification. This article aims to recall some concepts of this injury as well as discuss some image parameters highlighting an atypical clinical case of injury. Discussing how new technologies diagnostic imaging helps the dentist surgeon in planning and diagnosis of this type of lesion.

    Descriptors: oral pathology; oral radiology; cone beam computed tomography; pediatric dentistry


     

     

    RELEVÂNCIA CLÍNICA

    A presente descrição clínica possui uma alta relevância. Comumente encontrado em indivíduos adultos, o TOQ, raramente é observado na primeira infância. O caso serve de alerta para todos profissionais, pois facilmente seria mal interpretado. O TOQ é uma lesão agressiva, sua ocorrência na primeira infância poderá trazer sequelas graves ao paciente.

     

    INTRODUÇÃO

    O Queratocisto Odontogênico foi inicialmente descrito por Philipsen em 1956 e classificado como um cisto de origem odontogênica. Esta lesão foi recentemente renomeada para Tumor Odontogênico Queratocístico (TOQ) e reclassificada como um neoplasma odontogênico benigno pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2005.1 Clinicamente o TOQ é definido como um tumor intra-ósseo, uni ou multicístico podendo ocorrer em qualquer região dos maxilares. Podendo-se sobrepor aos ápices dentários, imitando lesões periapicais, ou estando adjacente às coroas dos dentes impactados.2 Geralmente, a lesão acomete pessoas na segunda, terceira ou quarta décadas de vida e possui uma discreta predileção para o gênero masculino.4 O principal sintoma é um aumento de volume regional com ausência de sintomatologia álgica. O local mais frequente de incidência desta lesão é na região posterior a mandíbula podendo afetar, corpo, ramo e ângulo.4 O principal sintoma é um aumento de volume na região com ausência de sintomatologia álgica. Geralmente devido estas características assintomáticas, o diagnóstico inicial é dado por imagens radiográficas.5

    Radiograficamente, esta lesão apresenta-se como uma rarefação óssea uni ou multilocular, com bordas escleróticas, podendo estar ou não associadas com um dente impactado, geralmente esta lesão possui uma discreta predileção de crescimento anteroposterior.6 Dentre as Hipóteses Diagnosticas o aspecto da imagem do TOQ, podemos elencar: o Cisto Dentígero, o Ameloblastoma e dependo do contorno à lesão Central de Células Gigantes. O surgimento da Tomografia Computadorizada de Feixe Cônico (TCFC) possibilitou a visualização de estruturas anatômicas nas três dimensões, além da capacidade de reformatar imagens, possibilitando diversas segmentações multiplanares, para analisar as estruturas anatômicas, otimizando o diagnóstico diferencial do paciente.7 Desta forma, o profissional possui maior possibilidade em localizar, identificar classificar, as possíveis alterações das estruturas anatômicas, no entanto, diagnóstico desta lesão é fornecido exclusivamente pelo exame histopatológico. Ao microscópio, a lesão apresenta-se com um epitélio escamoso estratificado de revestimento uniforme, possui uma cápsula fibrosa fina e friável, rica em mucopolissacarídeos e com poucas células inflamatórias.8

    O TOQ possui um comportamento agressivo com uma alta taxa de recidiva, esta é a principal razão da sua reclassificação bem como sua renomeação.9 Esta reclassificação de cisto para tumor tem gerado discussões sobre a terapêutica mais adequada. Há profissionais que optam pelo tratamento mais conservador utilizando a técnica de enucleação, com ou sem curetagem, ou a técnica da marsupialização que possui a vantagem de preservar as estruturas anatômicas; e há profissionais que optam por um tratamento mais agressivo utilizando a ostectomia periférica, curetagem química com o uso da solução de Carnoy, e a técnica de ressecção em bloco.10 Entretanto, avanços na pesquisa genética e molecular levaram a um maior conhecimento sobre a patogênese, o que pode acarretar em novas opções de tratamento em um futuro próximo.11

    No presente caso clínico o responsável pelo paciente do gênero masculino com 5 anos de idade, procurou auxílio do Cirurgião- Dentista pelo fato do filho apresentar um discreto aumento de volume na região mandibular anterior com retardo na cronologia de erupção dos elementos permanentes.

     

    RELATO DE CASO CLÍNICO

    Paciente ARCB, com 5 anos de idade, do gênero masculino, foi encaminhado para avaliação, de um sutil aumento de volume extraoral na região da mandíbula, lado direito observado pelo Pai há uma semana, quando acariciava o rosto do filho. O exame físico loco-regional da face identificou assimetria facial, por aumento de volume mandibular região anterior do corpo do lado direito e o exame clinico intraoral revelou dentição decídua completa, aumento de volume na região de rebordo alveolar vestibular e lingual na região do canino e primeiro molar decíduo inferior, com mobilidade de tais dentes, perda da profundidade do fundo de sulco vestibular e crepitação a palpação na região vestibular e lingual. No exame físico geral, o paciente apresentou bom estado geral, corado, hidratado, sem nada digno de nota. Portanto solicitou-se um exame de Tomografia Computadorizada de Feixe Cônico (TCFC).

    A TCFC possibilitou a observação das estruturas do paciente nas três dimensões. Nos cortes axiais (Figura 1) podemos observar a extensa lesão osteolítica em corpo de mandíbula com aspecto unilocular, corticalizada e com contornos definidos. Estas imagens sugerem um aspecto de lesão benigna com característica cística. A associação da análise destas imagens axiais com outros tipos de reformatações tal como a reformatação panorâmica (Figura 2), imagens parasagitais (Figura 3) e reconstrução tridimensional (Figura 4) permite a correta localização da lesão. Desta forma, estabelecemos que a lesão está em contiguidade com o canal da mandíbula, adelgaçando as corticais ósseas vestibulares e linguais, bem como causando um deslocamento dos germes dos elementos 45, 44, 43, 42, 41, 31 e 32 para a região basal da mandíbula. Em decorrência destas associações de imagens em diferentes planos de corte e reformatações concluímos nossas hipóteses diagnósticas em TOQ, Cisto Dentígero e Lesão Central de Células Gigantes.

    Diante de tais hipóteses diagnósticas, determinou-se a terapêutica cirúrgica como modo de tratamento e utilizou-se a proposta de marsupialização da lesão devido a precoce idade do paciente. O procedimento cirúrgico foi realizado em ambiente hospitalar. O paciente submetido à sedação por anestesia geral em centro cirúrgico. Após antissepsia extraoral com gluconato de clorexidina dergermante a 2%, antissepsia intraoral com solução bucal de gluconato de clorexidina a 0,12%, foi realizada a punção como manobra de orientação a reparação tecidual pela face, puncionando um liquido cístico citrino com presença de um pouco de sangue e grumos amarelados. Tal manobra permitiu analisar a extensão da lesão e orientar o procedimento cirúrgico. Neste momento foi realizada a avulsão do canino e primeiro molar inferior direito decíduo. Via alvéolo foi possível acessar a lesão, que clinicamente era constituída de uma cápsula tecidual delgada e friável com cavidade extensa preenchida de liquido e grumos. Por este acesso foi removido um fragmento da lesão para encaminhamento da analise histológica. As bordas da lesão em torno dos alvéolos foi sutura com a mucosa oral adjacente com pontos simples utilizando fio seda 4,0 (EthiconTM, Johnson & Johnson ®) e a cavidade foi preenchida com gaze iodoformada. O paciente foi submetido a três trocas da gaze e lavagem da cavidade com soro

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    fisiológico a cada três dias e no décimo dia de pós-operatório a sutura foi removida. A gaze iodoformada foi mantida por um período de dois meses, com troca semanal periódica e orientação de higienização bucal para o paciente. Após este período a cavidade clinicamente já se apresentava com aspecto de mucosa bucal no seu interior e a cavidade foi diminuindo de volume/profundidade no decorrer deste período. Neste momento, foi instalado um aparelho móvel com função de manter o espaço interdental.

    O resultado da análise histopatológica era compatível com TOQ. A análise microscópica com coloração de hematoxilina e eosina possibilitou a observação de uma lesão que possuía uma fina camada fibrótica e um delicado revestimento epitelial escamoso estratificado compatível com TOQ. Durante os acompanhamentos (Figura 5) observamos regressão gradual da cavidade. Clinicamente, a cavidade não se apresentava mais após quatro meses. O aparelho móvel continuou a ser utilizado para manter o espaço enquanto aguardava-se a erupção dos dentes permanentes na região. Esta erupção ocorreu respeitando a cronologia de erupção e foram reposicionados no arco por meio de movimentos ortodônticos.

     

    DISCUSSÃO

    A reclassificação do TOQ de cisto para tumor ocorreu em 2005.1 Embasou-se nos fatos: comportamento agressivo e a elevada capacidade de recidiva após a enucleação cirúrgica, dentre outras alterações biológicas.9 Estas possuem relevância ao diagnóstico histopatológico e podem influenciar o comportamento clínico da lesão.9 A grande questão atualmente consiste em determinar o tipo de terapêutica a se realizar. 8 Muitos profissionais indicam a enucleação total da lesão com uma margem de segurança afim de evitar recidivas da lesão.

    Esta opção terapêutica possui uma elevada taxa de sucesso, no entanto, gera uma sequela estética e funcional muito grande no paciente. Devido a este fato, no caso em questão, optamos pela marsupialização da lesão. Esta opção de tratamento permite uma elevada taxa de sucesso com uma baixa perda de estética e função desde que diagnosticada precocemente no paciente.7 Nesse relato, a tenra idade do paciente, foi considerada para a seleção da terapêutica. A enucleação cirúrgica com margem de segurança neste paciente poderia acometer um prejuízo funcional e consequentemente prejudicar o desenvolvimento facial do indivíduo, acarretando problemas físicos e psicológicos no jovem.10 Esta opção terapêutica mostrou-se adequada ao caso em questão. Os controles radiográficos, posteriormente a cirurgia, indicaram um aspecto da imagem compatível com a normalidade, bem como uma realocação dos elementos dentários. Desta forma, o paciente não foi acometido com uma morbidade inerente de um tratamento mais agressivo.

    No presente caso, retrata a grande dificuldade, em se estabelecer um diagnóstico por meio do aspecto clínico e imaginológico da lesão. O TOQ possui aspectos de imagem, que são de certa forma vagas e podem assemelhar-se a demais tipos de lesões que podem influenciar e dificultar o estabelecimento de uma terapêutica adequada.5 A análise tomográfica permitiu o estabelecimento de três hipóteses diagnósticas. Inicialmente a lesão possuía um aspecto festonado afastando e circundando as raízes dos elementos decíduos sugerindo uma lesão central de células gigantes.4 O resultado do exame de punção da lesão permitiu a retirada de um líquido citrino excluindo esta hipótese diagnóstica no momento cirúrgico. Após esta exclusão, restavam-se apenas duas hipóteses a de Cisto Dentígero e TOQ. Devido a tenra idade do paciente, a mais provável hipótese diagnóstica fosse a opção de Cisto Dentígero, os aspectos similares de imagem impossibilitava a distinção entre os possíveis diagnósticos.3 Tal problema foi solucionado com a análise histopatológica mas não comprometeu o estabelecimento de uma proposta terapêutica.2 Tal aspecto, esta de acordo com os descritos na literatura. A TCFC é um excelente instrumento de planejamento cirúrgico e diagnóstico6, no entanto, assim como imagens radiográficas em geral apenas sugerem um Diagnóstico Diferencial e precisam ser sempre complementadas com um Exame Clínico e na maioria dos casos uma análise histopatológica.

    A interação multidisciplinar foi essencial para o sucesso clínico obtido.

     

    CONCLUSÃO

    Concluímos o relato de caso, destacando a raridade da ocorrência do TOQ na primeira infância. A habilidade profissional na realização do processo de diagnóstico é essencial para o sucesso e qualidade de vida do paciente. Bem como, a correta aplicação das novas tecnologias de imagem, como a TCFC, apresenta-se crucial para o exercício de diversas especialidades dentre elas, a odontopediatria.

     

    APLICAÇÃO CLÍNICA

    O relato do caso clínico indica como a TCFC pode ser utilizada no diagnóstico em odontopediatria. Ainda persiste uma dúvida de como esta tecnologia de imagem pode ser utilizada na odontopediatria conforme nosso ultimo estudo publicado no volume 69 deste ano nesta revista. A correta aplicação desta ferramenta diagnóstica foi crucial para o sucesso do caso em questão.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Madra J & Lapointe H. Keratocystic Odontogenic Tumour: Reclassification of the Odontogenic Keratocyst from Cyst to Tumour. 2008. pp. 1–9.

    2. Santos JN, Carneiro Junior B, Alves Malaquias PDTI, Henriques ACG, Cury PR, Rebello IMCR. Keratocystic odontogenic tumour arising as a periapical lesion. Int Endod J. 2014 Aug;47(8):802–9.

    3. MacDonald-Jankowski DS. Keratocystic odontogenic tumour: systematic review. Dentomaxillofacial Radiology. The British Institute of Radiology. 36 Portland Place, London, W1B 1AT; 2011 Jan;40(1):1–23.

    4. Regezi JA. Odontogenic cysts, odontogenic tumors, fibroosseous, and giant cell lesions of the jaws. Modern Pathology. 2002 Mar;15(3):331–41.

    5. Kocak-Berberoglu H, Cakarer S, Brkic A, Gurkan-Koseoglu B, Altug-Aydil B, Keskin C. Three-dimensional cone-beam computed tomography for diagnosis of keratocystic odontogenic tumours; Evaluation of four cases. Med Oral Patol Oral Cir Bucal. 2012 Nov;17(6):E1000–5.

    6. Scarfe WC, Farman AG. What is Cone-Beam CT and How Does it Work? Dent Clin North Am. 2008 Oct;52(4):707–30.

    7. An S-Y, Lee J-S, Benavides E, Aminlari A, McDonald NJ, Edwards PC, et al. Multiple simple bone cysts of the Jaws: Review of the literature and report of three cases. OOOO. 2014 Jun;117(6):E458–69.

    8. Li TJ. The Odontogenic Keratocyst: A Cyst, or a Cystic Neoplasm? J Dent Res. SAGE Publications; 2011 Feb;90(2):133–42.

    9. Gomes CC, Diniz MG, Gomez RS. Review of the molecular pathogenesis of the odontogenic keratocyst. Oral Oncology. 2009 Dec;45(12):1011–4.

    10. Ng KH, Siar CH. Odontogenic keratocyst with dentinoid formation. YMOE. 2003 May;95(5):601–6.

     

     

    Endereço para correspondência:
    Israel Chilvarquer – Indor
    Rua Cardoso de Almeida, 2121
    Pacaembú – São Paulo – SP 01251-001
    Brasil

    e-mail:
    israel@indor.com.br

     

    Recebido: jul/2015
    Aceito: ago/2015