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Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

versão impressa ISSN 0004-5276

Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.69 no.3 Sao Paulo Jul./Set. 2015

 

Artigo original (Autor convidado)

 

Solubilidade de cimentos de ionômero de vidro indicados para o Tratamento Restaurador Atraumático

 

Solubility of Glass Ionomer Cements Indicated for Atraumatic Restorative Treatment

 

 

Mario Fernando de GoesI; Adriano Luis MartinsII; Cristiana Godoy SartoriIII; Mario Alexandre Coelho SinhoretiIV

 

I Professor titular do departamento de Odontologia Restauradora, área Materiais Dentários, da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP/Unicamp)
II Mestre em Ciências pelo CENA/USP - Biólogo supervisor do Centro de Microscopia e Imagens da FOP/Unicamp
III Doutora em Materiais Dentários pela FOP/Unicamp
IV Professor titular do departamento de Odontologia Restauradora, área Materiais Dentários, da FOP/Unicamp

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

O objetivo deste estudo foi avaliar e comparar a solubilidade de quatro cimentos de ionômero de vidro disponíveis comercialmente e indicados para a técnica do Tratamento Restaurador Atraumático (ART), quando expostos ao meio ácido (tampão lactato) e neutro (água). Para cada cimento de ionômero de vidro, 8 corpos-de-prova foram obtidos em matrizes plásticas com dimensões especificadas pela ISO 7849. Dois corpos-de-prova suspensos por fios de aço inoxidável dentro de cada frasco "pesa filtro", foram imersos em 50 mL de água deionizada ou 50 mL de solução tampão lactato (pH 2,74), preparada segundo as recomendações da ISO 9917. Para cada série de experimento, outro frasco "pesa filtro" contendo apenas os 50mL de solução tampão lactato ou água destilada foi usado como controle. Nestas condições, os frascos "pesa filtro" foram armazenados sob temperatura de 37oC, durante 23 horas. O conteúdo solúvel para cada par de corpos-de-prova, em porcentagem, foi calculado seguindo a especificação da ISO 7849. O cimento de ionômero de vidro Ketac Molar Easymix apresentou valor percentual de solubilidade significantemente (p< 0,05) menor tanto no tampão lactato (8,70%) como em água (0,06%), em relação aos demais materiais Vitro Molar (12,17% e 0,10%), Vidrion R (13,29% e 0,26%) e Maxxion R (30,07% e 1,85%). Os quatro cimentos de ionômero de vidro foram significativamente mais solúveis em meio ácido do que em água e o material Ketac Molar Easymix apresentou menor solubilidade em ácido e água.

Descritores: materiais dentários; propriedades físicas e químicas; solubilidade


 

ABSTRACT

This study evaluated and compared the solubility of four commercially available glass ionomer cements indicated for Atraumatic Restorarative Treatment (ART), after immersion in acid and water environments. Eight specimens for each brand were obtained using a plastic ring mold with dimensions specified by ISO 7849. Two specimens of the same material were suspended by a platinum wire inside weighing bottles containing 50 mL of water or a lactate buffer solution (pH=2.74) prepared according to ISO 9917. Simultaneously, a clean weighing bottle with either lactate buffer or distilled water was used as a blank estimation for each specimen pair. The weighing bottles were stored at 37oC for 23 hours. The leachable content of each specimen pair in acid or water was calculated as a percentage by mass, according to ISO 7849. Ketac Molar Easymix revealed the statistically lowest solubility in acid (8.70%) and neutral water environments (0.06%) compared to Vitro Molar (12.17% and 0.10%), Vidrion R (13.29% and 0.26%) and Maxxion R (30.07% e 1.85%). All glass ionomer cements showed statically higher solubility in acid compared to water. Ketac Easy Mix cement presented the lowest solubility in both environments.

Descriptors: dental materials; physical and chemical properties; dental enamel solubility


 

 

RELEVÂNCIA CLÍNICA

A baixa solubilidade apresentada pelo cimento de ionômero de vidro Ketac Molar Easymix, tanto em meio ácido como em água, minimiza o risco de degradação da restauração e favorece a ampliação das vantagens sociais obtidas com o uso da técnica ART.

 

INTRODUÇÃO

O cimento de ionômero de vidro convencional é uma classe de material com mais de 40 anos de história. Desde o desenvolvimento, em 19721, tem sido extensamente usado clinicamente como liner ou base de restaurações em resina composta ou amálgama de prata ou como material restaurador.2 É composto por um pó vítreo de alumínio-silicato-cálcio com alto conteúdo de fluoreto e uma solução aquosa de ácido poliacrílico.3 Após a mistura, a presa do material inicia-se por reação ácido-base entre os íons lixiviáveis contidos no vidro e o ácido poliacrílico para formar uma massa homogênea constituída por polissais.4

Oferece a vantagem de se unir ao esmalte e dentina e liberar íons flúor à estrutura dental e para o meio bucal.5,6,7 Além disso, o cimento de ionômero de vidro pode ser recarregado com aplicações de fluoreto ou pela escovação diária com dentifrícios fluoretados para manter a capacidade cariostática.8,9,10,11 Estas características singulares tem sido responsáveis pelo uso clínico do cimento de ionômero de vidro como material restaurador em dentes decíduos e permanentes de pacientes com lesões de cárie ativa ou alto risco à cárie.8,12

O cimento de ionômero de vidro também tem sido indicado como material preventivo e restaurador no método de terapia da cárie denominado Tratamento Restaurador Atraumático (ART).13 Originalmente, esta técnica foi desenvolvida para prover tratamento dental restaurador em regiões onde não existe disponibilidade ou acesso ao tratamento dentário tradicional. A técnica ART requer mínima intervenção clínica, não depende de equipamentos elétricos e consiste somente na remoção do tecido cariado por meio de instrumentos manuais e posterior restauração da cavidade com o cimento de ionômero de vidro.13,14,15

Entretanto, o sucesso clínico de qualquer material restaurador também depende das propriedades físicas que facilitam o procedimento de manipulação e a técnica de aplicação, além de dar condições para suportar as forças funcionais da mastigação e resistir à dissolução e desintegração produzida pela ação do meio bucal. Neste sentido, o cimento de ionômero de vidro indicado para restauração é o tipo de material que tem causado mais controvérsia. Isto porque esta classe de material apresenta baixa propriedade mecânica e índice de solubilidade que limitam o desempenho clínico ao longo do tempo16, especialmente em meio ácido.17,18

No meio bucal, os cimentos de ionômero de vidro estão sujeitos às condições ácidas decorrentes da ingestão de alimentos ácidos ou por degradação de polissacarídeos ou ação da placa bacteriana por produzirem ácido lático em áreas onde o alimento fica estagnado ao redor da restauração.17 Nestas condições, o valor do pH cai para níveis abaixo de 7 e degrada o cimento de ionômero de vidro.19 Além disso, o ácido lático (pH=4,9) também é o componente prevalente na lesão de cárie ativa.17,18

Na área específica da Odontologia restauradora, particularmente para o uso da técnica ART, a seleção de um material com propriedades preventivas e restauradoras envolve produtos quimicamente estáveis quando expostos ao meio bucal. Dessa forma, a habilidade do cimento de ionômero de vidro em resistir à desintegração quando exposto ao meio aquoso e ao ácido lático é também um importante requerimento para avaliar o desempenho clínico e prevenir a solubilidade e perda precoce do material restaurador.

Em função disso, este estudo avaliou e comparou a solubilidade de quatro cimentos de ionômero de vidro convencionais disponíveis para uso clínico e indicados para a técnica ART, quando expostos ao meio ácido (tampão lactato) e à água. A hipótese a ser testada é que a massa, em porcentagem, de solubilidade dos cimentos de ionômero de vidro restauradores não é diferente, independente do meio em que estão imersos.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Delineamento Experimental

Quatro cimentos de ionômero de vidro disponibilizados comercialmente como material restaurador foram avaliados neste estudo. Os detalhes como nome, composição, número de lote e os fabricantes dos materiais estão listados na Tabela 1.

Para cada cimento de ionômero de vidro, oito corpos-de-prova foram obtidos em matrizes plásticas, em forma de anel, com dimensões especificadas pela ISO 784920 (20 mm de diâmetro interno por 1,5 mm de altura). Em uma das faces da matriz foi feito um pequeno corte para inserir um fio de aço inoxidável com 0,25 mm de diâmetro e 10 cm de comprimento. Os fios de aço foram pesados em balança analítica com precisão de 0,01 mg (OHAUS AP250D, Florham Park, NJ, USA) e identificados individualmente. A massa de cada par de fios foi nomeada como m1.

Para a confecção dos corpos-de-prova, a proporção pó e liquido (1:1) de cada um dos cimentos de ionômero de vidro foram determinados de acordo com as instruções dos fabricantes e aglutinados sobre uma placa de vidro, durante 30 segundos, sob temperatura de 23± 2o C e umidade relativa do ar de 50 ±10%. Com o auxílio de uma espátula plástica, a mistura foi transferida para o interior da matriz plástica posicionada sobre uma lâmina de vidro revestida com um filme de polietileno. Sobre a matriz foi colocado outro filme de polietileno e outra lâmina de vidro e, então pressionados por três minutos para comprimir o cimento. Após a geleificação inicial, os excessos de cimento foram removidos e os corpos-de-prova armazenados em 100% de umidade relativa à temperatura de 37o Celsius por uma hora. Em seguida, os corpos-de-prova foram retirados das matrizes plásticas e possíveis resíduos ou partículas soltas foram removidos. O fio de aço inoxidável previamente pesado (m1) foi colocado na matriz plástica no momento da inserção do cimento.

Imediatamente após a confecção, os corpos-de-prova foram suspensos por meio do fio de aço inoxidável em frascos de vidro tipo "pesa filtro", com peso estável e conhecido (m2). Dessa forma, os frascos "pesa filtro" contendo os corpos-de-prova juntamente com o fio foram pesados em uma balança analítica OHAUS AP250D, com precisão de 0,01mg. A massa de cada corpo-de-prova (m3) foi obtida pela equação: m3 – (m2 + m1). Em seguida, dois corpos-de-prova suspensos pelos fios de aço inoxidável dentro de cada frasco "pesa filtro", de forma a não tocarem o fundo ou a parede do frasco, foram imersos em 50 mL de água deionizada ou 50 mL de solução tampão lactato a 0,1M e pH 2,74 preparada no momento do experimento, segundo as recomendações da ISO 9917.21 A solução tampão lactato foi preparada a partir das solu-

 

 

 

ções de ácido lático 85% P.A. (Synth, Diadema, SP, Brasil) e lactato de sódio (Synth, Diadema, SP, Brasil) a 50%, armazenadas por 18 horas antes do uso. Para cada série de experimento, outro frasco "pesa filtro" contendo apenas os 50mL de solução de lactato ou água destilada, foi usado como controle. Nestas condições, os frascos "pesa filtro" foram armazenados a temperatura de 37o C, em estufa (FANEM, 002 CB, SP, Brasil), durante 23 horas.

Decorrido o tempo de armazenamento, os corpos-de-prova foram removidos e a água destilada ou a solução tampão lactato foram evaporadas dos frascos "pesa filtro" em estufa (FANEM, 315 SE, SP, Brasil) a 100o C. Logo após, os frascos "pesa filtro" foram desidratados à temperatura de 150o C, durante 24 horas para estabilização do peso e resfriados até atingir a temperatura ambiente em dessecador contendo sílica-gel ativa por uma hora, conforme a especificação da ISO 748920. O ciclo de desidratação do frasco "pesa filtro" a 150o C e posterior resfriamento em dessecador foi repetido sempre que a diferença da pesagem fosse superior a 0,5mg.

Feito isso, cada frasco "pesa filtro" foi pesado em balança analítica e a massa de cada frasco foi nomeada m4, e o ganho de peso do frasco controle, m5. O conteúdo solúvel (S) para cada par de corpos-de-prova, em porcentagem, foi calculado pela equação:

 

 

 

S é o conteúdo solúvel; m1, peso do fio de aço inoxidável; m2, peso do frasco "pesa filtro"; m3, peso do frasco "pesa filtro" e do corpo-de-prova; m4, peso do "pesa filtro" e da massa residual; m5, ganho de peso do frasco "pesa filtro" controle.

Os valores de solubilidade, em porcentagem, foram tabulados e submetidos à análise de variância sob dois fatores (cimento de ionômero de vidro e solução) e ao teste de Tukey, em nível de 5% de significância.

 

RESULTADOS

O percentual médio de solubilidade dos quatro cimentos de ionômero de vidro indicados para restauração depois de imersos durante 23 horas em água ou tampão lactato está descrito na Tabela 2 e ilustrado nas figuras 1 e 2. Os quatro cimentos de ionômero de vidro foram significativamente mais solúveis em tampão lactato do em água deionizada. Quando imersos na solução tampão lactato, o cimento de ionômero de vidro Ketac Molar Easymix apresentou valor percentual de solubilidade (8,70%) significativamente menor (p<0,05) que os materiais Maxxion R (30,07%), Vidrion R (13,29%) e Vitro Molar (12,17%). Na mesma solução, o cimento de ionômero de vidro Maxxion R apresentou o maior percentual de solubilidade em relação aos demais materiais e foi estatisticamente diferente (p<0,05) quando comparado com Vidrion R e o Vitro Molar que não diferiram entre si (P>0,05). A mesma significância estatística se repetiu quando os quatro cimentos de ionômero de vidro foram avaliados após a imersão em água. A principal diferença em relação ao meio ácido foi o menor valor percentual da massa solubilizada para todos os materiais avaliados. Mesmo assim, o cimento de ionômero de vidro Maxxion R apresentou o maior valor percentual de material solubilizado (1,85%), seguido pelo Vidrion R (0,26%), Vitro Molar (0,10%) e Ketac Molar Easymix (0,06%).

 

DISCUSSÃO

Quatro cimentos de ionômero de vidro de mesma classe e indicados como material restaurador (Tipo II) e também para a técnica ART foram submetidos ao meio neutro (água) e ao meio ácido (solução tampão lactato com pH 2,74) e comparados entre si, utilizando a ISO 7489.20 Como os quatro cimentos de ionômero de vidro apresentam a mesma dinâmica na reação de presa, o teste de solubilidade pode ser usado como indicação da susceptibilidade precoce à água e ao meio ácido.22

Com 23 horas de imersão, o percentual de material solubilizado em tampão lactato foi significantemente maior em relação à solubilidade em água para todos os cimentos de ionômero de vidro avaliados. Prévios estudos também relataram que a solubilidade de cimentos de ionômero de vidro é maior quando imersos em meio ácido.17,18,19,23,24 No entanto, o cimento de ionômero de vidro Ketac Molar Easymix foi definitivamente menos propenso a degradação em meio ácido, sendo estatisticamente diferente quando comparado com os cimentos Vitro Molar, Vidrion R e Maxxion R (Tabela 2 e Figura 2).

A diferença nos valores percentuais de solubilidade parece estar relacionada com a composição de cada um dos cimentos. Como os materiais usados no estudo são aprovados pelo governo (Anvisa) e distribuídos comercialmente, o fabricante é responsável pelo tipo de partícula vítrea de flúor alumino silicato e cálcio e pela proporção entre Al203/Si02 usado na composição

 

 

 

 

 

 

 

do pó. Assim, deve ser considerado que o maior conteúdo de óxido de alumínio (Al203) tem influência direta na reatividade da partícula vítrea e na propriedade física do material.25 Com base nas informações dos fabricantes, o pó vítreo é composto pelos três constituintes principais, dióxido de silício(Si02), óxido de alumínio (Al203) e fluoreto de cálcio (CaF2). Outros íons como bário e lantânio também foram descritos na composição e estão relacionados com a radiopacidade do material. Dessa forma, a constituição do pó vítreo de todos os produtos avaliados aparentemente tem composição parecida. Entretanto, o cimento de ionômero de vidro Ketac Molar Easymix apresenta diferenciação na obtenção do pó vítreo. As partículas vítreas são mais homogêneas e a superfície recebeu um tratamento para reduzir o ângulo de contato e propiciar maior capacidade de umedecimento do componente líquido. Esta característica aumenta o índice de umedecimento da superfície do pó pelo liquido gerando facilidade, rapidez na mistura pó/líquido e velocidade na reação resultando em elevadas propriedades físico-mecânicas, na primeira hora.26 Esta diferença na reatividade da partícula vítrea provavelmente seja uma das razões pela qual o cimento Ketac Molar Easymix apresentou menor percentual de solubilidade tanto em água quanto em tampão lactato quando comparado com os demais cimentos de ionômero de vidro, neste estudo. A formação de uma resistente e insolúvel matriz de poliacrilato de alumínio nos períodos iniciais após a reação de geleificação, provavelmente garantiu maior proteção ao cimento contra a ação tanto da água como do tampão lactato. Por outro lado, os maiores valores percentuais de solubilidade dos cimentos Vidrion R, Vitro Molar e Maxxion R tanto em água como em tampão lactato, indicou provável formação de uma matriz altamente solúvel de poliacrilato de cálcio no período inicial após a geleificação do material.27,28 Nestes casos, tem sido recomendada a proteção da superfície do cimento de ionômero de vidro com vernizes à base de nitrocelulose ou por produtos recomendados pelo fabricante para evitar a solubilidade precoce da matriz do cimento.29 A proteção com produtos insolúveis permite a continuidade da reação ácido-base e a formação de uma matriz de poliacrilato de alumínio que é mais estável no meio bucal.

O componente líquido dos cimentos de ionômero de vidro é baseado em copolímeros do ácido carboxílico, particularmente os provenientes do ácido acrílico. De acordo com a composição dos produtos descrita na Tabela 1, todos os cimentos incluem como componente líquido o ácido poliacrílico. No entanto, duas diferenças significativas são perceptíveis nos componentes líquidos dos materiais estudados. A primeira está relacionada ao processo de liofilização do ácido poliacrílico e incorporação ao pó, como no caso do cimento de ionômero de vidro Vidrion R e Vitro Molar. A segunda está na adição do ácido tartárico no componente líquido tanto do Vidrion R e Vitro Molar como do Ketac Molar Easymix. Nestas condições, a viscosidade do liquido é menor para estes cimentos quando comparada ao material Maxxion R que é composta apenas pelo ácido carboxílico.22 Além disso, a presença do ácido tartárico prolonga o tempo de trabalho e atrasa o início da viscosidade na formação da massa de cimento durante a aglutinação, sem, no entanto aumentar o tempo de geleificação.30,31,32 Estas particularidades facilitaram a incorporação e aglutinação do pó ao liquido do cimento Vidrion R, Vitro Molar R e Ketac Molar Easymix, que resultou em melhor resistência à ação tanto da água como do tampão lactato com redução significativa no percentual de material solubilizado em relação ao cimento Maxxion R. Resultados similares de solubilidade foram descritos previamente para estes mesmos cimentos de ionômero de vidro restauradores26, indicando que os valores percentuais de solubilidade em meio neutro (água) estão abaixo do limite de 0,7% estabelecido pela ISO 784920, com exceção do cimento Maxxion R, de acordo os resultados deste estudo. Quando a solubilidade dos materiais foi avaliada em tampão lactato, os cimentos Vidrion R e Vitro Molar apresentaram maior percentual solubilizado em relação ao cimento Ketac Molar Easymix, confirmando assim os resultados prévios obtidos em testes por erosão ácida.26

No meio bucal dois fatores contribuem para a constância da acidez ou baixo pH. Primeiro, a localização da restauração em áreas de estagnação de alimentos17 e, segundo, a prevalência do ácido lático (pH=4,9) nas lesões de cárie ativa (88,8±8,3%).18 Assim, imerso no ambiente bucal úmido e ácido, o cimento de íonômero de vidro começa a se degradar pela ação dos ácidos orgânicos na matriz do material que provoca o deslocamento do ácido poliacrílico dos polissais de cálcio e alumínio e substituição pelo ácido lático.33 Durante o processo é formado o lactato de cálcio que é solúvel em água e a erosão química se estabelece.34 Dessa forma, a degradação química em ácido lático é considerada a maior desvantagem do cimento de ionômero de vidro e talvez a razão por apresentar, clinicamente, resultados bem sucedidos em cavidades com apenas uma face restaurada.35

Entretanto, a degradação da matriz ionomérica causada pelo ataque do ácido lático no meio bucal também resulta na formação de uma solução complexa constituída por íons de cálcio, lactato, alumínio, poliacrilatos, além de moléculas de ácido lático e ácido poliacrílico que produz o tamponamento da região restaurada.34 Com isso, o pH de 4,9 registrado em lesões de cárie ativa se altera em 30 segundos a partir do contato inicial do ácido lático com o cimento ionomérico, para valores de aproximadamente 5,7 que é suficiente para prevenir o ataque pelo ácido lático e impedir a desmineralização do dente ou progresso da lesão de cárie.18,33,34 Assim, o efeito tampão produzido durante a degradação da restauração de ionômero de vidro é também um importante mecanismo para proteção contra cáries recorrentes quando estes materiais são usados clinicamente.

Dessa forma, dois mecanismos pelo quais os cimentos de ionômero de vidro são capazes de proteger o dente do ataque por ácidos orgânicos, in vivo, podem ser postulados.34 Primeiro, por meio da liberação de fluoretos que é maior em ambiente ácido e altera o pH do meio externo.36,37 Segundo, por meio do efeito tampão.33,34 Nos dois casos, o processo está associado à solubilidade do material.

Dessa maneira, sob o ponto de vista clínico, a solubilidade do cimento de ionômero de vidro tem função importante na capacidade de tamponar o ácido lático proveniente das bactérias cariogênicas ou da degradação de polissacarídeos que, em teoria, é capaz de proteger o dente restaurado do ataque por ácidos orgânicos. Por outro lado, altos percentuais de massa solubilizada na primeira hora também comprometem o desempenho das propriedades físico-mecânicas e aumentam o risco de degradação e fraturas precoces da restauração. Nestas condições, os cimentos de ionômero de vidro dos diferentes fabricantes não podem ser considerados equivalentes, conforme os resultados deste estudo, e as hipóteses foram rejeitadas. O cimento de ionômero de vidro Ketac Molar Easymix foi o material que mostrou a menor susceptibilidade à solubilidade tanto em meio ácido como em meio neutro (água) em relação aos demais materiais avaliados. Esta condição se aproxima mais das necessidades dos cimentos de ionômero de vidro especificados para a técnica ART e favorece na ampliação das vantagens sociais com a indicação restauradora em cavidades com múltiplas faces. No entanto, seria importante conduzir trabalhos clínicos para validar os estudos de laboratório.

 

CONCLUSÃO

1. Os quatro cimentos de ionômero de vidro comerciais foram mais solúveis em meio ácido (tampão lactato) do que em água.
2. Os valores percentuais de solubilidade apresentados em meio neutro (água) pelos cimentos de ionômero de vidro ficaram abaixo do limite de 0,7% estabelecido pela ISO 7849, com exceção do cimento Maxxion R.
3. O cimento de ionômero de vidro Ketac Molar Easymix apresentou menor solubilidade tanto em meio ácido como em água quando comparados com os demais materiais.

 

APLICAÇÃO CLÍNICA

Os cimentos de ionômero de vidro comerciais (Ketac Molar Easymix, Vitro Molar e Vidrion R) apresentaram percentuais de solubilidade em meio neutro (água) abaixo do limite estabelecido pela ISO 7849 e podem ser indicados como material preventivo e restaurador de dentes decíduos e permanentes de pacientes com lesões de cárie ativa ou alto risco à cárie, além da aplicação na terapia da cárie pelo método do Tratamento Restaurador Atraumático (ART).

 

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Endereço para correspondência:
Mario Fernando de Goes - FOP/Unicamp
Av. Limeira, 901
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Recebido: jul/2015
Aceito: ago/2015