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    Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas

      ISSN 0004-5276

    Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.70 no.2 Sao Paulo abr./jun. 2016

     

    Relato de caso clínico (convidado)

     

    Reabilitação odontológica multidisciplinar em paciente pediátrico com hemofilia. Relato de caso

     

    Multidisciplinary rehabilitation of pediatric dentistry in patients with hemophilia. Case report

     

     

    Maria de Lourdes Ortiz BravoI; Alba Lilia Brambila MontoyaII; Tonatiuh Ruiz RiveraIII; Issac Murisi Pedroza UribeIV; Caleb ShitsukaV; Carmem Celina Alonso SánchezVI; Rubén Alberto Bayardo GonzálezVII

     

    I Cirurgiã-Dentista - Residente na especialização em Odontopediatria, CUALTOS Universidade de Guadalajara, México
    II Cirurgiã-Dentista - Residente na especialização em Odontopediatria, CUALTOS Universidade de Guadalajara, México
    III Mestre em Saúde Pública e Odontologia Preventiva - Professor associado de pós-graduação em Odontopediatria, CUCS e CUALTOS Universidade de Guadalajara, México
    IV Especialista em Odontopediatria - Mestrando em Ciências Odontológicas com área de concentração em Odontopediatria, Fousp, Brasil
    V Doutor - Professor associado de Odontologia da FMU
    VI Especialista em odontopediatria - Cordenadora da especialização em Odontopediatria, CUALTOS Universidade de Guadalajara, México
    VII Mestre em Odontopediatria - Professor associado de pós-graduação e graduação em Odontopediatria, CUALTOS Universidade de Guadalajara, México

    Endereço para correspondência

     

     


     

    RESUMO

    A hemofilia é uma coagulopatia congênita autossômica recessiva ligada ao cromossomo X, isso é devido à deficiência do fator VIII (hemofilia A) ou do fator IX (hemofilia B) afetando apenas os homens. Os transtornos hemorrágicos constituem um dos problemas de maior interesse a serem considerados pelo cirurgião-dentista na prática odontológica. O tratamento odontológico de pacientes com hemofilia deve ser realizado sob cuidados especiais com uma equipe multidisciplinar, nos quais os profissionais da saúde devem ter experiência médica e apoio hematológico adequados. O Objetivo deste trabalho foi relatar a reabilitação odontológica de maneira multidisciplinar de um paciente pediátrico com diagnóstico de hemofilia B grave, a qual é tratada e controlada por médicos hematologos do Hospital Geral de Zona (HGZ). O diagnóstico odontológico foi de acúmulo de placa bacteriana nas superfícies dentais por má higiene bucal, lesões de cárie e hipoplasia de esmalte. Para reabilitação bucal foram realizadas extrações de alguns elementos dentais, profilaxia, flúor terapia, orientação e motivação de higiene bucal, remoção de tecido cariado com auxílio de ultrassom, restaurações com resina composta, ionômero de vidro e restaurações indiretas cerômeros. Concluiu-se que para um adequado manejo odontológico é imprescindível o conhecimento de diversas patologias sistêmicas como a hemofilia, o atendimento multidisciplinar, além do conhecimento de técnicas de mínima intervenção em Odontopediatria para assim poder oferecer ao paciente melhores alternativas de tratamento com a mínima invasão e resultados favoráveis.

    Descritores: hemofilia B; hipoplasia do esmalte dentário; cárie dentária; reabilitação bucal.


     

    ABSTRACT

    Hemophilia is an autosomal recessive congenital blood coagulation desorder to X chromosome, this is due to deficiency of factor VIII (hemophilia A) or factor IX (hemophilia B) affects only men. Bleeding disorders are one of the issues of greatest interest to be considered by the dentist in the dental practice. Dental treatment of patients with hemophilia should be done under special care by a multidisciplinary team in which health professionals must have medical experience and adequate hematologic support. The objective of this study was to report the dental rehabilitation in a multidisciplinary team to a pediatric patient with severe haemophilia B, which is treated and controlled by medical hematologists in Zone General Hospital (HGZ). The dental diagnosis was accumulation of plaque on dental surfaces by poor oral hygiene, dental caries and enamel hypoplasia. For oral rehabilitation extractions were performed in some dental elements, prophylaxis, fluoride therapy, guidance and motivation of oral hygiene, caries removal with ultrasound assistance restorations with composite resin, glass ionomer and indirect restorations with cerômics. It was concluded that for proper dental management is essential knowledge of various systemic diseases such as hemophilia, multidisciplinary care, in addition to knowledge of minimal intervention techniques in pediatric dentistry so as to offer the best treatment alternatives patient with minimal invasion and favorable results.

    Descriptors: hemophilia B; dental enamel hypoplasia; dental carie; rehabilitation.


     

    RELEVÂNCIA CLÍNICA

    O Cirurgião-Dentista deve possuir competências básicas para lidar com pacientes que apresentam alterações com coagulopatias e conhecer os procedimentos simples para o controle da hemorragia, assim como diversas técnicas de tratamento conservador para o paciente com essas características.

     

    INTRODUÇÃO

    Os transtornos hemorrágicos constituem um dos problemas de maior interesse a serem considerados pelo cirurgião-dentista na sua prática diária.1 A hemofilia é uma doença congênita autossômica recessiva ligada ao cromossomo X2, isso é devido à deficiência do fator VIII (hemofilia A) ou do fator IX (hemofilia B) afetando apenas os homens.1 Sua freqüência é de aproximadamente de 1 a cada 10000 nascimentos e a sua escala mundial afeta cerca de 400000 indivíduos.3,4 A hemofilia é classificada em:

    • Grave (< 1% de fator) com hemorragia espontânea em articulações e músculos sem causa aparente.

    • Moderada (2-5% de fator) com sangramento menos severo, após traumas menores.

    • Leve (5-25% de fator) podendo não manifestar-se até idade adulta, secundário ao trauma ou cirurgia significativa.4

    Devido à hemofilia ser o resultado de uma deficiência ou ausência de certos fatores de coagulação, o tratamento consiste em oferecer o fator ausente mediante sua administração intravenosa. A administração de inibidores deve ser realizada a cada seis meses pacientes pediátricos e uma vez por ano em adultos em um laboratório especializado, em caso de suspeita dessa doença, deve ser solicitado a administração de urgência.5

    Os cuidados odontológicos de pacientes com hemofilia devem ser realizados com uma equipe multidisciplinar, com o apoio de profissionais da área da saúde com experiência médica visando o paciente integralmente. Os tratamentos com fator de coagulação por via intravenosa geralmente são necessários quando se requer uma técnica anestésica de bloqueio do nervo. Para a realização de técnicas anestésicas infiltrativas, não é necessário a utilização dos tratamentos com fatores de coagulação via intravenosa.6

    Para oferecer a estes pacientes um tratamento seguro e menos invasivo, o cirurgião-dentista deve utilizar técnicas conservadoras e minimamente invasivas, assim com o inicio da Odontologia Minimamente Invasiva, surgiram técnicas e materiais que possibilitam uma Odontologia conservadora, respeitando a estrutura dental e a integridade física do paciente.7,8 Em 1994 foi introduzido o sistema de pontas CVDentus (Clorovale Diamantes Ind. e Com. Ltda., São Paulo, Brasil), que podem ser adaptadas ao ultrassom.7

    O presente relato de caso teve o objetivo de apresentar alternativas de tratamento odontológico com uma equipe multidisciplinar baseado na Odontologia Minimamente Invasiva em pacientes hemofílicos.

     

    RELATO DE CASO CLÍNICO

    Paciente masculino de 10 anos de idade procurou atendimento odontológico na especialização em Odontopediatria do Centro Universitário dos Altos da Universidade de Guadalajara, relatando dor nos elementos dentários 75, 84 e 85. Durante a anamnese os responsáveis pelo menor, relataram que o mesmo apresentava hemofilia B grave, que estava sendo acompanhada pelo HGZ do Instituto Mexicano de Seguro Social. No exame clínico intraoral observou-se acúmulo de placa bacteriana, lesões de cárie nos elementos dentários 16, 26, 36, 46, 53, 54, 55, 63, 65, 75, 84, 85 e hipoplasia de esmalte generalizada (Figuras 1-3).

    Com o acompanhamento multidisciplinar, o médico hematólogo forneceu o protocolo adequado de administração do fator IX de coagulação, permitindo as exodontias dos elementos dentários 54, 63, 75, 84 e 85 (Figura 4), realizadas em uma única seção e utilizando como sal anestésico a articaína 2% com epinefrina 1:100000. Para a extração desses elementos dentários utilizou-se a técnica anestésica de bloqueio de nervo e infiltrativa, utilizando alavancas retas e fórceps para luxação e remoção dos elementos dentais. Realizou-se a hemostasia com gaze estéril não havendo complicações hemorrágicas. Na consulta posterior foi realizada orientação de higiene bucal, profilaxia, aplicação de flúor gel, restauração com resina composta pela técnica direta dos elementos 26, 53 e com ionômero de vidro (3M, Ketac N100) dos elementos 65 e 55.

    Para o tratamento dos elementos 16, 36 e 46 foram realizados isolamento absoluto com grampo atraumático (Kerr Dental), realizou-se a remoção do tecido cariado com o auxilio do ultrasom e ponta adaptada para remoção de dentina infectada, e posteriormente o protocolo restaurador com resina composta para os elementos 16 e 36 e do protocolo ionomérico do elemento 46 (Figuras 5-7). Após os procedimentos restauradores desses dentes, os mesmos foram preparados com brocas diamantadas com desgaste acima do margem gengival para realização das restaurações indiretas (Figura 8 -10). Estes elementos foram moldados com silicona de condensação e foi feito o registro de mordida com o mesmo material. Com a obtenção dos modelos de trabalho, esses foram adaptados no articulador semi-ajustavel para a confecção das restaurações indiretas com cerômeros. As peças de cerômeros foram provadas e ajustadas em boca e por ultimo foram cimentadas com cimento resinoso dual BisCem (Bisco) (Figura 11-12).

    Feito a reabilitação bucal do paciente, foi indicado o controle periódico para a manutenção da saúde bucal do paciente.

     

    DISCUSSÃO

    Os pacientes hemofílicos necessitam uma atenção odontológica e multidisciplinar especial, pois carecem de alguns fatores para ter uma coagulação adequada.1 Nesse sentido é de extrema importância que os profissionais da saúde apresentem competências para lidar com essa doença congênita. Eles devem estar envolvidos com uma visão integral do paciente para oferecer o melhor tratamento disponível.9 Desde o inicio do tratamento relatado, uma equipe multidisciplinar, incluindo médico hematólogo e Cirurgiões-Dentistas, trabalharam em conjunto respeitando o protocolo de administração do fator IX de coagulação, pois alguns tratamentos radicais (exodontias) necessitaram de anestesia de bloqueio de nervo e provocaram sangramentos sendo necessário este controle para evitar possíveis complicações hemorrágicas severas.6

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    O tratamento odontopediátrico deve ser realizado de maneira rápida evitando o comprometimento psicológico e físico da criança.10 Neste relato de caso as extrações foram realizadas na mesma consulta pela disponibilidade da administração do fator de coagulação.

    Não existe evidencia que mostre uma associação entre a hemofilia e a presença de hipoplasia de esmalte, porém existe a possibilidade de que pacientes hemofílicos apresentem esse defeito do esmalte dentário. Uma vez formado o esmalte, não há remodelação do mesmo, o que significa que as alterações ocorridas em sua formação estarão guardadas permanentemente em sua estrutura. 11 Trata-se de lesões de diferentes magnitudes, que ocasionalmente provocam aumento na sensibilidade, decorrentes principalmente das mudanças térmicas, ocasionando a procura pelo atendimento odontológico. Muitas vezes os defeitos de esmalte podem proporcionar um maior acúmulo de placa bacteriana, aumento o risco do desenvolvimento de lesões de cárie.12 Isso pode levar a necessidade de tratamentos restauradores.

    Devido à hipoplasia generalizada e a má condição de higiene bucal, o paciente foi considerado de alto risco da doença cárie apresentando múltiplas lesões de cárie dentária.

     

     

     

     

     

    Em virtude de possíveis complicações hematológicas, pacientes hemofílicos necessitam de tratamentos menos invasivos possíveis, assim a Odontologia Minimamente Invasiva surge como uma opção para o tratamento, utilizando técnicas e materiais que possibilitam uma Odontologia conservadora, respeitando a integridade física do paciente.7,8,13 Nesse sentido o tratamento foi realizado com essa filosofia, utilizando isolamento absoluto com grampos atraumáticos evitando a necessidade de aplicação anestésica. Também foi utilizado o ultrassom com ponta diamantada adaptável para a remoção do tecido cariado conservando a dentina afetada. Com a continuação restauradora dos elementos dentais.

    Existem dois diferentes tipos de restaurações: direta que se pode colocar o material diretamente na cavidade em uma única consulta e a restauração indireta são peças confeccionadas em laboratório e posteriormente cimentadas nos elementos dentais, o que pode gerar mais de uma consulta, mas necessários em casos de grande destruição da estrutura dentária.9 Baseado nessas informações, optou-se por pela utilização da técnica restauradora indireto os dentes com maior destruição coronária (16, 36 e 46) e outros com a técnica direta.

     

    CONCLUSÃO

    Para um adequado manejo odontológico é imprescindível o conhecimento das diversas patologias sistêmicas, como a hemofilia, pois diversas ocasiões os procedimentos odontológicos podem levar ao sangramento. É necessário o tratamento multidisciplinar para se obter um controle geral da saúde do paciente. A filosofia de mínima intervenção em Odontologia proporciona uma condição menos invasiva para pacientes hemofílicos.

     

    APLICAÇÃO CLÍNICA

    Este relato de caso proporciona informações básicas sobre o atendimento odontológico multidisciplinar do paciente hemofílico, desde o controle da hemostasia nos procedimentos cirúrgicos até os tratamentos restauradores minimamente invasivos.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Benito M, Benito M, Morón A, Bernardoni C, Pereira S, Bracho M, Rivera N. Manejo odontológico de pacientes con enfermedades hemorrágicas y terapia anticoagulante. Revisión bibliográfica. Acta Odontológica Venezolana, Vol. 42, No. 2. Caracas, 2004         [ Links ]

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    3. Federación Mundial de Hemofilia. Directrices para el tratamiento de la Hemofilia 2005.

    4. Cameron A, Widmer R. Handbook of Pediatric Dentistry. 4ta. Edición. Elsevier, 2013.

    5. Alemandi S, Sol-Cruz M, Forzani L, Ramos-Vernieri MX. Manual para el manejo odontológico de pacientes con Hemofilia y Von Willebrand. Gobierno de la Provincia de Salta, Ministerio de Salúd Pública. Argentina, 2014.

    6. Brewer A. Tratamiento odontológico de pacientes con inhibidores del factor VIII o factor IX. Federación Mundial de Hemofilia, 2008.

    7. Pontons JC, Fernandes L, Mondelli J. Preparaciones conservadoras para el tratamiento de lesiones cariosas Clase III.RAOA / VOL. 98 / Nº 3 / 239-243, JUNIO / JULIO 2010

    8. Galbiatti F, Botelho E, Loiola RC, Flores V. Tratamientos menos invasivos; utilización de los sistemas de aire abrasivos y puntas CVD. Acta Odontológica Venezolana, Volumen 44, No. 2, 2006.

    9. Al Zamel G, Micheletti RG, Nasta SD, Palakshappa J, Stoopler ET. The importance of multidisciplinary healthcare for paraneoplastic pemphigus. Spec Care Dentist. 2015 May-Jun;35(3):143-7

    10. Klinberg G. Dental anxiety and behaviour management problems in paediatric dentistry-- a review of background factors and diagnostics. Eur Arch Paediatr Dent. 2008 Feb;9 Suppl 1:11-5.

    11. De Fátima R, Camillo K, Mendes L, Mondini J, Ortiz CE, Alves AB. Hipoplasia de esmalte em dentes decíduos. RFO UPF 2006; 11(2):73-76R

    12. Lai PY, Seow WK, Tudehope DI, Rogers Y. Enamel hypoplasia and dental caries in very-low birthweight children: a case-controlled, longitudinal study. Pediatr Dent. 1997 Jan-Feb;19(1):42-9.

    13. Freitas M, Santos J, Fuks A, Bezerra A, Azevedo T. Minimal intervention dentistry procedures: a ten year retrospective study. J Clin Pediatr Dent. 2014 Fall;39(1):64-7.

    14. Muñoz FI, Florio MR, Velázquez CM. Flexural resistance of esthetic materials used by indirect restoration. A comparative in vitro study. International Journal of Odontoestomatology 7 (2): 315-318, 2013.

     

     

    Endereço para correspondência:
    Caleb Shitsuka
    Rua Amaral Gama, 349
    Santana - São Paulo/SP
    02018-001
    Brasil
    e-mail: caleb@usp.br

     

     

    Recebido: mar/2016
    Aceito: abr/2016