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Revista Brasileira de Odontologia

versão On-line ISSN 1984-3747versão impressa ISSN 0034-7272

Rev. Bras. Odontol. vol.70 no.1 Rio de Janeiro Jan./Jun. 2013

 

ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLE

 

Perfil da endocardite infecciosa em hospital de referência entre 2003 e 2009

 

Infective endocarditis profile in a reference Hospital from 2003 to 2009

 

 

Flávia Christiane de Azevedo MachadoI;Maria Ângela Fernandes FerreiraII

I Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
II Professora Doutora do Departamento de Odontologia da UFRN

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

Este estudo objetivou estimar a frequência da endocardite infecciosa e construir o perfil dos casos admitidos num hospital de referência para doenças infecciosas no Rio Grande do Norte entre 2003 e 2009. Assim, dados sobre idade, sexo, tempo de internação, desfecho do caso e presença/ausência de válvula cardíaca protética foram extraídos dos registros de internamentos. Estes foram descritos por frequências e medidas de tendência central. Após análise, houve em média 15,7 casos/ano acometendo homens (79,1%), com idade média de 34 anos e não portadores de prótese valvar. O tempo médio de internação foi de 30 dias e a alta médica foi o desfecho principal dos casos. Portanto, podemos inferir que a endocardite, apesar de pouco frequente, apresenta considerável morbidade.

Palavras-chave: endocardite; perfil de saúde; estudos transversais.


 

ABSTRACT

This study aimed to estimate the frequency of Infective Endocarditis and build the profile of the cases admitted in a reference Hospital for infectious diseases in Rio Grande do Norte from 2003 to 2009. Therefore, data about age, sex, length of stay, outcome of the case and presence / absence of prosthetic heart valve were extracted from the admissions records. These data were described by frequencies and measures of central tendency. After analysis, there was an average of 15.7 cases / year, affecting men (79.1%), with a mean age of 34 years and no users of prosthetic heart valve. The mean length of stay was 30 days and the discharge was the main outcome of the cases. Thus, we can infer that endocarditis, although uncommon, has considerable morbidity.

Keywords: endocarditis; health profile; cross-sectional studies.


 

 

Introdução

A endocardite infecciosa (EI) é uma doença grave, que resulta usualmente da invasão de micro-organismos (bactérias ou fungos) em tecido endocárdico ou material protético do coração 11. Tal doença pode ser descrita sob duas formas: a aguda e a subaguda. A forma aguda surge com toxicidade acentuada e evolui ao longo de dias até várias semanas para a destruição valvular e infecção metastática 13. Já a subaguda evolui ao longo de semanas a meses, com toxicidade somente modesta, raramente causando infecção metastática 13.

Os principais fatores de risco da endocardite infecciosa são as lesões do endocárdio, provocadas por doenças congênitas ou adquiridas, onde ocorre a deposição de plaquetas e de fibrina, colonização bacteriana e posterior disseminação da infecção por via sanguínea (bacteremia) 1. Essa bacteremia pode advir da entrada de bactérias no sistema circulatório como consequência de cirurgia oral ou procedimentos odontológicos que envolvam sangramento 15. Entretanto, essa bacteremia raramente persiste por mais de quinze minutos 1. Deste modo, a manutenção de uma boa higiene oral pode ser uma medida preventiva mais importante do que a quimioprofilaxia focalizada 19.

Quanto ao prognóstico, apesar de sofisticados meios diagnósticos e terapêuticos, a EI continua com alta mortalidade. Assim, mesmo com o uso de novos antibióticos, a sua evolução continua muitas vezes desfavorável, levando o paciente ao óbito ou a lesões incapacitantes 7.

Por ser uma doença de graves consequências cuja causa pode estar associada a procedimentos odontológicos, é essencial que os cirurgiões-dentistas estejam informados ao seu respeito. Contudo, esses profissionais apresentam um conhecimento restrito sobre a endocardite conforme os resultados de VIEIRA & CASTILHO 20. Segundo esses autores, alunos do último ano de Odontologia sabiam como prevenir a EI, porém poucos sabiam sobre sua etiologia e quais as circunstâncias de maior risco para o seu desenvolvimento 20.

Tal situação é preocupante, pois o acesso à assistência odontológica é uma realidade crescente à população brasileira, em vista das estratégias dos governos para reduzir as iniquidades em saúde bucal no país 4,6,14. Além disso, os altos custos de internação hospitalar para reabilitação da doença tem estimulado o tratamento das formas mais brandas da EI em nível ambulatorial ou domiciliar, tornando a EI uma realidade presente em todos os níveis de atenção à saúde 18.

Diante disto, o intuito deste estudo foi estimar a frequência dos casos endocardite diagnosticados no Hospital Giselda Trigueiro (Natal/RN), bem como construir o perfil epidemiológico destes casos. A construção desse perfil é um primeiro passo para realização de um estudo de risco que busque associações causais para a endocardite. Contudo, a morbidade e mortalidade induzidas pela endocardite por si justificam a importância de realização desse estudo.

 

Material e Método

Estudo seccional com dados secundários extraídos dos registros de internamentos por endocardite infecciosa do Hospital Giselda Trigueiro (HGT) no período de 2003 a 2009. Este hospital é referência para tratamento de doenças infecciosas no Estado do Rio Grande Norte (RN). O RN é o 16º estado mais populoso do Brasil e apresenta 167 municípios distribuídos em quatro mesorregiões 10.

Os registros de internamentos continham informações relativas ao diagnóstico de endocardite (presença da doença e se ocorreu em prótese valvar), perfil (sexo, idade e mesorregião de origem) dos indivíduos acometidos, tempo de internação, desfecho do caso (alta médica, óbito ou transferência de Hospital) e a existência de outros agravos concomitantes a EI. Essa última informação foi coletada para verificar se esses agravos estavam dentre os mais comumente associados à endocardite.

Todas as informações foram transcritas e, a seguir, organizadas em um banco de dados. A análise dos dados se deu pela descrição de suas frequências absolutas e relativas, além da apresentação da média e desvio-padrão das variáveis quantitativas. O protocolo da pesquisa foi aprovado pela diretoria do HGT que autorizou a consecução da mesma.

 

 

 

Resultados

No período analisado (2003 a 2009), houve 110 casos de endocardite infecciosa entre os 8090 indivíduos que foram atendidos no HGT. Portanto, houve uma frequência de 1,3% de casos de endocardite e uma média de 15,7 casos/ ano (figura 1). Os indivíduos tinham em média 34,98 anos de idade (± 17,1) e ficaram internados por 30,69 dias (± 20,22) em média. A caracterização desses indivíduos quanto ao sexo e mesorregião de origem está presente na tabela 1.

 

 

 

O principal desfecho dos casos foi a alta médica (77,1%), seguida de óbito (17,4%) e transferência hospitalar (5,5%). A EI de válvulas naturais preponderou entre os casos (96,4%).

Em relação à existência de agravos associados ao quadro de endocardite, 40% dos indivíduos os apresentavam. Tais agravos foram bastante diversificados, mas houve predominância da insuficiência renal (n = 8), insuficiência cardíaca (n = 5), febre de origem indeterminada (n = 5), síndrome da imunodeficiência adquirida (n = 4) e pneumonia (n = 4).

 

Discussão

A intenção do estudo foi fazer inferências sobre a morbidade da EI e sobre quais indivíduos seriam mais vulneráveis à doença para estimular a adoção de medidas preventivas por parte dos profissionais de saúde como da população em geral. Contudo, discorreremos rapidamente sobre a possível relação existente entre presença de doenças bucais ou submissão a intervenções odontológicas invasivas e a ocorrência de EI.

A relação entre a EI e a área odontológica é fundamentada na possibilidade de procedimentos odontológicos invasivos desencadearem uma bacteremia 13. A incidência e a magnitude das bacteremias de origem bucal são diretamente proporcionais ao grau de inflamação ou infecção 13. Assim, uma higiene bucal adequada é uma medida preventiva em relação à endocardite 3.

No entanto, instituições como o Royal College of Physicians of London e a British Cardiac Society consideram que 4% ou menos dos casos de endocardite foram comprovadamente relacionados com a bacteremia induzida por procedimentos dentários 1. Alguns estudos investigaram esta associação, encontrando baixa frequência 17 ou ausência significativa de associação 16.

Talvez, por isso, poucos médicos coletem informações sobre a história odontológica de seus pacientes como demonstra o estudo de KAHN et al. 12 onde apenas 2,7% dos médicos possuem tal hábito. No entanto, este mesmo estudo revelou que 57,3% dos 110 médicos entrevistados acreditavam haver relação entre doenças orais e coronarianas 12.

Assim, percebemos que seria pertinente a presença de informações sobre doenças bucais no prontuário de pacientes com doenças orovalvares ou informações sobre submissão a intervenção odontológica previamente ao desencadeamento da doença. Contudo, a presença dessas informações não é comum. Inicialmente, este estudo pretendia verificar se a submissão à intervenção odontológica seria fator de risco para a EI. Mas, a análise de alguns prontuários revelou ausência das informações para tal fim, bem como de outras informações (telefone) que viabilizassem a busca ativa dos casos para responder ao questionamento inicial do estudo.

Portanto, apresentamos resultados referentes à descrição dos casos de EI quanto à idade, sexo, mesorregião de origem, presença/ausência de válvula protética e quais os agravos associados mais frequentes.

Foi evidenciada a maior ocorrência de casos de EI em homens com idade média de 34 anos tal qual em estudo anterior 17. Contudo, a literatura destaca uma tendência de aumento de casos entre mulheres associada às malformações cardíacas e ao uso de drogas injetáveis 9. Quanto à idade, as evidências científicas mostram uma relação da EI com idades mais tardias 9,5, sobretudo, com a evolução da terapia antibiótica 9. Entretanto, por tratar-se de estudo com dados secundários não houve possibilidade de investigar fatores possivelmente associados à predominância no sexo masculino ou ao desenvolvimento mais precoce da doença como o uso de drogas injetáveis.

No tocante à frequência, a EI apresenta baixa frequência de ordem 1 a 5 casos/100.000 pessoas/ano 5. Neste estudo, a frequência foi de 15,7 casos/ano, perfazendo 110 casos no período de 2003 a 2009. No entanto, a EI apresenta considerável morbidade, mesmo com os sofisticados meios diagnósticos e terapêuticos, a ocorrência de lesões incapacitantes não é incomum 7. No presente estudo, tal morbidade foi inferida pelo expressivo tempo médio de internação para tratamento.

Em relação à presença de condições predisponentes, estudos epidemiológicos sugerem que endocardite de válvula protética constitui 10 a 30% de todos os casos de endocardite infecciosa em países desenvolvidos 8. Entre os casos de endocardite de valva nativa, cerca de 36 a 75% dos pacientes têm como condições predisponentes: doença cardíaca reumática, doença cardíaca degenerativa, hipertrofia septal assimétrica ou dependência de drogas intravenosas. No corrente estudo, tanto a insuficiência cardíaca como renal foram mais frequentes entre os indivíduos internados com endocardite. Entre esses indivíduos, somente quatro (3,63%) apresentavam valva protética.

Esses achados retratam, de fato, a EI como uma doença de perfil variável e dinâmico onde a doença reumática não mais representa a causa mais comum para a mesma 2. Cada vez mais, a endocardite é diagnosticada em pacientes com alterações degenerativas das valvas cardíacas esquerdas, pacientes em hemodiálise, diabéticos ou usuários de drogas 2.

Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito ao acesso ao tratamento da EI. Os resultados demonstraram que mais da metade dos indivíduos provinham da mesorregião Leste Potiguar e, mais especificamente, do município de Natal (capital do Rio Grande do Norte), onde o Hospital Giselda Trigueiro está localizado. Esse dado pode indicar a dificuldade de acesso ao tratamento e também uma subnotificação dos casos de endocardite. Entretanto, por se tratar de um estudo de dados secundários captados no registro de admissão do HGT essa questão do acesso não pode ser aprofundada.

 

Conclusão

A endocardite infecciosa é uma doença de baixa frequência, mas com considerável morbidade conforme os resultados apresentados neste estudo. Tal morbidade inferida pelo longo período de internação acarreta altos custos para o tratamento desta doença cujo perfil vem se modificando ao longo dos anos.

Cada vez mais, a endocardite é diagnosticada em pacientes com alterações degenerativas das valvas cardíacas esquerdas, pacientes em hemodiálise, diabéticos ou usuários de drogas. Quanto à idade, há uma prevalência em indivíduos idosos.

No entanto, neste estudo, os adultos não portadores de prótese valvar constituíram o grupo mais vulnerável. Isto, provavelmente, se deu por questões não investigadas como uso de drogas injetáveis.

Desta forma, percebemos a necessidade de se investigar os hábitos de vida e história médica dos pacientes pelos profissionais de saúde, incluindo os cirurgiões-dentistas, antes de intervenções para viabilizar melhores formas de intervenção e prevenção.

 

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Endereço para correspondência:
Flávia Christiane de Azevedo Machado
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Recebido: 06/11/2012
Aceito: 07/03/2013