SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.71 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Odontologia

versão On-line ISSN 1984-3747versão impressa ISSN 0034-7272

Rev. Bras. Odontol. vol.71 no.1 Rio de Janeiro Jan./Jun. 2014

 

Matéria de capa

 

Dentistas para lá de especiais

 

 

Paciente diferenciado requer atendimento diferenciado. Com esta filosofia, os profissionais da área de Odontologia voltados ao atendimento de pacientes portadores de necessidades especiais conseguem prestar um atendimento qualificado e humanizado para uma parte da população que cresce a cada ano. A Organização Mundial da Saúde (2011) estima que mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo apresenta alguma deficiência e que mais de 50% não recebem assistência odontológica.

Cíntia de Assis

 

Paciente com necessidades especiais (PNE) é aquele indivíduo que apresenta qualquer tipo de condição que o faça necessitar de atenção diferenciada por um período de sua vida ou indefinidamente. Essas pessoas necessitam de cuidados médicos e odontológicos direcionados para sua condição, por isso os profissionais da área de saúde devem estar preparados para oferecer um tratamento específico e de qualidade.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a prevalência das deficiências no mundo seja de uma pessoa a cada dez e afirma que mais de 2/3 não recebem assistência odontológica. A maioria desses indivíduos está em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, sendo que 2% dessas pessoas recebem atendimento adequado voltado para suas necessidades. No Brasil, segundo fontes do IBGE (2002), existem 24,5 milhões de pessoas, ou seja, 14,5% da população brasileira apresentam algum tipo de deficiência. Como alguns exemplos de PNE, podemos citar portadores de: síndromes, paralisia cerebral, autismo, distúrbios de comunicação, doença de Alzheimer, HIV, distúrbios cardiovasculares, pacientes oncológicos e transplantados de órgãos e tecidos, entre outros. A especialidade Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais é recente, foi reconhecida em 2001, por isso muitos cirurgiões-dentistas não obtiveram conhecimento suficiente para atender estes pacientes, gerando algumas dificuldades no seu manejo, inviabilizando o tratamento odontológico.

Segundo a Política Nacional da Pessoa com Deficiência, instrumento do Ministério da Saúde que orienta os diversos setores da saúde no atendimento à pessoa com deficiência, a atenção integral à saúde das pessoas deficientes inclui a saúde bucal e a assistência odontológica integral. Este atendimento deverá ser em regime ambulatorial especial ou em regime hospitalar, dependendo de cada caso específico.

A Associação Brasileira de Odontologia para Pacientes Especiais (Abope) nasceu em 1979 e tem o objetivo de reunir profissionais ligados, direta ou indiretamente, à Odontologia voltada para pessoas portadoras de necessidades especiais, para troca de experiências e conhecimentos nesta área da Saúde. De acordo com João F. Santos Junior, presidente da Abope, a entidade atua também dentro do terceiro setor de forma incisiva em diversas frentes de trabalho, proporcionando melhores condições de vida a pessoas com necessidades especiais. "No setor público, lutamos para que a especialidade fosse incluída no Programa Brasil Sorridente e para que o atendimento de pacientes com necessidades especiais fosse compreendido nos Centros de Especialidades Odontológicas", fala o doutor pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Outra ação de grande relevância da Abope foi a publicação da Súmula Normativa número 11, de 20 agosto de 2007, junto a Agência de Saúde Suplementar, onde a solicitação das internações hospitalares e dos exames laboratoriais/complementares, requisitados pelo CD, devidamente registrado nos respectivos conselhos de classe, devem ser cobertos pelas operadoras de saúde, sendo vedado negar autorização para realização de procedimento, exclusivamente, em razão do profissional solicitante não pertencer à rede própria, credenciada ou referenciada da operadora.

Atendimento especializado:

O atendimento ambulatorial ao PNE pode ser encontrado por todo o Brasil, porém ainda é necessário um maior investimento governamental, principalmente, na área de alta complexidade na assistência hospitalar, onde o atendimento é escasso e pontual, não conseguindo suprir a demanda que é grande.

A disciplina Clínica de Pacientes Especiais da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) está inserida na grade curricular obrigatória desde 2006 e atualmente o curso faz parte da estrutura da Escola Superior de Ciências da Saúde (Rua 04, número 5, Conjunto Celetramazon, Bairro Adrainopólis, Manaus, Amazonas, telefones: (92) 3236- 6728 e 3236-5623), com a seguinte equipe de professoras: Keuly Sousa Soares, Eliane de Oliveira Aranha Ribeiro, Alessandra Valle Salino e Gimol Benchimol Resende Prestes. "Nossos alunos atendem, anualmente, cerca de 250 pacientes, sob a supervisão das docentes, sendo a maioria do gênero masculino (55%) e adultos (38%), realizando tratamentos odontológicos preventivos (profilaxias e aplicações tópicas de flúor) e curativos (restaurações, exodontias, endodontias, raspagens), observando sempre os comprometimentos e limitações de cada paciente, inerentes a sua doença de base. Os atendimentos são realizados em nível ambulatorial e hospitalar, de acordo com a necessidade de cada paciente", explica a professora Eliane Ribeiro.

Dados da equipe da UEA comprovam que, em se tratando de diagnóstico das patologias de base, o maior percentual é de pacientes com distúrbios neurológicos (37,2%), seguido de distúrbios congênitos (16,6%), múltiplas deficiências (12,6%), distúrbios psicossociais (12,1%), condições sistêmicas especiais (11,3%), sem diagnóstico fechado (4,2%), distúrbios sensoriais e áudio-comunicação (3,2%) e deficiência física (2,8%).

De acordo com Dra. Eliane Ribeiro, a filosofia da clínica de PNE baseia-se no respeito ao cidadão. "Nosso diferencial consiste no real engajamento, dedicação e comprometimento com a causa, buscando o pronto restabelecimento da saúde bucal e, consequentemente, da saúde geral dos nossos pacientes especiais. A nossa disciplina busca oferecer um atendimento de excelência, em concordância com as mais modernas técnicas apresentadas pela literatura, pois acreditamos que estando dentro de uma academia temos a obrigação de formar futuros profissionais com conhecimentos técnicos e, sobretudo, com consciência, sensibilidade e respeito ao próximo", defende a professora.

Na faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB/USP), o ambulatório que atende ao grupo de PNEs é o serviço de pesquisa em pacientes oncológicos e transplantados de órgãos e tecidos, que já atendeu cerca 180 pacientes desde a inauguração em março de 2013, onde os pós-graduandos têm a oportunidade de fazer um preparo teórico e prático na aprendizagem da abordagem odontológica a este grupo de pacientes. Segundo o professor doutor Paulo Sérgio da Silva Santos, os atendimentos a PNE variam entre 9 a 93 anos e não há maior prevalência do atendimento relacionado ao gênero dos pacientes.

"Consultas clínicas, cirurgias orais, tratamento periodontal, remoção de cáries, tratamentos endodônticos, reabilitação oral com próteses removíveis e laserterapia – método mais frequente para prevenção e tratamento da mucosite oral radio e/ou quimioinduzida – são os procedimentos mais realizados no ambulatório. Atualmente, nosso atendimento é essencialmente ambulatorial, mas temos previsão de que em 2015 se estenderá ao Hospital Estadual de Bauru, para os pacientes internados com limitação de locomoção para o atendimento ambulatorial", esclarece Dr. Paulo Santos.

A capacitação da equipe também influencia no atendimento direto ao paciente. "O CD precisa de um preparo teórico-prático para conhecer as doenças de base, os tratamentos médicos para estas doenças, os dados relacionados a exames complementares laboratoriais e de imagem, além de quais cuidados especiais diante das condições sistêmicas encontradas nos pacientes. Este conhecimento exige um tempo de aprendizagem para que o profissional da Odontologia se sinta seguro para o manejo dos pacientes", orienta o professor doutor Santos. "A área de Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais da Clínica Multidisciplinar da FOB/USP é uma clínica essencialmente de pesquisa e, como reciprocidade, realiza a parte assistencialista a este grupo de pacientes. O atendimento é diferenciado inicialmente porque todos os pacientes estão sob pesquisa, com o objetivo de melhoria da qualidade de vida dos pacientes oncológicos e transplantados, e por ser realizado por pós-graduandos de mestrado e doutorado sob supervisão de docentes da universidade. A estrutura de suporte multiprofissional envolve a Odontologia, Reabilitação Oral, Fonoaudiologia, Nutrição e Fisioterapia, além da proximidade da equipe multiprofissional com as equipes médicas de oncologia e transplante", acrescenta Dr. Santos.

A clínica da FBO/USP conta com três docentes de Odontologia (professores doutores Paulo Sérgio da Silva Santos, Cássia Maria Fischer Rubira e Simone Soares), um docente de Fonoaudiologia (professora doutora Giédre Berretin-Felix), dois profissionais técnicos em saúde e um técnico administrativo, dois cirurgiões-dentistas para suporte às pesquisas, nove pós-graduandos de Odontologia, três pós-graduandos de Fonoaudiologia (duas fonoaudiólogas e uma nutricionista) e uma fisioterapeuta. A FOB/USP situa-se na Alameda Octávio Pinheiro Brisolla, 9-75, Vila Universitária, Bauru, São Paulo, telefone: (14) 3235-8000.

O Centro Odontológico para Pacientes Especiais da Associação Brasileira de Odontologia – Seção Rio de Janeiro (Cope/ABO-RJ) funciona desde 2009 (Rua Barão de Sertório, 75, 3º andar – Rio Comprido/RJ, telefone: (21) 2504-0002) e já atendeu mais de 500 pacientes de todo o estado do Rio de Janeiro. A equipe é composta por quatro cirurgiões-dentistas (Bruna L. Sayed Picciani, Bruna Michalski dos Santos, Vanessa de Carla B. dos Santos, Geraldo Oliveira Silva-Junior), uma aluna da especialização (Thays Teixeira), uma ASB (Maria Teixeira), um estagiário de Psicologia (Paulo Azevedo) e um engenheiro de computação (Thiago Picciani), que têm o objetivo de prestar atendimento qualificado e humanizado aos pacientes.

Seguindo esta diretriz, a equipe do Cope/ABO-RJ além de possuir conhecimentos técnicos e científicos, considera que o profissional tenha um envolvimento emocional, apresentando boa vontade, paciência e espírito humanitário. "Tratar de um paciente com deficiência é lidar com uma família especial, já que ela é muito afetada com o nascimento de uma criança com deficiência", comenta Bruna Picciani, doutora em Patologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). "Infelizmente, hoje em dia, este grupo de pacientes tão extensos ainda são desassistidos e discriminados, estando excluídos da sociedade e apresentando precárias condições de saúde oral. Por isso, é de vital importância promover a inclusão social destes pacientes, proporcionando um tratamento igualitário e a socialização destes com o meio em que vivem. A partir desse contexto, nós do Cope/ABO-RJ proporcionamos aos nossos pacientes momentos onde os mesmos se sintam capazes de aproveitar, por exemplo, uma festa do dia das crianças", afirma Dra. Bruna Michalski, mestre em Patologia pela UFF.

No Cope/ABO-RJ, são atendidos pacientes entre 1 e 94 anos, sendo a faixa etária de 11 a 20 anos a mais prevalente, apresentando um percentual de 22%. Os diagnósticos médicos mais encontrados foram paralisia cerebral (19%), deficiência mental (14%); sendo o grupo de deficiência física (28%), o mais comum. Em relação ao tratamento odontológico, foram realizados um percentual de 24% de restaurações, 18% de aplicações tópicas de flúor, 16% de profilaxias, 15% de radiografias periapicais, 13% de raspagens, 11% de exodontias, 1,5% de endodontias, 0,6% de coroas totais, 0,5% de próteses removíveis e 0,4% de gengivectomias. Há uma média de 6,8 procedimentos por paciente. Em apenas 13% dos casos, foi necessária a utilização de métodos sedativos para realização do tratamento dentário; sendo a anestesia geral feita em 5% dos pacientes.

Segundo Dra. Picciani, o atendimento a PNE é altamente exigente, requer muita paciência, habilidade e carinho, pois são indivíduos carentes, excluídos de uma sociedade preconceituosa e necessitados de um atendimento especializado. "Partindo dessa premissa, acredito que o sucesso do tratamento odontológico em PNE depende não apenas do conhecimento da conduta normal, mas também da natureza das deficiências físicas, intelectuais, emocionais e sociais. O êxito está relacionado, não só com as realizações de excelentes restaurações e atos cirúrgicos, mas, também, com o mostrar ao paciente sua nova imagem, isto é, uma imagem de saúde bucal em adequadas condições. Além disso, é fundamental prevenir o surgimento de complicações orais, pois estes constituem em uma importante causa de morbidade, podendo interferir nos protocolos de tratamento, agravando o quadro da doença", acrescenta Dra. Picciani. "A finalização do tratamento odontológico, tanto preventivo quanto clínico, consiste em ter a certeza de que o CD conseguiu reabilitar o paciente especial para tentar integrá-lo à sociedade que tanto o discrimina, proporcionando assim, uma perspectiva mais satisfatória para estes pacientes", finaliza Picciani.

Transtorno do espectro do autismo:

Vencedora do Prêmio Orgulho autista Brasil, a professora Adriana Gledys Zink diz que o atendimento odontológico para pacientes com necessidades especiais deve ser individualizado. "A necessidade de um cardiopata pode não ser a mesma de um renal crônico, um paciente em Aids ou um autista, por exemplo. A especialidade é muito ampla e temos conhecimento técnico- científico para reconhecer essa necessidade. Existem especialistas que se dedicam apenas para atender pacientes sistêmicos, outros optam pelos neurológicos, alguns preferem se dedicar para a geriatria e as comorbidades que possam acompanhá-la. Costumo dizer que temos subespecialidades dentro da especialidade e nesse contexto estou no grupo que se dedica ao estudo do paciente com transtorno do espectro do autismo (TEA)", conta a doutoranda em Odontopediatria pela Universidade Cruzeiro do Sul (SP), que trabalha com Marcelo Diniz de Pinho, especialista em Cirurgia Bucomaxilofacial, desde 1994, na Zinkpinho Odontologia Especializada, onde juntos desenvolvem um atendimento diferenciado ao paciente no espectro do autismo.

De acordo com o professor Elcio Magdalena Giovani, coordenador da especialização para Pacientes com Necessidades Especiais na Universidade Paulista (Unip), o Centro de Estudos e Atendimento a Pacientes Especiais (CEAPE) prepara os alunos desde o último ano da graduação, passando pela iniciação científica, especialização em PNE até o curso de pós-graduação, produzindo conhecimento científico, além de quebrar os medos, preconceitos e estigmas frente ao atendimento a esses pacientes. "O CEAPE atende os pacientes com doenças infectocontagiosas (HIV/Aids), sindrômicos, sistêmicos e demais patologias promovendo saúde e melhorias na qualidade de vida das pessoas com necessidades especiais", acrescenta. Além do Dr. Giovani, os professores Rafael Celestino de Souza, Rosemary Martins, Ruth Andiamerlin e Adriana Zink, esta como professora convidada, fazem parte da equipe.

Segundo Adriana Zink, a comunicação paciente-profissional precisa melhorar muito quando se fala de pacientes no espectro do autismo e para isso adaptou o Picture Exchange Communication System® (PECS) para a Odontologia. "PECS é um sistema muito usado para pessoas com TEA e adaptei esse sistema durante meu mestrado. Nele, as figuras antecipam as fases do tratamento odontológico e diminuem a ansiedade típica do paciente no espectro do autismo frente a uma mudança na rotina. Pode ser usado por terapeutas, técnicos em higiene bucal e pelo próprio CD como forma de melhorar a comunicação paciente-profissional. Também, pode ser usado na Unidade Básica de Saúde (UBS) e no Centro de Especialidade Odontológica (CEO) para minimizar o número de intervenções feitas com sedação ou anestesia geral. Necessita de um treinamento técnico, mas temos ótimo retorno. Hoje, no doutorado, estou incluindo essas figuras em um software de comunicação, que é mais uma ajuda na Tecnologia Assistiva, pois o uso em tablets e ipads facilitará muito a rotina nos consultórios. A distribuição será gratutita", ressalta Dr. Zink.

"O espectro do autismo é muito amplo, não existe uma pessoa igual a outra, por isso temos que individualizar o atendimento sempre. O preparo do profissional tem que ser contínuo, usar novas estratégias e aceitar que muitas vezes erramos em planejamentos de abordagem tendo que recomeçar. Existem algumas comorbidades que podem acompanhar o quadro de autismo e podemos encontrar pessoas que se comunicam muito bem e outras são totalmente isoladas, pessoas que entendem comandos e outras que não, independentes e totalmente dependentes de cuidadores, alguns com inteligência maior que a média da população e outros com deficiência intelectual associada, é um mundo a ser descoberto. E quem se dedicar a ele, precisa estar preparado para surpresas", conclui Zink.