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Revista Brasileira de Odontologia

versão On-line ISSN 1984-3747versão impressa ISSN 0034-7272

Rev. Bras. Odontol. vol.74 no.1 Rio de Janeiro Jan./Mar. 2017

 

Artigo de Revisão de Literatura/Odontopediatria

 

"Cárie é transmissível?" Tipo de informação sobre transmissão da cárie em crianças encontrada através da ferramenta de busca Google®

 

"Is caries transmissible?" Information on caries transmission in children, found via Google® Search Engine

 

Laís Rueda CruzI; Izabel Monteiro D'HyppolitoII; Fernanda Barja-FidalgoII; Branca Heloisa de OliveiraII

 

I Pós-graduação em Odontopediatria, Faculdade de Odontologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
II Departamento de Odontologia Preventiva e Comunitária, Faculdade de Odontologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivo: conhecer o tipo de informação encontrada na internet sobre a transmissão de cárie dentária em crianças. Material e Métodos: a coleta de dados foi realizada através de uma busca eletrônica utilizando-se os termos "cárie pega" e "transmissão de cárie" na ferramenta de busca do Google®. Um pesquisador recuperou, leu e realizou a extração dos dados dos 30 primeiros registros de resultados de cada busca, utilizando uma tabela no ExcelTM. Esses dados foram analisados por três pesquisadores, a partir de critérios pré-definidos, quanto à presença de informações que contribuíssem para responder a dúvidas sobre a transmissão da cárie em crianças. Resultados: dos 60 registros, nove foram encontrados em duplicata, sendo analisados uma única vez. Foram excluídos os resultados de sítios indisponíveis (n = 1) e os relacionados a artigos científicos (n = 4), imagens (n = 1), vídeos (n = 1) e sítios de perguntas e respostas (n = 1). Portanto, 43 registros foram recuperados, lidos e analisados. Vinte e cinco sítios (58,1%) afirmavam que cárie é uma doença transmissível. Desses, 20% (n = 5) afirmavam que a doença podia ser transmitida da mãe para a criança e 20% (n = 5) afirmavam que outros adultos também poderiam transmitir a cárie para a criança. Dentre os mecanismos de transmissão, o mais citado foi o beijo (n = 19). Nenhum dos sítios mencionou que a cárie poderia ser classificada como uma disbiose. Conclusão: esses estudos reforçam a necessidade de construção de canais digitais de popularização da ciência que divulguem informações relevantes para a promoção da saúde bucal de crianças com base nas evidências científicas atuais.

Palavras-chave: Cárie dentária; Internet; Publicações de divulgação científica.


ABSTRACT

Objective: this cross-sectional observational study aimed to assess the type of information found on the Internet about the transmission of dental caries in children. Material and Methods: data was collected through an electronic search by entering the keywords "cáriepega" and "transmissão de cárie" in the Google® search box. A researcher recovered, read, and extracted the data of the first 30 records obtained from each search to an MS Excel™ spreadsheet. Data were analyzed by three researchers, using predefined criteria, in order to record the information that would explain caries transmission in children. Results: from 60 records, nine were redundant; hence, were analyzed once. Sites related to scientific articles (n = 4), images (n = 1), videos (n = 1), and sites with questions and answers (n = 1) were deleted. Moreover, one of the records was permanently unavailable (n = 1). Therefore, 43 records were retrieved, read, and analyzed. Twenty-five sites (58.1%) revealed that dental caries is a communicable disease; of these, 20% (n = 5) showed that the disease could be transmitted from mother to the child and 20% (n = 5) showed that other adults could also transmit the disease to the child. Transmission of this disease mostly occurs through a kiss (n = 19). Although caries is considered as a dysbiosis, this information does not seem to reach the population. Conclusion: this study reinforces the need for the construction of dental information dissemination channels based on evidence contributing to the popularization of science.

Keywords: Dental caries; Internet; Publications for science diffusion.


 

Introdução

A internet é uma importante ferramenta em que pessoas de diferentes idades recorrem em busca das mais variadas informações. Estima-se que em 2016 quase 3 bilhões de pessoas, cerca de 40,4% da população mundial, tenham acesso à internet.1 Atualmente, a internet é utilizada por mais de 100 milhões de brasileiros, cerca de 66% da população.2 Apesar de uma parcela significativa da população brasileira ainda possuir grande dificuldade de acesso à internet, a inclusão digital das populações de baixa renda tem crescido notadamente.3

Aproximadamente 4,5% das buscas realizadas na internet são relacionadas à saúde.4 Mecanismos de busca como o Google® são frequentemente utilizados pelo público para pesquisas sobre questões relacionadas à saúde5,6 e buscas realizadas por médicos podem, inclusive, contribuir para o diagnóstico correto de condições raras.7 O volume de informações sobre saúde na rede é enorme e o acesso a essas informações proporcionam informação àqueles que sentem necessidade de compreender, tratar ou diagnosticar um problema de saúde ou melhorar o seu estilo de vida. Contudo, uma quantidade substancial de informação sobre saúde disponível na internet tem qualidade duvidosa. Esforços têm sido feitos para desenvolver indicadores para identificar sítios com informação de qualidade.8

A cárie dentária é uma doença que afeta a maioria da população mundial e, com muita frequência, atinge crianças9,10 comprometendo a sua qualidade de vida.11 Atualmente, a cárie é considerada uma doença complexa, polimicrobiana. A lesão de cárie é observada apenas quando há um desequilíbrio no meio favorecendo a acidificação do biofilme dentário em decorrência do metabolismo dos carboidratos da dieta por micro-organismos residentes. Logo, não é razoável descrever a cárie como uma doença transmissível porque os seres humanos não têm a opção de possuírem uma cavidade bucal livre de micro-organismos. Além disso, apesar de mais de três décadas de estudos focados nos estreptococos mutans, já se sabe que não existe um micro-organismo ou grupo específico responsável pelo desenvolvimento da doença.12 Desse modo, a presença de micro-organismos é necessária, mas não é suficiente para o desenvolvimento das lesões de cárie.13

Esse estudo objetiva conhecer o tipo de informação disponibilizada para leigos na internet a respeito da transmissão vertical e horizontal de cárie dentária em crianças.

 

Material e Métodos

Foi realizado um estudo observacional, transversal, em maio de 2016. A coleta de dados foi realizada através de uma busca eletrônica simples, sem qualquer tipo de restrição, utilizando-se a ferramenta de busca do Google® (www.google.com.br). Na caixa de busca foram digitadas, em momentos diferentes, as expressões "cárie pega" e "transmissão de cárie". Um pesquisador recuperou e leu os conteúdos dos 30 registros disponíveis nas três páginas iniciais de resultados para cada termo pesquisado. Esse critério de inclusão foi aplicado para simular a busca típica feita por uma pessoa leiga.14 Os registros que se referiam a documentos científicos, imagens, vídeos e sítios de perguntas e respostas foram excluídos. Resultados encontrados em duplicata foram analisados uma única vez. Foi verificado se os sítios apresentavam a cárie dentária como uma doença transmissível e quais informações sobre transmissibilidade eram fornecidas.

O mesmo pesquisador realizou a extração dos dados para uma tabela elaborada no programa MS ExcelTM (Microsoft, USA) a partir de critérios pré-definidos (Quadro 1). Os dados foram analisados por três pesquisadores quanto à presença de informações que contribuíssem para que leigos pudessem, consultando a internet, responder a dúvidas que tivessem sobre transmissibilidade da cárie em crianças (Quadro 1).

 

 

 

As análises estatísticas descritivas foram feitas no programa Stata® 10.0 (StataCorp, USA) e os gráficos foram elaborados no programa MS ExcelTM (Microsoft, USA).

 

Resultados

Foram encontrados 153.500 resultados no total, sendo 55.100 para o termo "cárie pega" e 98.400 para "transmissão de cárie". Foram recuperados 60 registros, 30 para cada um dos termos pesquisados. Dos 60 registros, nove foram encontrados em duplicata, sendo analisados uma única vez. Foram excluídos os sítios relacionados a artigos científicos (n = 4), imagens (n = 1), vídeos (n = 1) e sítios de perguntas e respostas (n = 1). Além destes, um dos registros recuperados não estava mais disponível (n = 1). Sendo assim, um total de 43 registros foi recuperado, lido e analisado. Vinte e cinco sítios (58,1%) afirmavam que cárie é uma doença transmissível (Gráfico 1) desses, 20% (n = 5) afirmavam que a doença podia ser transmitida da mãe para a criança (Gráfico 2) e 20% (n = 5) afirmavam que outros adultos também poderiam transmitir a cárie para a criança (Gráfico 3). Dentre os mecanismos de transmissão sugeridos, o mais citado foi o beijo (n = 19), seguido de compartilhamento de talheres (n = 12) e alimentos (n = 11; Gráfico 4).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Discussão

Os resultados desse estudo evidenciam que se uma pessoa realizar uma pesquisa na internet, através do Google®, sobre a transmissão de cárie, encontrará, na maioria das fontes dirigidas a leigos, a informação de que a cárie pode ser transmitida a crianças e que essa transmissão pode ser realizada através de contatos com a mãe e outras pessoas.

A cárie é uma doença resultante de um desequilíbrio do processo desmineralização e remineralização não sendo possível a sua transmissão, apesar dos micro-organismos envolvidos serem transmitidos por saliva. Logo, para se pensar em estratégias de prevenção e controle é importante entender que transmissão de cárie é diferente de transmissão de micro-organismos. Este conceito não se mostra claro nas informações da maioria dos sítios consultados, visto que apenas 6,9% dos sítios afirmavam que a cárie não pode ser transmitida.

Entender a etiologia de uma doença é essencial para que sejam traçadas estratégias eficazes para a sua prevenção e controle. No caso da cárie dentária, é necessário desmistificar o papel dos micro-organismos, entendendo que a presença de micro-organismos, apesar de necessária, não é suficiente para o desenvolvimento das lesões de cárie. Uma vez que não existe um micro-organismo específico relacionado ao desenvolvimento da cárie,13 e estes fazem parte da microbiota oral indígena é praticamente impossível que se evite a colonização da cavidade oral. Ou seja, os micro-organismos estão presentes também na cavidade oral de pessoas sem cárie.

Há estratégias que são comprovadamente efetivas na redução da incidência de cárie em crianças, como o aconselhamento à adoção precoce de práticas alimentares favoráveis à saúde15 e a escovação diária, a partir da irrupção do primeiro dente, com dentifrício fluoretado na concentração de 1.000 ppm.16,17 Entretanto, não há evidências que métodos que diminuiriam a transmissibilidade de micro-organismos orais entre cuidadores e crianças, sejam efetivos no controle da cárie em crianças.18

A internet pode ser um instrumento poderoso para divulgação dessas recomendações. Contudo, através da internet, também podem ser veiculadas recomendações alarmistas e controversas no que diz respeito à proteção da criança contra a cárie, sobretudo relacionados à questão de transmissibilidade. Em 2012, uma matéria intitulada: "Carinho de mãe pode causar cárie no bebê", as mães eram aconselhadas a não compartilhar alimentos e talheres com a criança para evitar a transmissão de cárie.19 Em blogs na internet dirigidos a mães também são encontrados conteúdos semelhantes. Em parte, esse tipo informação resulta da falta de consenso entre os próprios especialistas sobre o papel da microbiota materna no desenvolvimento de cárie em seus filhos.20,21 Entretanto, não existe evidência robusta de que a redução da infecção bucal materna por micro-organismos acidogênicos e acidúricos possa ter um efeito benéfico sobre o desenvolvimento de cárie na dentição decídua.22

Destaca-se a importância do modo com que as informações são disponibilizadas, que muitas vezes tende a ser impactante. Alguns sítios mencionavam que a cárie era transmitida do mesmo modo que resfriados ou mesmo que era possível adquirir imunidade contra a cárie, o que pode levar algumas pessoas a pensarem que seria viável o desenvolvimento de vacinas ou mesmo uso de antibióticos para combater a cárie, o que não está de acordo com os conceitos atuais da etiologia da doença.13 Dentre as 43 fontes consultadas, 19 mencionavam transmissibilidade pelo beijo e aconselhavam as pessoas a não beijarem crianças no rosto e etc., contudo, adotando tais práticas as pessoas estariam sendo privadas de demonstrações de afeto e carinho, essenciais para um bom desenvolvimento do indivíduo.23

Acreditamos que a forma que essa informação é apresentada pode acabar levando o indivíduo a adotar práticas radicais que propõem medidas preventivas que não são eficazes.

 

Conclusão

Nossos resultados questionam a credibilidade das informações disponibilizadas na internet em relação à cárie dentária. Embora, atualmente, a cárie seja considerada uma doença disbiótica, essa informação parece não chegar à população. Esse estudo reforça a necessidade de construção de canais de divulgação de informações odontológicas baseadas em evidências em linguagem simplificada contribuindo para a popularização da ciência.

 

Referências

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23. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990. Brasília, DF, 1990.

 

 

Endereço para correspondência:
Branca Heloisa de Oliveira
e-mail: odoped.uerj@gmail.com

 

 

Recebido: 14/12/2016
Aceito: 08/03/2017