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RPG. Revista de Pós-Graduação

versão impressa ISSN 0104-5695

RPG, Rev. pós-grad. vol.17 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2010

 

ARTIGOS CIENTÍFICOS

 

Dispositivos jurídicos e argumentos mais utilizados em processos civis: análise de casuística em Odontologia

 

Legal devices and arguments mostly used in civil lawsuits: casuistry analysis in Dentistry

 

 

RODOLFO FRANCISCO HALTENHOFF MELANI I; ROGÉRIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA I; SILVIA VIRGINIA TEDESCHI-OLIVEIRA II; REGINA JUHÁS II

I Professor do Departamento de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP
II Mestre em Odontologia Social pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Diante do aumento de ações de indenizações materiais e morais em que o cirurgião-dentista (CD) responde a processos judiciais em âmbito civil pelo tratamento realizado, buscou-se investigar quais os dispositivos jurídicos e os argumentos levantados pelos pacientes que respaldaram esses pedidos. Foi realizado um estudo retrospectivo com amostragem de conveniência do casuístico pessoal dos autores de 41 peças processuais. O Código Civil foi o dispositivo jurídico mais citado (68,85%), em seus artigos 927, 949, 1538 e 1545; seguido pela referência às Jurisprudências (46,34% dos processos), Código de Defesa do Consumidor (36,58%); Código de Processo Civil (34,14%) e Constituição Federal (26,82%), sendo que mais de um dispositivo foi encontrado na mesma ação. Já os pacientes argumentaram e fundamentaram sua insatisfação com o tratamento principalmente no relatório do cirurgião-dentista que o atendeu após o tratamento questionado (46,34%) seguido pela atribuição de falha no diagnóstico, planejamento e/ou acompanhamento de seu tratamento (43,90%), entre outros. A defesa do CD contra estas alegações e a consequente comprovação do seu dever de cuidado para com o paciente somente será efetiva diante da correta documentação do atendimento.

Descritores: Responsabilidade civil. Processo jurídico. Avaliação de danos.


ABSTRACT

Upon the increasing number of civil trials involving dentists (CD) and the care they deliver, this paper aimed to investigate the legal provisions and the arguments presented by patients to support these complaints. We conducted a retrospective study with convenience sample consisting of the personal authors' casuistic of 41 ongoing processes. The Civil Code was the most cited legal provisions (68.85%), in its articles 927, 949, 1538 and 1545, followed by references to case law (46.34% of cases), Code of Consumer Protection (36.58%), Code of Civil Procedure (34.14%) and the Federal Constitution (26.82%), and more than one device was found in the same action. The patients argued and substantiated their dissatisfaction with the treatment mainly in their report about the professional who assisted them after the treatment (46.34%) followed by the allocation of fault diagnosis, planning and/or monitoring of their treatment (43.90%), among others. The defense of the dentists against these allegations and the subsequent demonstration of their responsibility in regard to the patient's assistance will be effective before the correct documentation of care.

Descriptors: Damage liability. Indemnity. Damage assessment.


 

 

Introdução

O crescente número de processos civis contra o cirurgião-dentista e as mais diversas alegações a respeito do tratamento e suas consequências torna-se, pouco a pouco, rotina para os profissionais que atuam na área de Odontologia Legal.

As demandas cíveis têm sido mais frequentes do que os processos criminais, pois os pacientes costumam ter mais interesse em receber a indenização do que em ver o profissional condenado a uma pena de cerceamento da liberdade.

Um levantamento feito na Internet aponta que os processos de responsabilidade civil dirigidos ao cirurgião-dentista movidos por pacientes aumentaram significativamente, partindo de 1 processo no ano de 1974 e atingindo, no ano de 2006, o número de 122 processos5.

Certamente, o Código de Defesa do Consumidor (CDC)1 trouxe uma nova ordem nas relações entre o profissional cirurgião-dentista (prestador de serviço) e o paciente, que agora tem maior consciência dos seus direitos como consumidor.

O profissional liberal, ainda que tenha um tratamento diferenciado frente a este Código, respondendo apenas mediante a verificação de sua culpa, está sujeito ao dever de indenizar os danos causados pelos serviços objeto de sua atividade econômica. Pode, inclusive, ser estabelecido pelo juízo o recurso de inversão do ônus da prova, ou seja, circunstância em que caberá ao cirurgião-dentista provar que não violou o dever de cuidado.

Nesse panorama, o cirurgião-dentista deve documentar-se suficientemente, de modo a constituir na clínica diária o prontuário do paciente, composto de todas as informações atinentes ao tratamento prestado, demonstrando que, clínica e tecnicamente, agiu com toda diligência possível no caso em questão.

 

Objetivos

Identificar em quais dispositivos jurídicos mais frequentemente baseiam-se os advogados de pacientes que movem processos contra o cirurgião-dentista (CD) e tecer algumas considerações relativas aos argumentos levantados pelos pacientes para respaldar seu pedido de indenização.

 

Material e Métodos

Analisaram-se 41 peças iniciais de processos civis movidos contra cirurgiões-dentistas entre os anos de 1991 a 2007, resultando em um estudo retrospectivo com amostragem de conveniência do casuístico pessoal dos autores.

Os Dispositivos Jurídicos em que se baseiam os advogados para respaldar os pedidos de indenização foram objetivamente identificados nas peças iniciais dos processos analisados, e os argumentos citados nas peças estudadas foram analisados através do relato pelos pacientes do fato motivador da lide, onde, ainda que este se revista de uma certa subjetividade, é possível detectar os pontos de descontentamento.

 

Resultados

Do total da amostra estudada de 41 processos, 97,50% tratam de Ações de Indenização, muitas vezes também nomeadas como Ação de Ressarcimento ou Ação de Dano. Destes, em 72,50% das lides verificadas (29 processos), os advogados requereram diretamente a responsabilidade profissional através de Ação de Indenização (Tabela 1) apurada mediante verificação de culpa, com consequente ressarcimento de danos.

Nos 40 processos de Ações de Indenização estudados, em 11 processos (27,50%), os advogados requereram inicialmente a Produção Antecipada de Provas, processo cautelar dirigido ao Juiz de Direito pedindo deferimento para, nos casos aqui analisados, a realização de perícia; e, na etapa seguinte, o requerente ingressará com a Ação principal, no caso uma Ação de Indenização. O objetivo de uma Medida Cautelar de Produção Antecipada de Provas é promover o quanto antes uma vistoria para determinar a exata extensão do dano e possibilitar a liberação daquilo que foi danificado para sua pronta restauração, pois existe o fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação, segundo o Código do Processo Civil2. Aceito o pedido, é nomeado o perito, que tem como encargo a realização do exame clínico e elaboração do laudo oficial, que constitui a prova técnica. No meio bucal, as provas existentes da realização de determinado tratamento odontológico podem, muitas vezes, ser drasticamente modificadas pela ação do tempo e/ou cuidados conservadores. Na etapa seguinte a um processo de antecipação de provas, o requerente ingressa com uma Ação de Indenização.

A figura do dano material esteve presente nestes processos, e se refere à relação entre o prejuízo e o dano, observando-se o quantum percebido pelo CD requerido pelo tratamento prestado, acrescido de eventuais despesas atinentes e do valor estimado para a re-execução dos trabalhos odontológicos. Geralmente, ao dano material acresce-se o Dano Moral, tecnicamente chamado de dano imaterial, uma vez que não produz prejuízo no patrimônio do ofendido, e cujo valor será arbitrado pelo juiz.

Apenas um processo analisado (2,44%) tratava de Desconstituição de Contrato (Tabela 1), processo este com entrada através do Juizado Especial Cível (que estabelece o limite indenizatório de 40 salários mínimos), onde o autor requer a desconstituição do contrato de serviços entre as partes, desobrigando-se os pagamentos acertados anteriormente.

Quanto às especialidades envolvidas nos processos civis na presente amostragem, a maior incidência é verificada nos tratamentos de próteses (fixas, removíveis, combinadas com implantes, tratamentos endodôntico ou periodontais), constituindo 48,78% da amostra (20 processos). É necessário considerar que a prótese constitui a parte visível do tratamento para o paciente que realizou um implante; tratamento endodôntico ou periodontal, podendo esses dados refletirem a insatisfação com o processo como um todo.

 

 

 

Em segundo lugar, encontramos a Ortodontia (19,51%, 8 processos); seguida da Cirurgia (9,75%, 4 processos), Endodontia (7,32%, 3 processos) e por último a Periodontia e a Radiologia (2,44%, 1 processo cada), conforme demonstra a Tabela 2.

Considerou-se como especialidade motivo da lide aquela cujos fatos narrados na inicial apontavam o descontentamento com os resultados obtidos para aquele tratamento em especial, pois, em alguns casos, mais de uma especialidade esteve envolvida.

Item de especial interesse no trabalho de análise dos processos foi a identificação dos dispositivos jurídicos utilizados para respaldar o pedido na inicial do processo de acusação do cirurgião-dentista, assim como os argumentos citados recorrentemente pelos advogados. Na Tabela 3, foram relacionados os dispositivos jurídicos mais encontrados nos processos analisados.

Análise dos dispositivos jurídicos mais utilizados

Os dispositivos jurídicos são utilizados pelos advogados para fundamentar a lide juridicamente. Esses e outros artigos do Código Civil4 podem ser citados juntos em um mesmo processo.

O Art. 5º da Constituição Federal3 foi citado em 26,82% (11) dos processos analisados, assegurando o direito à indenização nas lides pesquisadas:

Cap. I – Art. 5º: "Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza [...]"Inciso V: "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem";

Inciso X: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

 

 

 

 

 

Dentre os processos em que o Código Civil4 foi citado (27 processos – 65,85%), o Art. 159 do Código Civil (1916) fundamentou a peça inicial em 66 ,66 % dos casos (18 processos): –Art. 159 (1916): "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano".

É correspondente aos atuais Art. 186 (2002): "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". Corresponde ao Art. 927 no Código Civil de 2002: "Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".

Esse artigo estabelece a chamada responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, sendo o ordenamento jurídico em que se baseia a responsabilidade subjetiva ou clássica, à medida que impõe a todos aqueles que, por ação ou omissão, dolosa ou culposa, violarem direito ou causarem prejuízo a outrem, a obrigação de reparar o dano decorrente de seu comportamento.

Desta forma, aquele que, através de sua atividade profissional, expõe a risco de dano terceiros fica obrigado a repará-lo caso venha a ocorrer efetivamente, mesmo que seu comportamento seja isento de culpa, bastando que reflita a violação de um dever de cuidado10.

O Art. 1545 (1916) fundamenta 48,14% (13 processos) dos casos em que o Código Civil foi citado, e é explícito, fazendo questão de deixar claro quanto à responsabilidade das profissões sanitárias, únicas visadas neste artigo.

Art. 1545 (1916): "Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que a imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir ou ferimento". Correspondente ao atual Art. 951 (2002), que sem citar as profissões nominalmente diz: "O disposto nos arts. 948,949 e 950 aplicam-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilita-lo para o trabalho".

Assim, a falta cometida no tratamento odontológico poderá ter como consequência, além da impossibilidade da cobrança de honorários, da obrigação de restituí-los e da impossibilidade de exigir do cliente o cumprimento do contrato por ventura firmado ao iniciar o tratamento, o pagamento de uma indenização pelo dano causado (morte, inabilitação de servir ou ferimento e perdas e danos)6.

Outro artigo do Código Civil4 de interesse, e que aparece em 18,51% (5 processos) das peças iniciais onde foi citado, é o Art. 1538 (1916), que traz as diretrizes para orientar a liquidação dos danos suportados pela vítima quando ofendida sua integridade física.

Art. 1538 (1916): "No caso de ferimento ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de lhe pagar a importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente". Correspondente ao atual Art. 949 (2002): "No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido".

Consideram-se casos de lesões corporais de natureza transitória, ou seja, ainda que ofendida a integridade física da vítima, é possível sua total recuperação, restabelecendo-se a situação anterior, restringindo-se ao dano eminentemente material.

Inicia-se a liquidação do dano com a apuração das despesas de tratamento, incluindo todos os gastos médicos e hospitalares até a total recuperação. Segue-se com a aferição dos chamados lucros cessantes, isto é, o que a vítima deixou de ganhar em razão do período de recuperação até a efetiva alta médica. Nestes casos, pode ser computado o tempo dispendido para o retratamento, com vários retornos ao consultório, em geral de outro profissional, para acertar o erro cometido pelo requerido.

Diferentes artigos do Código Civil4 sem significância estatística respaldaram eventuais pedidos de cumulação de danos materiais e morais e as obrigações por atos ilícitos em 48,14% dos casos (13 processos) em que foi citado.

Já artigos do Código de Processo Civil2 aparecem em 34,14% (14 processos) das peças pesquisadas e quase exclusivamente fundamentando os pedidos de medida cautelar de produção antecipada de provas, que tratam da regulamentação dos procedimentos cautelares.

O artigo de maior recorrência, com 28,57% (4 processos), é o Art. 849: "Havendo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação, é admissível o exame pericial."

Nesses casos, há o pedido de instalação de uma Perícia Judicial, que pode ser solicitada por uma das partes interessadas, devidamente justificada, ou pelo entendimento do Juízo, em caso de o processo não apresentar elementos suficientes de convencimento que levem ao convencimento do magistrado. O objetivo da perícia em odontologia é trazer provas materiais ou científicas obtidas através de exame clínico do paciente, vistoria de aparelhos (protéticos e ortodônticos), avaliação de prontuário e radiografias, e levantamento do método de tratamento empregado.

O Código de Defesa do Consumidor – lei nº 8.078 de 11/09/19901 – respalda o pedido de indenização em 36 ,58% dos casos (15 processos), sendo o cirurgião-dentista observado como um prestador de serviço de natureza odontológica, enquadrado no conceito de fornecedor descrito pela lei. Em 7 processos (46,66 %), o artigo destacado foi o Art. 14, que contempla no §4º dispositivo específico sobre a responsabilidade do profissional liberal e dispõe:

"Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.§ 4º A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa."

À parte da discussão sobre a responsabilidade profissional do cirurgião-dentista estar caracterizada por obrigação de meio ou de resultado, que depende da análise do caso considerando-se suas particularidades, caso fique provado que a contratação objetivada foi tão somente de meios, aplica-se a regra do art. 14, § 4º do CDC, em que o profissional liberal apenas responde se for provada sua culpa; ou seja, que ele desempenhou um serviço defeituoso, decorrente de um comportamento negligente, imprudente ou imperito9. Porém, nas ações de indenização contra o cirurgião-dentista, quer se trate de obrigação de meio ou de resultado (objetiva ou subjetiva), é sempre possível haver a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, conforme autoriza o art. 6º, VIII, do Código8. Particularmente, faz-se necessária a qualidade dos registros obtidos pelo CD, através dos quais demonstrará a adequação dos procedimentos propostos e realizados.

Em seguida, o Art. 6º, VIII, é citado em 40% dos processos em cuja peça inicial foi citado o CDC (6 processos), solicitando a inversão do ônus da prova:

"Art 6º São direitos básicos do consumidorVIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências."

Assim, caberá ao profissional provar que agiu de acordo com a sua obrigação e dever de cuidado para com seu paciente e que possui provas; o prontuário corretamente preenchido, por exemplo.

A citação de Jurisprudências nas ações de indenização movidas contra o cirurgião-dentista, que são interpretações reiteradas que os tribunais dão à lei, nos casos concretos submetidos ao seu julgamento, aparece em 46,34% dos casos analisados (19 processos). Este fato pode representar uma apreciação tendenciosa da profissão, já que em 26,31% dos casos em que foram mencionadas jurisprudências (5 processos), a apreciação citada é de que o trabalho do cirurgião-dentista é obrigação de resultado. Logo, as peças iniciais produzidas pelos advogados dos pacientes mostram que alguns juizes têm entendido que o cirurgião-dentista se obriga a alcançar determinado fim sem o qual não terá cumprido sua obrigação.

 

Discussão

A partir da análise dos argumentos mais utilizados pelos pacientes nas peças iniciais (Tabela 4), foi possível destacar pontualmente as seguintes observações:

Relatório de CD que atendeu o paciente após o requerido

O item que fundamenta 46,34% (19 pacientes) dos processos analisados é o relato escrito de outro CD (geralmente o profissional que assiste o paciente na época do processo), que atesta, de forma direta ou indireta, a ligação entre a situação verificada e o tratamento anterior.

É necessária a conscientização da classe odontológica no sentido de acautelar-se, em caso de solicitação ou elaboração de Relatórios, Pareceres ou Declarações. Frequentemente, estas informações são utilizadas para tentar demonstrar o nexo causal, ou seja, a relação entre o dano ora verificado e o tratamento anteriormente realizado. A emissão de uma avaliação de natureza técnica pode ser considerada pelo profissional, desde que ele tenha a possibilidade de acesso ao histórico clínico do caso, ponderando eventuais intercorrências e acidentes, evitando, assim, o risco de emitir um documento sobre o trabalho de um colega sem referências técnicas seguras. Antes de considerar o trabalho realizado por outro cirurgião-dentista como inadequado sob o ponto de vista técnico, deve-se compreender as circunstâncias em que o mesmo foi realizado.

 

 

 

Erro de diagnóstico/planejamento/acompanhamento do CD

No total, 43,90% (18 pacientes) associam o resultado ruim à falha no diagnóstico, planejamento e/ou acompanhamento de seu tratamento, muitas vezes atribuídos à vaidade do profissional, sendo citado nas peças iniciais que, nos retornos sucessivos ao consultório do CD, foram atendidos de maneira inadequada.

Baseados nos relatos contidos nas peças iniciais, os autores consideraram a divisão e conceito dos erros profissionais preconizada por Lutz6 para caracterizar a insatisfação do paciente. Desta classificação, os erros de diagnóstico podem ocorrer: A) por ação – exame clínico feito com técnica defeituosa, com descaso ou imprudência; interpretação errônea de dados semiológicos, embora corretamente obtidos; ou B) por omissão de um recurso indispensável, por exemplo, a radiografia.

Nesta abordagem, considerou-se erro de planejamento aqueles ocorridos por: A) ação – escolha de tratamento impróprio e emprego de medicação contraindicada, perigosa ou trocada; ou B) por omissão – falta de procedimentos preparatórios para a intervenção proposta (ex. falta de extração de raízes antes da instalação de uma prótese total, falta de tratamento endodôntico, etc). Como erro de acompanhamento, entendeu-se a omissão do CD, especialmente no esclarecimento quanto aos resultados esperados do tratamento proposto, a falta de orientações indispensáveis em relação à higiene bucal, cuidados com as peças protéticas, cuidados no pós-operatório e, em relação aos casos que envolvem ortodontia, a falta de controle radiográfico preventivo para possíveis reabsorções ósseas indesejáveis.

Quebra de confiança

Em 29,26% dos processos analisados (12), o paciente entendeu como erro passível de Indenização o fato de, diante de sua insatisfação ou dúvidas em relação ao resultado do tratamento, terem recebido um atendimento indesejável, algumas vezes considerado antiético o cirurgião-dentista.

Observamos, então, que a falta de comunicação e de esclarecimento, ou seja, problemas de relacionamento, pode facilmente levar à quebra de confiança no profissional que o está atendendo. Com as modificações ocorridas no mercado de trabalho para os cirurgiões-dentistas, as relações estabelecidas entre profissionais e pacientes nem sempre são baseadas na escolha por confiança.

Atualmente, observa-se com frequência que o paciente procura o profissional não porque nele confia, ou porque obteve informações de terceiros de que ele é profissionalmente conceituado. No mais das vezes, ele é indicado em decorrência de convênios colocados à sua disposição.

Como argumentos para a perda de confiança, foram relatados nos processos analisados o descontentamento por reiterados retratamentos, perda ou falhas em tratamentos efetuados recentemente, consultas desmarcadas com frequência, longo tempo dispendido com o tratamento e o "comportamento" de seu dentista diante de problemas apresentados durante o tratamento

Queixa anterior realizada no CRO

Ao todo, 19,51% dos pacientes que moveram ações no Poder Judiciário (8 pacientes) procuraram antes a Comissão de Ética do Conselho Regional de Odontologia. Este item demonstra a possibilidade de as Comissões de Ética dos Conselhos Regionais funcionarem como câmaras de conciliação, evitando a abertura de processos no Poder Judiciário.

Quebra de contrato

No total, 12,19% dos pacientes (5 processos) alegaram que o tratamento inicialmente proposto não foi concluído, e, por este motivo, recorreram a outro profissional.

A alegação de quebra de contrato também envolve a qualidade e durabilidade dos serviços prestados, os materiais utilizados e o tempo dispendido no tratamento (especialmente nos casos envolvendo ortodontia), e há a necessidade de o profissional caracterizar o abandono através de documentos registrados que demonstrem a orientação previamente informada sobre as consequências da interrupção e o aviso, por escrito, da pertinência do retorno imediato para a continuidade da etapa prevista e previamente acordada com o paciente.

Publicidade enganosa (placa, cartão, uso de título indevido)

A publicidade veiculada por um profissional de saúde, independentemente do meio de comunicação utilizado, pode ser confundida com um certo "espírito de mercantilismo" e, algumas vezes, não ser bem compreendida pelo público-alvo. Em 9,75% dos processos analisados (4 pacientes), a afirmação de haverem procurado aquele profissional em especial, em decorrência da propaganda por eles veiculada que mostrava determinado resultado, conduz a algumas reflexões.

São afirmações de Marques7 que, historicamente, a publicidade foi considerada mera prática comercial; porém, com as mudanças introduzidas pelo Código de Defesa do Consumidor, ela passa a ter efeitos jurídicos de uma oferta, passando a integrar o futuro contrato. É preciso que o CD preste atenção às informações que divulga e às promessas que faz por meio da publicidade dos seus serviços, pois, no sistema do Código de Defesa do Consumidor, é criado um vínculo que se tornará uma obrigação pré-contratual.

 

Conclusões

Os dispositivos jurídicos identificados na análise de 41 peças iniciais de processo civis movidos contra cirurgiões-dentistas são relativos à responsabilidade civil (da obrigação de indenizar) e do inadimplemento das obrigações, amparados pelo Código Civil, além dos direitos básicos do consumidor e sua caracterização no Código de Defesa do Consumidor. Estes são dispositivos jurídicos utilizados frequentemente pelos advogados para fundamentar a acusação, e sua utilização depende da prática individual do profissional do direito.

Os argumentos apresentados pelos pacientes através de seus advogados, ainda que possam apresentar certo subjetivismo (a maneira como o paciente percebeu o tratamento realizado), têm sido acatados pelos juízes. A defesa do cirurgião-dentista e a consequente comprovação do cumprimento do dever de cuidado para com o paciente será mais efetiva quanto mais detalhados forem os registros clínicos, materializados através da apresentação do prontuário odontológico completo.

 

Referências

1. Brasil. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11/9/1990. 17ª ed. São Paulo: Atlas; 2003.         [ Links ]

2. Brasil. Código de Processo Civil. Lei 5.869 de 11/1/1973. 11 ed. São Paulo: Saraiva; 2005.

3 . Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União nº 191-A, de 5 de outubro de 1988.

4. Brasil. Código Civil: mini/obra de autoria da Editora Saraiva com colaboração de Pinto ALT, Windt MCVS, Céspedes L. 9ª ed. São Paulo: Saraiva (Legislação Brasileira); 2003.

5. De Paula FJ. Levantamento das Jurisprudências de Processos de Responsabilidade Civil contra o Cirurgião-Dentista nos Tribunais do Brasil por meio da Internet. [Tese]. São Paulo: Faculdade de Odontologia da USP; 2007.

6 . Lutz GA. Erros e acidentes em Odontologia. Rio de Janeiro, 1938.

7. Marques CL. Contratos no Código de defesa do consumidor. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais; 1995.

8. Nery Júnior N. Os princípios gerais do código brasileiro de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais; 1992. v. 3.

9. Oliveira MLL. Responsabilidade Civil odontológica. Belo Horizonte: Del Rey; 2000.

10. Sampaio RMC. Direito Civil: responsabilidade civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas; 2002.

 

 

Endereço para correspondência:
Rodolfo Francisco Haltenhoff Melani
Departamento de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo
Avenida Professor Lineu Prestes, 2.227 – Cidade Universitária
CEP 05508-900 – São Paulo/SP
e-mail:
rfmelani@usp.br

Recebido em: 07/01/10
Aceito em: 26/02/10