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RPG. Revista de Pós-Graduação

Print version ISSN 0104-5695

RPG, Rev. pós-grad. vol.19 n.1 São Paulo Jan./Mar. 2012

 

Artigo Original / Original Article

 

Universidade: gestão, história e reflexão

 

University: management, history, and reflection

 

 

ADRIANA ONESTII; NEIDE PENA COTOII; REINALDO BRITO E DIASIII

I Doutora em Ciências Odontológicas pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP
II Professora Doutora da Disciplina de Prótese Buco Maxilofacial do Departamento de Cirurgia, Prótese e Traumatologia Maxilofaciais da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP
III Professor Titular do Departamento de Cirurgia, Prótese e Traumatologia Maxilofaciais da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A constituição brasileira define autonomia das universidades como sendo o poder de gozar de autonomia didático-científica, administrativa e de gestões financeira e patrimonial, obedecendo ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Porém, nos últimos anos, reformas estruturais, ditas neoliberais, implantadas pelo governo nas universidades vêm diminuindo gradativamente a autonomia universitária. Este trabalho objetivou estudar o assunto em questão como uma maneira de compreender os limites da liberdade de gestão das universidades. Concluiu-se que a autonomia universitária encontra obstáculos diante do autoritarismo estatal, os quais devem ser minimizados pela gestão dos próprios institutos de ensino superior.

Descritores: Educação em Odontologia. História. Organização e administração.


ABSTRACT

The Brazilian constitution defines autonomy of universities as the power to enjoy didactic-scientific, administrative, and financial management autonomy, conforming with the principle of indivisibility between education, research, and extension. However, in the last few years, through neo-liberal politics, reforms and structural adjustments were established by the State. The aim of this paper was to study such subject as a way to understand the limits of the university's management freedom. The university's autonomy finds obstacles facing State's autoritarism, which should be minimized by the management of the Institutes.

Descriptors: Education, dental. History. Organization and administration.


 

 

INTRODUÇÃO

Nos primórdios da colonização, o Brasil teve a administração de suas cidades feita a distância. Deste modo, os tributos pagos dirigiam-se para o outro lado do oceano, tendo pouco ou nenhum retorno às cidades geradoras dos recursos financeiros, devido ao regime centralizador utilizado por Portugal.

Após a chegada da Casa Real, o Brasil passou a não ser mais um território colonial, adquirindo, desta forma, sua soberania perante outros países, e recorrendo ao instituto federalista para manter todos os entes estatais coligados, apesar do ambiente hostil gerado por insurreições de escravos, projetos de governo conflitantes, rebeliões e custo excessivo para a manutenção do estado português no Rio de Janeiro. Após a Independência, o destino dos recursos financeiros, advindos do pagamento de tributos, continuou a não operar em benefício dos contribuintes, o que resultou na formação de uma rede de favores e negociações entre particulares, administradores municipais e o governo federalista, o que, via de regra, reduziu a liberdade e a autonomia dos próprios administradores2.

Durante as ditaduras do século 20, a autonomia restrita dos estados e municípios foi ainda mais reprimida. Neste mesmo cenário, a universidade encontrou- se sem nenhuma liberdade pública e subrogada pela repressão.

Com o fim da Ditadura Militar, a constituinte tenta proteger a autonomia da universidade por meio da criação de um artigo de lei específico para tal fim. Ocorre, porém, que, com o passar dos anos, diversas medidas provisórias acabam modificando a ideia original da constituição, delimitando a autonomia universitária.

Com relação à autonomia das universidades, o constituinte a definiu como:

Art. 207. As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
§1º É facultado às universidades admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros na forma da lei.
§2º O disposto neste artigo aplica-se às instituições de pesquisas científica e tecnológica.

Portanto, pode-se perfeitamente entender que a universidade é regida, no Brasil, pela autonomia delimitada pelo princípio federativo, ou seja, pautada por regras constitucionais. Por outro lado, pensou o constituinte em atenuar o poder executivo sobre as universidades como uma maneira de delimitar sua autonomia garantindo, então, certa margem de discricionariedade.

Autonomia, Gestão e Autoritarismo

Autonomia universitária

A autonomia universitária se configura, hodiernamente, como tema de estudo e discussão em diversos âmbitos que vão além do universitário. O surgimento dos estudos sobre o tema é datado de 1968, com a lei 5.540, que instituiu a Reforma do Ensino Superior, mas este foi reaberto a discussões por ocasião da aplicação do Exame Nacional de Cursos em 1996, quando as universidades consideraram que a avaliação feria os princípios de sua autonomia e, em contrapartida, o Ministério de Educação considerou a avaliação requisito da própria autonomia universitária.

Para Coelho4:

A controvérsia sobre a autonomia universitária no Brasil vem de longa data. Desde 1968, com a Reforma Universitária, o ideário do ensino superior foi constituído com base no modelo universitário e no do princípio da autonomia. Na prática, a expansão do ensino superior não acompanhou a legislação. O sistema cresceu e se diversificou. A partir de 1995, com a Nova República, reabriu-se o debate sobre autonomia.

Segundo Macambira6:

Desde o surgimento da universidade, na Idade Média, antes, portanto, do advento do estado moderno, a autonomia se constituiu em um pressuposto básico da necessária liberdade para a produção plena do conhecimento, da produção científica e da tecnológica. A universidade, portanto, não é criação, nem criatura do Estado. No Brasil, o autoritarismo estatal impediu, durante muito tempo, o surgimento da universidade.

Atualmente, é necessário reconhecer a universidade pública como uma instituição integrante do Estado, estando submetida às regras do estado democrático de direito, mas não subordinada a quaisquer de seus poderes. A natureza pública dos serviços prestados pela universidade exige alguma forma de controle e avaliação por parte do Estado e da sociedade, porém isto não implica em ingerência. Com base nestes pressupostos, sempre foi defendida a autonomia universitária.

Apesar de ser clara pela legislação constitucional a necessidade de uma universidade com liberdade de gestão, essa vem sendo continuamente regulada por meio de indicadores acadêmicos de qualidade e, sobretudo de produtividade, os quais, por sua vez, são determinantes do financiamento advindo das esferas governamentais.

O Ministério da Educação, por meio dos exames de rendimento como o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), parte do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), avalia as universidades em 26 diferentes cursos de formação. O mesmo tem o poder de eliminar estes cursos, diminuir seu número de vagas ou ainda simplesmente retirar a autorização de funcionamento da instituição de ensino. Com relação ao exame em questão, o próprio Ministério assim o define7:

O Enade avalia o rendimento dos alunos dos cursos de graduação, ingressantes e concluintes, em relação aos conteúdos programáticos dos cursos em que estão matriculados. O exame é obrigatório para os alunos selecionados e condição indispensável para a emissão do histórico escolar. A primeira aplicação ocorreu em 2004 e a periodicidade máxima com que cada área do conhecimento é avaliada é trienal.

Com relação à aplicação do referido exame aos cursos de graduação em Odontologia, estes ocorreram pelo Provão, antigo nome dado ao atual Enade, entre 1997 a 2003. A Portaria 3.648 de 19 de dezembro de 20028, que instituiu as regras para a aplicação do último exame realizado para os cursos de Odontologia em 2007, estabeleceu em seu artigo 1º:

O Exame Nacional de Cursos, como parte integrante do sistema de avaliação da educação superior, no que se refere aos cursos de Odontologia, terá por objetivos: III. estimular as instituições de educação superior a promoverem:
a) a formulação de políticas e programas voltados para a melhoria da qualidade do ensino de graduação em Odontologia;
b) a utilização de dados e informações para avaliar e aprimorar seus projetos pedagógicos, visando à melhoria da qualidade da formação do cirurgião- dentista; e
c) o aprimoramento das condições do processo de ensino-aprendizagem e do ambiente acadêmico dos cursos de Odontologia, adequando a formação do cirurgião-dentista às necessidades da sociedade brasileira.

Confirmando a autonomia universitária, algumas universidades, como a Universidade de São Paulo (USP), não participam do Enade. Em entrevista, o professor e livre-docente da Faculdade de Educação da USP, Romualdo Luiz Portela de Oliveira, especialista em avaliação educacional, afirmou:

Não sabemos direito o que queremos com o Enade. Regular, aperfeiçoar ou avaliar o ensino superior. Existe uma confusão. O Provão tinha um caráter mais regulatório do que de aprendizagem. Funcionava mais como um indicador do desempenho da faculdade. Já o Enade avalia mais o conteúdo, o aproveitamento do aluno e no quê o curso tem capacidade de aperfeiçoamento.

Em sua pesquisa sobre as concepções de qualidade do ensino universitário de professores que atuam como coordenadores de graduação nas faculdades de Odontologia do estado de São Paulo, Secco e Pereira12 concluíram que:

Os resultados apontam para concepções de ensino-aprendizagem que oscilam entre modelos tradicionais e inovadores, sinalizando pontos de conflito em relação a paradigmas que articulam diretamente a questões curriculares e político-estruturais.

Gestão universitária

Tratando-se de gestão universitária, Alonso1 afirmou:

O trabalho de gestão não comporta separação das tarefas administrativas e pedagógicas nos moldes em que costuma ocorrer. [...] O trabalho administrativo somente ganha sentido a partir das atividades pedagógicas que constituem as atividades-fim ou os propósitos da organização.

Neste mesmo sentido, Schmidt se manifestou11:

A gestão é um dos núcleos vitais da universidade. É ela que busca e emprega recursos, propicia os necessários estímulos à qualificação docente, favorece a ampliação das oportunidades educacionais, estimula a qualidade do ensino e apoia o desenvolvimento da pesquisa e da extensão. Para tanto, precisa contar com a participação de todos na definição dos objetivos comuns, mas cada um deve assumir seu papel na organização de acordo com a qualificação e a competência profissional, admitindo-se processos sistemáticos de acompanhamento e avaliação das atividades administrativas e pedagógicas realizadas.

Apesar de a Constituição assegurar a autonomia universitária, nos últimos anos por meio das políticas neoliberais, reformas e ajustes estruturais vêm sendo implantados pelo Estado. Tais intervenções estatais, realizadas por meio de atos administrativos, visam controlar rigidamente as esferas administrativas, financeiras e pessoais da universidade de maneira a reduzir os gastos com os serviços públicos. Neste contexto, o decreto de 20 de outubro de 20033 foi criado, que dita em seu artigo 1º:

Fica instituído o Grupo de Trabalho Interministerial encarregado de, no prazo de 60 dias a contar da publicação deste Decreto, analisar a situação atual e apresentar plano de ação visando à reestruturação, ao desenvolvimento e à democratização das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Parágrafo único. O plano de ação a que se refere o caput deverá contemplar, entre outros aspectos, medidas visando à adequação da legislação relativa às IFES, inclusive no que diz respeito às respectivas estruturas regimentais, bem como sobre a eficácia da gestão, os aspectos organizacionais, administrativos e operacionais, a melhoria da qualidade dos serviços e os instrumentos de avaliação de desempenho.

Dentre os inúmeros oposicionistas à intervenção estatal nas universidades, destacou-se o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), que se manifestou contrariamente ao preceituado pelo Decreto, justificando sua postura ao afirmar que a lei representava uma ameaça ao preceito constitucional contido no artigo 207 da Constituição Federal, já que o grupo de trabalho instituído teria a faculdade de, mas não era obrigado a, convidar representantes das universidades para participar das atividades, assim como se pode perfeitamente detrair do artigo 2º do referido decreto:

Art. 2º O Grupo de Trabalho será composto por representantes dos seguintes órgãos:
[...] §2º O Coordenador do Grupo de Trabalho poderá convidar representantes de outros órgãos ou entidades públicas ou privadas, para participar das reuniões do Grupo.

Outros estudiosos do assunto, como Otranto9, afirmam que:

A ampliação ou redução da autonomia universitária não dependem exclusivamente de uma lei externa, mas, antes, têm relação direta com a ação política de professores, funcionários administrativos e estudantes de cada instituição. Isso significa que, se quisermos uma universidade mais autônoma, temos que lutar politicamente por ela.

Situação Atual da Universidade Brasileira

Para Romano10:

A perda gradativa da autonomia de indivíduos e grupos, nos complexos de pesquisa e de ensino superior, é corrigida de vários modos [...]. Se acompanharmos os prejuízos para a vida pública, gerados pelo conúbio entre reitorias, grupos de pesquisa privilegiados e setores governamentais autoritários, veremos que a noção e a prática da autonomia exigem ser preservadas ou instituídas.

Para Fávero5:

[...] a autonomia universitária deve ser entendida não como uma dádiva, mas como uma utopia a ser alcançada e que, neste momento, urge reconstruir com seriedade e competência o trabalho universitário, tendo presente que a reforma da universidade é um empreendimento, um processo em permanente construção.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com relação ao autoritarismo universitário, exercido por meio do controle institucional, se faz necessário que este ande ao encontro da geração de novos conhecimentos e formação de profissionais que possam gerar novas ideias. Está certo que o equilíbrio entre geração de conhecimento e autoritarismo, que busca o alcance de metas de qualidade e quantidade, é de difícil alcance. Concluiu-se que a autonomia universitária encontra obstáculos que devem ser minimizados pela gestão dos próprios institutos de ensino superior por meio de seus gestores.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Alonso M. O trabalho coletivo na escola. In: Alonso M, Almeida MEB, Masetto MT, Moran JM, Vieira AT. Formação de gestores escolares para utilização de tecnologias de informação e comunicação. São Paulo: Takano; 2002. p. 23-28.         [ Links ]

2. Brasil [Internet]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 2009. [cited 2009 Nov 02]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm        [ Links ]

3. Brasil [Internet]. Decreto de 20.10.2003 – Institui Grupo de Trabalho Interministerial encarregado de analisar a situação atual e apresentar plano de ação visando a reestruturação, desenvolvimento e democratização das Instituições Federais de Ensino Superior – IFES. [cited 2009 Nov 02]. Available from: http://ftp.mct.gov.br/legis/decretos/20102003.htm

4. Coelho MFP [Internet]. As polêmicas visões da autonomia universitária. [cited 2009 Nov 02]. Available from: http://www.ufrn.br/servicos/auto_pol.html        [ Links ]

5. Fávero MLA. Autonomia e poder na universidade: impasses e desafios. Perspectiva 2004;22(1):197-226.         [ Links ]

6. Macambira DM [Internet]. Autonomia Universitária. [cited 2009 Nov 02]. Available from: http://www.ufrn.br/servicos/auto_auto.html        [ Links ]

7. Ministério da Educação [Internet]. Enade. [cited 2009 Nov 05]. Available from: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content &view=article&id=181&Itemid=313        [ Links ]

8. Ministério da Educação [Internet]. Portaria nº 3648 de 19 de dezembro de 2002. [cited 2009 Nov 02]. Available from: http://www.inep.gov.br/superior/provao/diretrizes/2003/odontologia.htm        [ Links ]

9. Otranto CR [Internet]. Autonomia Universitária: Dádiva legal ou construção coletiva? [cited 2009 Nov 02]. Available from: http://www.adurmrj.org.br/5com /popup/autonomia_universitaria1d.htm         [ Links ]

10. Romano R. Gestão universitária, autonomia, autoritarismo. Rev USP 2008;78(1):49-55.         [ Links ]

11. Schmidt LM. Gestão Universitária: uma relação pedagógico-administrativa. Olhar de professor 2002;5(1):77-80.         [ Links ]

12. Secco LG, Pereira MLT. Concepções de qualidade de ensino dos coordenadores de Graduação: uma análise dos cursos de odontologia do estado de São Paulo. Interface: comunicação, saúde, educação. Botucatu 2004;8(15):313-30.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Neide Pena Coto
Avenida Lineu Prestes, 2.227 – Cidade Universitária
CEP 05508-900 – São Paulo/SP

e-mail:
npcoto@usp.br

 

Recebido em: 15/9/11
Aceito em: 7/4/12