SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

RFO UPF

versão impressa ISSN 1413-4012

RFO UPF vol.15 no.2 Passo Fundo Mai./Ago. 2010

 

Satisfação e sofrimento no trabalho do cirurgião-dentista

 

Satisfaction and suffering in the work of dentist surgeon

 

 

Doris GomesI; Ana Sofia Resque GonçalvesII; Luciléia da Silva PereiraIII; Roseneide dos Santos TavaresIV; Denise Elvira Pires de PiresV; Flávia Regina Souza RamosVI

ICirurgiã-dentista, mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina, aluna do curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, professora de Bioética da Soebras - Núcleo Florianópolis, SC, Brasil
IIEnfermeira, mestre em enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aluna do curso de doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina - Modalidade DINTER (UFSC / UFPA / CAPES), professora adjunto da Faculdade de Enfermagem do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará - Belém, PA, Brasil
IIIEnfermeira, mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Publica e Universidade Federal do Pará (MINTER), aluna do curso de doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina - Modalidade DINTER (UFSC / UFPA / CAPES), professora assistente da Faculdade de Enfermagem do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará - Belém, PA, Brasil.
IVEnfermeira, mestre em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, aluna do curso de doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina - Modalidade Dinter (UFSC / UFPA / CAPES), professora assistente da Faculdade de Enfermagem do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará - Belém, PA, Brasil
VEnfermeira, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, pós-doutora pela University of Amsterdam, professora do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora CNPq, Florianópolis, SC, Brasil
VIEnfermeira, doutora em Enfermagem pela UFSC, pós-doutora pela Universidade de Lisboa, professora do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, pesquisadora CNPq, Florianópolis, SC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho em saúde envolve situações que promovem satisfação aos profissionais do setor, assim como estresse e sofrimento. Considerar a existência desses aspectos é fundamental para a construção de propostas de organização do trabalho com vistas à qualificação da assistência.
OBJETIVO: Considerando-se esse cenário, realizou-se uma pesquisa qualitativa do tipo exploratório descritivo com o objetivo de verificar a relação entre satisfação e sofrimento do cirurgião-dentista com o seu trabalho.
MÉTODOS: Os dados foram coletados por meio de entrevistas a dezesseis cirurgiões-dentistas que atuavam na rede básica de saúde de um município da região Sul do Brasil. A análise dos dados baseou-se na análise temática de conteúdo de Bardin, articulando os aspectos que promovem satisfação e os que causam sofrimento no trabalho cotidiano do cirurgião-dentista. Resultados: Os resultados mostraram que a satisfação do paciente com a assistência recebida foi o principal motivo de satisfação no trabalho para os cirurgiões-dentistas. Dentre os fatores causadores de sofrimento foram significativos: a excessiva carga horária de trabalho e os baixos salários; o desgaste físico; a relação conflituosa entre autonomia e mercado; a valorização do trabalho privado e liberal em detrimento do serviço público.
CONCLUSÃO: Conclui-se que elementos complexos estão envolvidos no processo de trabalho desses profissionais, sejam ligados à própria profissão, sejam aos desafios atuais da organização do trabalho coletivo na atenção básica. Tais elementos participam de modo paradoxal na determinação de cargas de trabalho, na relação subjetiva do trabalhador com seu trabalho e na sua maior ou menor possibilidade de satisfação e/ou sofrimento.

Palavras-chave: Trabalho. Satisfação no trabalho. Sofrimento.


ABSTRACT

The work on health involves situations that promote satisfaction to the professionals of the area, as well as stress and suffering. Therefore, it is very important to consider existence of these aspects in order to build proposals of work organization aiming at the assistance qualification.
OBJECTIVE: The objective of this qualitative, exploratory study is to verify the relationship between the surgeon dentists' satisfaction and suffering in their work.
METHODS: The data were collected by means of interviews with sixteen surgeon dentists who worked in the primary health in a city in the southern Brazil. The data analysis was based on a content analysis of Bardin, articulating the aspects which promote satisfaction and the ones that cause suffering in the surgeon dentists' work.
RESULTS: The results showed that the patients' satisfaction from the service received influenced the surgeon dentists' satisfaction. Following are some factors that cause significant suffering: excessive workload and low wages, physical stress, conflicting relationship between autonomy and market, and the enhancement of the private and liberal labor to the detriment of the public service. Conclusion: Therefore, we can conclude that sophisticated elements are involved in the work of these professionals, either linked to their profession or to current challenges of the work organization in basic health care; such elements participate in such a paradoxical manner in determining the workload as well as in the worker's subjective relationship with his or her work and in the greatest or lest satisfaction and/ or suffering possibility.

Key words: Work. Satisfaction at work. Suffering.


 

 

Introdução

O trabalho, segundo Marx¹ (2006), é um processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Assim, o trabalhador, ao mesmo tempo em que modifica a natureza externa por meio de sua ação, modifica também sua própria natureza. O grau de complexidade que envolve o ato de trabalhar assume feições históricas, de acordo com características econômicas, culturais e subjetivas muito diferenciadas.

O trabalho ocupa um lugar central na vida de homens e mulheres, uma vez que por meio dele são atendidas necessidades, assim como nesse processo de produção o ser humano se constrói e se reconhece². Ao produzir, o trabalhador enfrenta discrepâncias entre o prescrito e o real, acrescentando algo de si mesmo, tanto para enfrentar o que não funciona, quanto para executar o que está prescrito. Os trabalhadores podem desenvolver ou não formas de resistir às pressões físicas e psíquicas do trabalho, o que repercutirá em processos de adoecimento no e pelo trabalho.

O trabalho em saúde tem características especiais; pois localiza-se no setor de serviços e diferencia-se da produção material industrial e do trabalho no setor primário da economia. Na atualidade, desenvolve-se sob regras institucionais e apresenta características da fragmentação do trabalho do modo capitalista de produção, assim como do trabalho profissional do tipo artesanal3. No exercício do trabalho verifica-se um movimento de flutuação entre situações e formas de organização do trabalho que provocam satisfação e outras que causam insatisfação, gerando sentimentos de desvalorização, desqualificação e, até mesmo, danos à saúde física e mental.

O cenário do trabalho em saúde é complexo e múltiplos fatores contribuem e/ou interferem nas possibilidades de ter satisfação ou sofrimento no trabalho. Dentre esses se destacam aqueles ligados ao modo de produção de ações e serviços em saúde, às formas de organização e relações de trabalho, especialmente as contemporâneas - pós-globalização, que se sustentam sobre princípios que, em grande parte, sacrificam a subjetividade do trabalhador em nome da rentabilidade e da competição.

O impacto do avanço técnico e a complexificação do aparato tecnológico nas cargas de trabalho dos profissionais da saúde, como no caso do cirurgião-dentista, objeto de investigação deste estudo, são visíveis no seu cotidiano. Ao mesmo tempo em que tornam, do ponto de vista físico, mais leve o desenvolvimento das tarefas cotidianas, podem configurar uma fonte de competição e estresse, dadas as exigências elevadas de produtividade e qualidade no trabalho. Enquanto uma mudança nos paradigmas assistenciais valoriza dimensões subjetivas, como o acolhimento e o cuidado à saúde, esta realidade de trabalho traz como subproduto uma relativa desumanização dos cuidados à saúde.

Com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, mudanças nas abordagens da atenção à saúde, com a defesa da interdisciplinaridade e o resgate da centralidade do direito à saúde, com participação social, impulsionam os cirurgiões-dentistas a repensarem o seu papel nas práticas de cuidado em saúde. Mas, segundo Volschan et al.4 (2002), a formação na odontologia ainda é muito deficiente em relação às disciplinas que tratam dos aspectos sociais e preventivos. A profissão é encarada como uma atividade mercantil e entendida como prioritariamente liberal a partir de um investimento pessoal no sistema privado de saúde em detrimento do público - o perfil liberal da profissão. Além disso, há uma tendência à diminuição do status profissional, numa nova realidade de assalariamento, com alto percentual de insatisfação financeira, acompanhado de diminuição da autonomia do trabalhador perante as seguradoras e os planos de saúde, aliado ao aumento da procura pelas instâncias judiciais para solução de contendas entre profissional-paciente.

Por tais motivações, o presente estudo objetivou compreender a satisfação e o sofrimento no cotidiano prático dos cirurgiões-dentistas, traduzidos nas expressões de cada sujeito, considerando a narrativa subjetiva. Destaca-se o cirurgião-dentista pela sua recente incorporação às Equipes de Saúde da Família e por existirem poucos estudos acerca de satisfação e sofrimento no trabalho deste grupo profissional. Além disso, as situações de intervenção direta na cavidade bucal, com tratamentos altamente invasivos e possíveis problemas na necessária interação entre o profissional e o paciente, podem intensificar a ansiedade deste paciente e o estresse do cirurgião-dentista, que lida cotidianamente com o medo e a ansiedade do paciente/usuário, num ambiente de consultório individualizado e hermético. Entende-se que esses múltiplos aspectos objetivos e subjetivos envolvidos na ação profissional do cirurgião-dentista contribuem para a sua relação com o próprio trabalho, assim como na sua satisfação e sofrimento no trabalho.

 

Sujeitos e método

Trata-se de um estudo qualitativo do tipo exploratório-descritivo realizado com cirurgiões-dentistas de um município da grande Florianópolis - SC. Os trabalhadores foram entrevistados nas unidades locais de saúde do município. De um universo de trinta cirurgiões-dentistas, dos quais 15 eram profissionais da rede de atenção básica e 15 da Estratégia de Saúde da Família (ESF), foram entrevistados 16 profissionais, correspondendo a 53,3% do total. Desses, sete profissionais faziam parte da equipe tradicional da rede básica (com 20 horas semanais) e nove estavam lotados na ESF. Foram excluídos desse universo amostral os cirurgiões-dentistas lotados nas unidades básicas mais distantes da região central e os que estavam de licença ou em férias.

A amostra foi considerada suficiente pelo critério de saturação de dados. Do total de entrevistados, quatro eram do gênero masculino e 12 do feminino. Todos os sujeitos da pesquisa cursaram algum tipo de pós-graduação (aperfeiçoamento ou especialização), estavam cursando-os ou expressaram a intenção de fazê-lo em breve espaço de tempo. Em relação à jornada de trabalho, verificou-se que 68,7% trabalham aproximadamente 12 horas diárias, entre as unidades básicas, consultórios/clínicas e docência.

Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada realizada com os profissionais que aceitaram participar da pesquisa. As entrevistas foram desenvolvidas nas Unidades Básicas de Saúde do município em horário pré-acordado. O roteiro de entrevista combinou perguntas fechadas e abertas, possibilitando uma abordagem flexível e permitindo que os sujeitos da pesquisa expressassem livremente seus modos de perceber o sofrimento e a satisfação no trabalho. As entrevistas foram gravadas, após o consentimento e posteriormente transcritas.

A pesquisa respeitou todos os preceitos éticos e disposições da resolução nº 196 do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC. Os cirurgiões-dentistas foram convidados pessoalmente a participar da pesquisa e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. A todos que participaram da pesquisa foi garantida a preservação da privacidade e do anonimato, além da possibilidade de desistência da participação e acesso a qualquer informação solicitada sobre o andamento da mesma.

Os resultados foram organizados segundo a análise temática de conteúdo de Bardin5,6; pela identificação dos núcleos de sentido que compuseram a comunicação dos sujeitos. O processo seguiu as seguintes fases: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação. Depois de estabelecido o corpus da pesquisa (documentos gerados pelas transcrições organizadas), deu-se início às etapas de análise, quando se procurou encontrar a lógica estruturante de cada unidade em particular, o estilo, os elementos atípicos, as figuras de retórica, bem como as diferenças e semelhanças identificadas no conjunto das falas. Os dados obtidos foram organizados em duas macrocategorias: conhecendo o sofrimento no cotidiano do cirurgião dentista; conhecendo a satisfação no cotidiano do cirurgião dentista.

 

Resultados e discussão

O constante movimento entre a satisfação e o sofrimento, especialmente complexo na área da saúde, remete a uma percepção mais ampla do ser humano, que vai além da sua própria profissão, incluindo a construção histórico-social de sua vida de forma totalizada e suas características individuais. Nesse sentido, o "trabalhar" é visto como "um certo modo de engajamento da personalidade para responder a uma tarefa delimitada por pressões", configurando uma discrepância entre o trabalho prescrito e o real. A satisfação e o sofrimento no trabalho significam, assim, formas de resistência e poder de transformação7.

A satisfação no cotidiano do cirurgião-dentista

O motivo de satisfação no trabalho identificado com o mais significativo foi com relação à satisfação do paciente com a assistência recebida. Em seguida, e satisfação com a "profissão em si". No trabalho do profissional da saúde, o produto do trabalho é consumido no momento em que é produzido3. Na odontologia, em particular, o trabalhador e o paciente, concluído o tratamento, têm a possibilidade de observar o mérito do resultado, ao menos parcialmente, em seus aspectos estéticos e/ou funcionais8. Essas considerações teóricas contribuem para explicar os principais motivos de satisfação profissional encontrados neste estudo.

A relação direta com a satisfação do paciente

A relação entre satisfação profissional e satisfação do usuário foi expressa em três situações: quando o paciente relata sua satisfação com a assistência recebida; quando o cirurgião-dentista percebe a satisfação do paciente pelo trabalho executado; quando o paciente modifica seus hábitos deletérios, incorporando uma maneira de agir saudável, transformando-se em agente de seu próprio cuidado:

Satisfação é quando você consegue resolver o problema das pessoas, ver a satisfação, ver as pessoas felizes, quando resolve o problema da dor se o problema é esse, ou um trabalho estético porque a pessoa fica satisfeita. A grande satisfação minha é ver a satisfação do paciente através do meu trabalho. (cirurgião-dentista 13)

Seja pelo alívio da dor, seja pelo resultado do tratamento estético ou o respeito pelo atendimento, a satisfação em forma de agradecimento feita pelo usuário e o comprometimento com o tratamento proposto parecem diminuir o sentimento, também relatado, de secundarização da profissão, especialmente em relação à centralidade da figura do médico nos serviços de saúde, além de questões culturais de valorização do profissional da saúde.

O triste é a falta de interesse, a desvalorização do profissional... Se você não tem o esclarecimento da população, você tá tentando resolver problemas que na verdade não são vistos como problemas graves. A nossa área, na verdade, é uma área muito desvalorizada, né. Não somos médicos, nós somos tapa-buracos e isso me deixa um pouco ranzinzas. (cirurgião-dentista 4)

A satisfação com a profissão em si

O trabalho prático, executado como uma atividade técnica que incorpora alta tecnologia e especialização, pode ter grande significado e importância na satisfação relatada pelo profissional. Aparece a "profissão em si", referida como a técnica empregada e a habilidade artística do profissional, separada do contato humano e do cuidado ao paciente no geral. Essa realidade parece ter como pano de fundo uma formação acadêmica e uma atuação profissional com perfil liberal, voltadas para a técnica, a tecnologia e o mercado, que muitas vezes pode contrastar com a necessidade de uma atuação mais humanizada9.

Satisfação na odontologia é o trabalho em si. Adoro a odontologia, não gosto de esperar, mas na hora que estou trabalhando eu adoro. Tem paciente que, se eu pudesse, eu não atenderia, não vou com a cara desse cara. Mas na hora de atender eu esqueço tudo isso, eu adoro o que eu faço, fico lá... Eu adoro, me satisfaço com a profissão. (cirurgião-dentista 2)

Ainda em relação aos atributos técnicos, todos os sujeitos da pesquisa levantam a necessidade de engajamento em alguma especialização, identificando-a como uma exigência da profissão e/ou do mercado, o que configura uma realidade de valorização dos cursos de pós-graduação como motivo de realização profissional.

Para o ego, a satisfação pessoal dentro do meu trabalho são os cursos que eu queria fazer e que eu fiz, os objetivos profissionais... cursos, aperfeiçoamentos, conseguir realmente. Muitas vezes tu trabalhas, trabalhas em cima do paciente e acabas abrindo mão da tua realização pessoal, da tua satisfação, da tua realização profissional. (cirurgião-dentista 1)

Em contrapartida, há o sofrimento na forma de frustração quanto à banalização das especializações exigidas para a sustentabilidade do profissional no mercado:

Na internet para tu fazer especialização tem até por correspondência. Um curso prático como o nosso, fazer por correspondência como? (cirurgião-dentista 13)

O sofrimento no cotidiano do cirurgião-dentista

Para se ter acesso ao sofrimento é preciso passar, necessariamente, pela palavra dos trabalhadores, considerando que a autenticidade sobre este sofrimento pode não ser obtida de uma só vez, mas marcada por dois tipos de distorção: o interesse e as estratégias defensivas10. Consideram-se as formas veladas de sofrimento como de interesse para os resultados da pesquisa, assim como as estratégias defensivas, algumas vezes marcadas como distorção do discurso para atenuar, combater ou ocultar o sofrimento.

Carga horária de trabalho excessiva e baixo salário

Na década de 1970 se iniciou a construção de modelos teóricos e instrumentos capazes de registrar e compreender um sentimento crônico atestado nos trabalhadores, caracterizado pelo desânimo, pela apatia e despersonalização. Verifica-se que a síndrome de Burnout atinge especialmente os trabalhadores encarregados do cuidar, uma vez que este ato exige tensão emocional constante, atenção permanente, envolvimento afetivo e grande responsabilidade por parte do trabalhador 11.

Para definir pessoas extremamente satisfeitas com o que fazem, aquelas que simplesmente gostam muito do trabalho e que não usam o trabalho como uma válvula de escape, pode-se utilizar o termo worklover², em contraposição a workaholic, que designa a pessoa que trabalha muito, com características semelhantes às da dependência, como um viciado.

Para a escola dejouriana da psicodinâmica e psicopatologia do trabalho, quando o trabalhador executa uma tarefa sem investimento material ou afetivo, tem de exigir de si mesmo uma produção de esforço e de vontade. Em geral, quanto maior a rigidez da organização do trabalho, menor é o seu conteúdo significativo. A insatisfação em relação a este conteúdo significativo engendra um sofrimento mental diferente do sofrimento resultante do conteúdo ergonômico da tarefa, que é o corpo. A dinâmica das relações sujeito-organização do trabalho pode ocupar lugar significativo na luta do homem contra a ameaça de se tornar doente, uma luta para conservar a normalidade12.

Em pesquisa desenvolvida com recém-egressos de faculdades de odontologia, 86,87% dos profissionais estudados desenvolviam atividades em consultório privado; a maior parte deles trabalhava cinco dias ou mais por semana e 57,73% atuavam de 8 a 12 horas por dia, enquanto 16,40% trabalhavam mais de 12 horas/dia13. Em outro estudo constatou-se que a maior parte dos cirurgiões-dentistas considera indispensável fazer cursos de pós-graduação. Além disso, os profissionais recém-formados têm grande dificuldade para se estabelecer no mercado, o que desestimula o exercício da profissão. Assim, 37,8% dos entrevistados responderam que não optariam mais pela odontologia se tivessem de escolher uma carreira novamente. Nos assalariados (24,5% do total de entrevistados), os autores notaram um alto grau de insatisfação financeira (80,6%)14.

Não diferente dos resultados de estudos anteriores, identificou-se que o cirurgião-dentista sujeito desta pesquisa, além de ocupar 20 horas (da rede) ou 40 horas (ESF) do seu tempo semanal de trabalho dedicado ao serviço odontológico público, ainda empreende, ou empreendeu, trabalho privado em clínicas ou consultórios, perfazendo uma média de 12 horas de trabalho diário. Há uma relação direta entre a remuneração salarial insuficiente no serviço público, a formação para uma profissão de caráter liberal e o sofrimento relacionado à sobrecarga de trabalho, além do paradoxo atestado pela satisfação velada no trabalho público, dando sentido e servindo como justificativa à insatisfação financeira:

Depois de um tempo como especialista, o posto de saúde corresponde a uma fração muito pequena dos meus rendimentos. Então, aqui é vestir a camisa, que na clínica ganha-se muito mais. Então, ou você acredita que você tá mudando alguma coisa ou você não vem. (cirurgiã-dentista 4)

Desgaste físico e emocional como fatores inerentes à profissão

Segundo Weil14 (1979), a especialização e a fragmentação das tarefas conseguem roubar do trabalhador a habilidade manual e a inteligência de sua obra. Nesse sentido, várias falas caracterizam o trabalho repetitivo, metódico, especializado e com sobrecarga horária como causador de grandes sofrimentos na profissão, mesmo que expresso de forma velada:

O desgaste físico e o psicológico são muito grandes, a gente fica curvado muito tempo, cansa muito e tu despende muita energia, eu acho que tu repete muito durante o dia. Eu, por exemplo, oriento todos os meus pacientes com relação à escovação, à alimentação. Então, se eu fizer isso 10 x num dia, eu não aguento mais repetir isso no final do dia, eu já tô rouca, com dor nas costas. Aí eu fico pensando: será que valeu a pena esse cansaço? (cirurgiã-dentista 10)

Os profissionais ligados diretamente à rede possuem, em média, mais tempo de trabalho que os profissionais do PSF, que são, na sua maioria, recém-formados. Estes profissionais identificam como um grande sofrimento o desgaste físico, que é sentido como um problema inerente à profissão e associado indiretamente à grande quantidade de horas de trabalho diário:

Sofrimento profissional seria o físico, pela profissão, é muito difícil manter uma postura em atendimento, desenvolver LER, limitações. Todo dentista está condicionado a sentir um dia, sofrimento físico pelo tempo de trabalho e, por mais que se corrija e tente compensar, não tem jeito. É muito difícil não sentir dor. Você está condenado a sentir, mas se colocar na balança custo e benefício, ainda vale. (cirurgião-dentista 1)

No serviço público, especialmente, há uma relação direta com o sofrimento emocional relacionado à impotência do profissional diante da carência da população; o trabalho cotidiano com a dor e a frustração pela ausência de práticas multidisciplinares entre a equipe de saúde. Mesmo quando não atestada nas falas, esta falta também se transforma em sofrimento velado:

Eu saio assim, realmente cansada fisicamente e até mentalmente. O problema das pessoas não é só o técnico. Há identificação de muitos problemas no paciente como um todo e se sabe que a curto prazo isto não será resolvido. (cirurgião-dentista 7)

Relação conflituosa entre autonomia e mercado

Duas questões parecem relevantes para caracterizar este sofrimento: a primeira encontra-se na relação entre certa precariedade do atendimento público e insatisfatórias condições de existência do usuário, levando o profissional à tomada de posições que restringem a autonomia desse usuário:

Às vezes se toma decisões no que você supõe que ele vai ter condições de fazer ou não. Você tem que decidir pelo paciente, e é uma coisa muito agressiva pra gente, isto me frustra. (cirurgião-dentista 4)

A segunda questão pode ser caracterizada como uma certa confusão entre compra e venda de serviços e autonomia do paciente na tomada de decisões, especialmente por parte daqueles que pagam pelo tratamento:

Acho difícil o relacionamento com os pacientes mais no consultório particular, que hoje tem gente que já chega diagnosticando, já vem sabendo. Às vezes é bom, às vezes não é tão bom. Acham que têm muitos direitos... Tem gente que já chega se impondo. (cirurgião-dentista 12)

Por trás de algumas falas percebe-se o sofrimento provocado pela angústia de não ser considerado um profissional que tem como objetivo proporcionar saúde, mas como algo que pode ser comprado quando se necessita, pela angústia de fazer parte de um mercado:

Muitos pacientes que fazem a parte estética recorrem a cirurgias plásticas. Muitos falam botei silicone, fiz a lipo, agora vou fazer o olho, vou fazer a orelha. Dá vontade de dizer, né, para e pensa, não tem... As pessoas não olham para dentro de si, por isso que tá nesse consumismo. Tu faz parte disso, vou lá, to pagando para tu fazer isso, faz e pronto. Então tchau e deu. Alguns valorizam mais, eu vejo assim mesmo, um consumismo, uma mercadoria, vai lá e comprou, se ficou satisfeito ou não..., como uma bolsa..., tu tens que estar à disposição deles... Adoro a odontologia, mas sou meio frustrado com a odontologia, sabe... Eu acho que a maioria dos dentistas se dedica muito, e o retorno do paciente... não valoriza o profissional, fico meio decepcionado. (cirurgião-dentista 2)

Também é relatada a insatisfação gerada pela desunião da categoria, em boa parte associada à competição do mercado e/ou ao isolamento dos consultórios. Para Dejours et al.9 (2007), as defesas contra o sofrimento podem ser percebidas como "uma atitude de fechamento numa autonomia máxima, de silêncios frente à hierarquia superior e, às vezes, frente aos próprios colegas: a ideologia de 'cada um para si'".

E o maior sofrimento para mim é a falta de união da classe odontológica. Enquanto dentista é a maior decepção que eu tive, ver a diferença de outras classes, do que conseguem por serem unidos, e a gente não. A gente é cada um por si e, se eu puder tirar o teu, eu ainda faço alguma coisa para tirar. Por isso a gente não consegue nada. (cirurgião-dentista 13)

Relação de valorização do serviço privado em detrimento do serviço público

Aparece nas falas uma diferenciação negativa do trabalho desenvolvido no serviço público em relação ao privado. O problema é apontado na história pregressa deste atendimento, que pode ser encarado como um "algo a mais" pelos dentistas, inclusive por não ser, em geral, um serviço especializado. A falta de reconhecimento pelo paciente é atestada como sofrimento pelo cirurgião-dentista. Isso pode significar problemas em relação à humanização do cuidado, nas relações entre profissional e paciente, e/ou à visão do atendimento diferenciada no serviço público:

Ainda existe uma visão de que o serviço público não é um serviço bom. A maioria das pessoas ainda tem esta mentalidade. Eu percebo muito nos pacientes, os que têm nível socioeconômico melhor justificam estarem procurando atendimento no posto, como se só procurassem o posto de saúde em casos extremos, parece uma coisa errada. A maioria não tem noção do trabalho que é feito, da qualidade, em todos os setores, do material que é usado. Eu me reconheço uma ótima profissional e a maioria não tem noção da ótima qualidade do trabalho, do material... O que a gente faz aqui é muito melhor do que eles pagariam particular em muitos lugares... Partem do princípio de que trabalho gratuito necessariamente não vai ser bom. Eles não dizem isso literalmente... Alguns agradecem, mas é uma minoria, causa frustração, no começo te decepciona... Tu sabes que fizeste um excelente trabalho nas não tem o reconhecimento pelos teus chefes, pelos teus próprios pacientes. No começo é muito decepcionante. Me esforcei tanto, estudei tanto e a pessoa ainda acha que não foi bem atendida, sempre acha alguma coisa para mostrar que o atendimento não é bom, agora não me incomodo mais... Na clínica o trabalho é por produtividade... Eles pagam. Então acham que o trabalho aí é diferente, e o atendimento não é diferente. A única coisa diferente que eu faço é o tempo que eu fico com o paciente. (cirurgião-dentista 10)

Nesse sentido, pode-se perceber que a odontologia pública é ainda considerada como de qualidade inferior por usuários e por boa parte dos profissionais. No caso destes últimos, tal visão se inicia já na formação, voltada quase exclusivamente para a atuação liberal de mercado. A odontologia pública percorre o caminho do reconhecimento de sua excelência pela concepção e construção dos Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) e incorporação dos cirurgiões-dentistas à ESF. Esse reconhecimento pode ser considerado como uma necessidade para a satisfação do profissional que exerce este trabalho e um desafio para a saúde pública:

Na faculdade a gente não aprende que saúde pública satisfaz. Eu saí da faculdade achando que trabalhar no posto seria um inferno, que não ia ter nada. E aqui é completamente diferente, eu tenho uma infraestrutura excelente. Sou idealista, de fazer a coisa bem feita. Eu ria nas aulas de saúde pública: "Eles acham que eu vou sair daqui e vou encontrar o quê, um consultório bonitinho?" E aí eu encontrei, foi meio que para dar um tapa na minha cara, assim, porque eu ria nas aulas. (cirurgião-dentista 13)

 

Conclusões

Como sofrimento relacionado à carga horária de trabalho diário, percebe-se que a incorporação de novas tecnologias e de uma técnica cada vez mais avançada - vistas como necessárias à profissão -, não significa uma diminuição da carga horária de trabalho. Ao contrário, a competição exigida pelo mercado e o número de novos profissionais que se incorporam a ele, nos mesmos moldes liberais, aumentam a exigência de dedicação ao trabalho, causando sofrimento ao cirurgião-dentista. Esse excesso de horas trabalhadas aparece como uma exigência da profissão e do mercado, uma realidade sentida, mas não atestada como passível de mudanças.

Além disso, no momento produtivo as condições potencializadoras e desgastantes da expressão de sofrimento foram: a relação entre a precariedade do atendimento público e a condição socioeconômica do paciente; certa confusão entre compra e venda de serviços privados; a banalização das especializações exigidas para a sustentabilidade do profissional no mercado de trabalho; a característica de trabalho repetitivo, metódico e especializado; o desenvolvimento do trabalho cotidiano na presença de dor; a falta de perspectiva multidisciplinar no trabalho da equipe de saúde; a falta de reconhecimento por parte do paciente e a desunião da categoria.

Os motivos de satisfação no trabalho que mais se fizeram presentes foram a relação direta com a satisfação do usuário e a satisfação com a profissão em si, que comporta a realização profissional. A necessidade de se especializar constantemente em áreas exclusivamente técnicas pode levar este profissional a priorizá-la em detrimento de oportunidades para o crescimento e desenvolvimento humanos. A ênfase curativa, fragmentada, com processos de trabalho rígidos e alienados, conforma uma realidade assistencial que interfere diretamente na realização subjetiva deste profissional. A totalidade do humano e a ideia de trabalho em equipe são retiradas do campo de visão deste trabalhador.

Nesse sentido, pode-se considerar também que uma gestão pública voltada para a valorização do profissional da saúde, tanto na administração central quanto nas unidades básicas da rede de saúde, deve influenciar na satisfação do paciente e, consequentemente, na própria satisfação do cirurgião-dentista. Conhecer a satisfação e o sofrimento no trabalho do cirurgião-dentista foi fundamental para entender o novo modo de produção de ações e serviços de saúde na odontologia, que historicamente tem privilegiado o econômico em detrimento do humano. A partir desta pesquisa poderão ser suscitadas novas questões, que podem se tornar pauta no debate da organização do trabalho em saúde na atualidade.

 

Referências

1. Marx K. O capital: a crítica da economia política: livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2006.         [ Links ]

2. Codo W. Existe versão saudável de workaholic. Revista Digital [Internet]. 2004 Oct [citado 2008 Jun 7]; 277 (caderno especial). Disponível em: http://www.revistadigital.com.br/caderno_especial.asp?NumEdicao=277&CodMateria=2362 .         [ Links ]

3. Pires DEP. Reestruturação produtiva e trabalho em saúde no Brasil. São Paulo: Annablume; 2008.         [ Links ]

4. Volschan BCG, Soares EL, Corvino M. Perfil do profissional de saúde da família. RBO. 2002; 59(5):314-6.         [ Links ]

5. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979.         [ Links ] 

6. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa quantitativa em saúde. Rio de Janeiro: HUCITEC-ABRASCO; 1999.         [ Links ]

7. Freitas SFT. História social da cárie dentária. Bauru: EDUSC; 2001.         [ Links ]

8. Possobon RF, Carrascoza KC, Costa Júnior AL, Moraes ABA. O tratamento odontológico como gerador de ansiedade. Psicol Estud [Internet] 2007 Set./Dec.; 12(3). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722007000300018&lng=en&nrm=iso .         [ Links ]

9. Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 2007.         [ Links ]

10. Carlotto MS, Câmara SG. Análise fatorial do Maslach Burnout Inventory (MBI) em uma amostra de professores de instituições particulares. Psicol Estud 2004; 9(3):499-505.         [ Links ]

11. Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré; 1992.         [ Links ]

12. Crossato EM, Calvielli ITP, Biazevic MGH, Crosato E. Perfil socioeconômico da força de trabalho representada pelos egressos da FOUSP (1990-1998). RPG Rev Pós- Grad 2003; 10(3):217-26.         [ Links ]

13. Bastos JRM, Aquilante AG, Almeida BS, Lauris JRP, Bijella VT. Análise do perfil profissional de cirurgiões-dentistas graduados na Faculdade de Odontologia de Bauru - USP entre os anos de 1996 e 2000. J Appl Oral Sci 2003; 11(4):283-9.         [ Links ]

14. Weil S. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Doris Gomes
Rua Rafael da Rocha Pires, 3913
88051-001 Florianópolis - SC, Brasil
E-mail: dorisgomes@bol.com.br
Fone: (48) 3209-7705

Recebido: 14.10.2009
Aceito: 29.12.2009