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RFO UPF

versão impressa ISSN 1413-4012

RFO UPF vol.15 no.3 Passo Fundo Set./Dez. 2010

 

EDITORIAL

 

A importância das normas internacionais de Odontologia

 

 

Alvaro Delia Bona, DDS, MMedSci, PhD, FADMI; Wayne T. Wozniak, PhDII; David C Watts,BSc, PhD, DSc, FADMIII

IUniversidade de Passo Fundo, Brasil. Presidente da Academy of Dental Materials. Editor: RFO-UPF
IISecretário, ISO/TC106/SC2. Director, Guidelines and Standards Development American Dental Association
IIIUniversidade de Manchester, Inglaterra. Editor: Dental Materials

 

 

O objetivo deste editorial é promover o entendimento, a discussão informada e o uso apropriado das normas internacionais na condução e publicação da pesquisa em materiais e equipamentos odontológicos.

Em um extremo estão os pesquisadores de materiais odontológicos que ignoram totalmente as normas; do outro, aqueles pesquisadores que as tratam como a última palavra em termos de metodologia de pesquisa.

Há vários tópicos a serem considerados com relação às normas odontológicas, incluindo história, definições, escopo, componentes estruturais, criação, utilidades e propósito principal. Este último apresenta o questionamento: para que são as normas? Na visão do Dr John Stanford1, ex-presidente do TC106 da ISO:

"Normas servem a vários propósitos mercadológicos. Elas fornecem a base para comparação de produtos e estabelecem terminologias consistentes através de definições, medidas e procedimentos experimentais. Elas promovem a compatibilidade de produtos usados em sistemas, reduzindo assim a margem de variação desses produtos. Elas não apenas asseguram a qualidade e o nível de desempenho desejados, mas reduzem a baixa qualidade, oferecendo ao consumidor uma fácil verificação da qualidade dos produtores, portanto, aumentando o bem-estar do consumidor. Como resultado, as normas podem melhorar a imagem geral da industria. O uso de normas aumenta a confiança do comprador com relação a qualidade dos produtos e, consequentemente, pode melhorar a demanda geral pelo produto, refletindo a preferencia do consumidor com relação a qualidade. Normas favorecem a transferência de tecnologias na industria e facilitam a introdução da inovação por reduzirem riscos técnicos e mercadológicos. Elas oferecem a industria uma importante ferramenta de mercado".

As normas atuais mais importantes são da Organização Internacional de Normatização (International Standards Organization, ISO) e da ASTM International, conhecida antes de 2001 como Sociedade Americana para Testes e Materiais (American Society for Testing and Materials, ASTM). A ASTM foi fundada em 1.898 por químicos e engenheiros da Ferrovia da Pennsylvania. Naquela época, a organização era conhecida como a Secção Americana da Associação Internacional para Testes e Materiais (American Section of the International Association for Testing and Materials). A ISO é a maior organização mundial para desenvolvimento de normas. Nasceu da união de duas organizações - a ISA (International Federation of the National Standardizing Associations - Federação Internacional das Associações Nacionais de Normatização), fundada em Nova Iorque, em 1926, e o UNSCC (United Nations Standards Coordinating Committee - Comitê Coordenador de Normas das Nações Unidas), fundado em 1944. Com o objetivo de "facilitar a coordenação internacional e a unificação das normas industriais", a nova organização começou oficialmente a funcionar em 23 de fevereiro de 1947. Desde então a ISO publicou mais de 18.500 normas internacionais, que regulam desde atividades como a agricultura e a construção civil até a engenharia mecânica, equipamentos médicos e odontológicos e os mais avançados desenvolvimentos da tecnologia de informação.

Além das normas da ISO e da ASTM, a Associação Odontológica Americana (American Dental Association - ADA), setor credenciado de normatização odontológica do Instituto Americano de Normas Nacionais (American National Standards Institute - ANSI), também publica normas para a odontologia.

Uma descrição é talvez mais útil do que uma definição formal de uma norma. Normas odontológicas são documentos destinados a avaliar propriedades relevantes de um produto para verificar se atinge os requisitos aceitáveis de segurança e uso eficaz. A relação de produtos examinados pelas normas odontológicas inclui dispositivos, tais como instrumentos manuais, equipamentos e fotopolimerizadores, além de produtos de higiene oral e uma grande variedade de biomateriais para restaurações diretas e indiretas. Estes últimos incluem materiais laboratoriais. Nesses últimos anos, o TC106 da ISO expandiu as atividades para novas tecnologias, tais como implantes dentários e sistemas de CAD-CAM, além de examinar assuntos ambientais, como o descarte do amálgama e o controle de infecções. No desenvolvimento dessas normas, esse comitê tem aumentado a ênfase na relevância clínica e no desempenho dos materiais para atender às necessidades dos profissionais e dos consumidores. Uma distinção útil é entre norma "vertical" e "horizontal". A vertical significa uma norma relacionada, por exemplo, com um tipo de material específico; a horizontal especifica métodos experimentais, tais como a análise da estabilidade da cor (norma ISO 7491 ou especificação ANSI/ADA 80), que pode ser aplicada indiscriminadamente a muitos materiais diferentes, como resinas compostas e resinas acrílicas quando expostas a luz e à água.

Em cada norma a primeira prioridade é definir o escopo (por exemplo, a classe(s) do cimento em consideração), seguido das definições necessárias à norma. Outros componentes importantes são as referências normativas, que indicam normas que fundamentam a norma em questão, como, por exemplo, aquelas referentes à segurança biológica. Isso significa que a segurança biológica pode ser frequentemente considerada em separado das propriedades físicas, mecânicas, químicas, etc. Em seguida aparecem seções maiores sobre propriedades exigidas, incluindo limites mínimos de desempenho (por exemplo, valores mínimos de resistência, em MPa). As questões de amostragem são normalmente apresentadas, seguidas de seções maiores e detalhadas sobre metodologias experimentais, que descrevem exatamente como as amostras devem ser fabricadas e testadas (incluindo o tipo de equipamento necessário, normalmente ilustrado em desenho), os parâmetros de controle do ambiente de teste, o número de amostras (n) e o tratamento (estatístico) dos resultados. A parte final da norma trata, quando apropriado, da apresentação do produto ao mercado: empacotamento, informações que devem ser disponibilizadas pelo fabricante e as instruções de uso.

Como as normas são criadas? Com relação às normas odontológicas da ISO, existe desde 1963 o Comitê Técnico (TC), chamado de ISO/TC106, que já publicou mais de 150 normas. O TC é administrado por uma secretaria, atualmente com o Canadá, e associada com setor de organização de normas daquele país (SCC). O TC106 está atualmente dividido em sete sub comitês (SC), cada um com sua própria secretaria e líder de grupo de trabalho (WG) que produzem as iniciais de uma ou mais normas. Quando essas iniciais ou rascunhos de norma alcançam um estado definitivo, são enviadas para análise, comentários e voto às organizações nacionais credenciadas e representadas no TC106. Os trabalhos do TC106 ocorrem de forma intensiva nos seis dias da reunião anual e durante o ano nas comunicações entre os participantes.

Aproximadamente 25 países são membros participantes ('P') da ISO/TC106, cada um apontando delegados ou membros especialistas com poder de voto para os respectivos SCs e WGs. Outros 18 países apresentam situação de 'Observador' ('O'), sem poder de voto. Assim, existe uma diferença importante entre o grupo internacional de delegados, de natureza relativamente fechada, e a comunidade científica internacional, de natureza completamente aberta. De maneira geral, os delegados da ISO/TC106 são provenientes da indústria, setores técnicos e de negócios, pesquisadores acadêmicos e clínicos, representantes de agências governamentais, centros de pesquisa, associações de consumidores e organizações não governamentais.

Esse complexo grupo de nações e especialistas geralmente precisa de um alto grau de diplomacia para alcançar um acordo dentro de um WG ou SC, especialmente sobre assuntos como metodologias de teste e seus limites. É muito comum ocorrerem divergências sobre esses assuntos e a solução tem de ser alcançada por maioria de votos. A norma resultante não traz qualquer resíduo das intensas discussões que geralmente precedem a publicação. Certamente, um intenso esforço intelectual é colocado na criação e revisão das normas. As normas ISO usualmente refletem o estado comercial do mercado. É muito raro fixar um limite de teste que exclua um material já tradicional no mercado. Quando isso ocorre, precipita-se uma pressão política das indústrias atingidas pela mudança.

Não há intensão direta do envolvimento de pesquisa científica na elaboração das normas, contudo isso depende da definição de "pesquisa". É comum ocorrerem estudos multicentro nos WGs para auxiliar a estabelecer limites de propriedades para determinada classe de material ou instrumento. Uma grande restrição é que as metodologias desenvolvidas não devem ser mais complexas ou sofisticadas do que estritamente necessárias. Os equipamentos necessários deveriam estar disponíveis em centros internacionais de pesquisa razoavelmente equipados. Consequentemente, e até onde sabemos, nenhuma metodologia re-

quer o uso de equipamento como microscópio eletrônico de varredura, tomografia de raios-X ou ressonância magnética nuclear, embora o uso desses equipamentos seja relevante na pesquisa de ponta em materiais dentários. Uma restrição adicional é o tempo para as avaliações. Isso é tão verdadeiro que os laboratórios de pesquisa podem completar as avaliações dentro de um período razoável de tempo. Por exemplo, a ISO 4049 exige que mensurações de absorção de água e de solubilidade sejam conduzidas num período de imersão de sete dias (excluindo condicionamento e recondicionamento). Contudo, em pesquisa científica, diferente da análise de produtos, um período de imersão muito mais longo, de vários meses, é geralmente necessário. Isso se deve ao comportamento físico-químico inerente aos materiais, ao contrário das urgências temporais do comércio. Assim, a aplicação das normas "ao pé da letra" está, às vezes, mais distante da realidade clínica do que a melhor pesquisa in vitro disponível.

Utilizando a diferenciação feita por Dr Jack Ferracane2, entre "estado da arte" e "padrão de tratamento", as normas são mais orientadas para o segundo conceito, enquanto a pesquisa científica está mais orientada para o primeiro. Essa distinção deveria ser ensinada nos cursos de graduação em odontologia, em conjunto com o uso adequado das normas.

Nesse sentido, as normas deveriam ser usadas de forma inteligente. O uso com fins regulatórios exige a aplicação da norma ao pé da letra, ao passo que na pesquisa pode, e às vezes deve, haver criatividade no uso das metodologias descritas nas normas. Além disso, as normas não foram feitas para estabelecer qual é o 'melhor' material para uma determinada aplicação clínica. Mas, em um nível mais inferior, são aplicadas para excluir do mercado os materiais ruins e sem segurança. Contudo, quando existem normas, ou parte delas, para executar determinado procedimento, o seu uso e citação devem ser encorajados pelos pesquisadores. Uma vez que normas bem estabelecidas e clinicamente relevantes estão disponíveis no site da ISO (iso.org) ou nas agências nacionais de normatização (como a ABNT, no Brasil), é esperado o uso adequado delas em pesquisa. Nos EUA, as normas são utilizadas na avaliação de produtos odontológicos por dentistas no Professional Product Review (disponível por assinatura na ADA) e no desenvolvimento de novos métodos de teste clinicamente relevantes para estas avaliações. Por isso, os editores de revistas especializadas na área de odontologia podem questionar, os autores de trabalhos submetidos à publicação, se as normas adequadas na realização dos estudos científicos envolvendo tecnologias novas ou existentes foram seguidas.

1. Stanford JW. Guest Editorial: Importance of International Standardization in Dental Products. J Dent Res 1987; 66: 1782.

2. Ferracane JL. Resin composite - state of the art. Dent Mater 2011; 27(1): 29-38.