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RFO UPF

versão impressa ISSN 1413-4012

RFO UPF vol.16 no.3 Passo Fundo Set./Dez. 2011

 

 

Complicações bucais dos tratamentos de câncer de cabeça e pescoço e de malignidades hematológicas

 

Complications of oral treatment of head and neck cancer and hematologic malignancies

 

 

João Luiz Pozzobon*; Fernanda Ruffo Ortiz**; Katia Braun***; Beatriz Unfer****

* Acadêmico de Odontologia, Programa de Educação Tutorial, Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Estomatologia, Santa Maria, RS, Brasil.
** Acadêmica de Odontologia, Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Estomatologia, Santa Maria, RS, Brasil.
*** Professora Associada, Departamento de Odontologia Restauradora, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil.
**** Professora Associada, Departamento de Estomatologia, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

Introdução: Os pacientes com câncer de cabeça e pescoço ou malignidades hematológicas e que recebem tratamento radioterápico e/ou quimioterápico apresentam complicações bucais como efeitos colaterais do tratamento. Objetivo: O objetivo deste artigo foi identificar as principais complicações bucais decorrentes dos tratamentos antineoplásicos com radioterapia e quimioterapia e as condutas indicadas para prevenir e controlar essas complicações. Revisão de literatura: O estudo constitui-se em uma revisão de literatura nas bases de dados Pubmed/Medline que recuperou artigos completos publicados entre 1999 e 2010 nos idiomas inglês, português e espanhol. Foram identificados cinco problemas bucais decorrentes do tratamento antineoplásico: mucosite, xerostomia, candidíase, cárie de radiação e osteorradionecrose. As condutas eram indicadas antes e durante do tratamento. Os resultados mostram que a maioria dos procedimentos era indicada durante o tratamento do câncer de acordo com o tipo de complicação apresentada. Considerações finais: Boas condições de saúde bucal dos pacientes submetidos ao tratamento antineoplásico antes e durante o tratamento são fundamentais para diminuir a ocorrência e a severidade das complicações apresentadas. É de fundamental importância o diagnóstico precoce das alterações, o manejo correto das condutas em todos os estágios do tratamento, efetuado de forma multiprofissional. Todos os esforços devem ser dirigidos para que a qualidade de vida dessas pessoas, antes, durante e depois do tratamento seja a melhor possível.

Palavras-chave: Câncer de cabeça e pescoço. Malignidades hematológicas. Quimioterapia. Radioterapia. Complicações bucais.


 

ABSTRACT

Introduction: Patients with head and neck cancer or hematologic malignancies who receive chemotherapy or radiotherapy present oral complications as side effects of the treatment. The aim of this study was to identify major complications resulting from oral anticancer treatments with chemotherapy and radiotherapy, and behaviors required to prevent and control these complications. Review of literature: The study consists of a literature review on the database PubMed/Medline that restored full articles which were published between 1999 and 2010 in English, Portuguese and Spanish. Five issues resulting from the anticancer treatment were identified: mucositis, xerostomia, candidiasis, radiation caries and osteoradionecrosis. The pipes were indicated before and during the treatment. The results show that most of the procedures were indicated during the treatment of cancer according to the type of complications presented. Final considerations: Good oral health status of patients submitted to anticancer treatment, before and during the treatment, is important to reduce the occurrence and severity of complications experienced. It is critical the early diagnosis of the changes, the correct management of behavior in all stages of treatment, performed in a multidisciplinary approach. All efforts should be directed so that the quality of life of these people before, during and after the treatment is the best as possible.

Keywords: Head and neck cancer. Hematological malignancies. Chemotherapy. Radiotherapy. Oral symptoms.


 

 

Introdução

Os pacientes que apresentam câncer de cabeça e pescoço ou malignidades hematológicas podem receber tratamento por meio de cirurgia, radioterapia (RT) e quimioterapia (QM). Essas terapias podem ser combinadas ou realizadas de forma isolada, dependendo do tipo e da severidade do caso.

O tratamento com QM e RT é acompanhado comumente de sintomas e complicações bucais, como dor, dificuldade de alimentação e deglutição, gerando impacto negativo na qualidade de vida dos pacientes. Essas complicações são oriundas de uma reação dos tecidos e estruturas bucais aos efeitos citotóxicos da radiação e dos compostos dos quimioterápicos1,2,3,4.

Alguns fatores determinantes para a severidade das complicações bucais são o tipo e grau de malignidade da doença, doses das drogas, duração do tratamento antineoplásico, idade e estado bucal antes e durante a terapia.5

O objetivo deste artigo foi identificar na literatura as principais complicações bucais decorrentes dos tratamentos antineoplásicos com radioterapia e quimioterapia e as condutas indicadas para prevenir e controlar estas complicações.

 

Materiais e método

O presente estudo constitui-se em uma revisão de literatura nas bases de dados Pubmed/Medline que recuperou artigos completos publicados entre 1999 e 2010 nos idiomas inglês, português e espanhol, com as combinações das seguintes palavras: "hematological malignancies, head and neck cancer, chemotherapy, radiotherapy, oral complications, oral care". Os artigos deveriam conter informações que respondessem às seguintes perguntas: "Quais são as principais complicações bucais decorrentes destes tratamentos?" e "Quais as condutas sugeridas para a prevenção e o controle dessas complicações?"

Foram recuperados 115 artigos, dos quais 63 foram excluídos: 45 não continham as informações necessárias para responder às questões de pesquisa, oito eram publicações com data anterior àquela definida na busca, nove não disponibilizaram o texto completo e um por estar em idioma diferente daqueles previamente definidos. Foram utilizados 52 artigos para a produção deste artigo.

 

Resultados

As complicações bucais mais frequentes e citadas na literatura revisada foram mucosite, xerostomia, candidíase, cárie de radiação e osteorradionecrose, em ordem decrescente de frequência de citação. Nas Tabelas 1, 2 e 3 são descritas as complicações bucais e as condutas recomendadas para três condições observadas. Os números das tabelas indicam o número de vezes em que essa medida foi utilizada na literatura.

As condutas mais frequentemente citadas são aquelas realizadas durante o tratamento antineoplásico, com exceção da cárie de radiação, em que as medidas de prevenção são descritas com mais frequência.

Com relação à mucosite (Tab. 1), as condutas mais frequentes são as sistêmicas e durante o tratamento do câncer, por meio da administração de medicamentos via oral, endovenosa ou intramuscular (antifúngicos, antiviróticos, analgésicos, antiinflamatórios, entre outros), seguido da aplicação de laser. Medidas preventivas antes do tratamento são utilizadas em número significativo, como o controle da placa bacteriana por meio da higiene bucal, o tratamento odontológico e o uso de medicamentos, além da indicação do laser.

Para o controle da xerostomia (Tab. 2) são mais indicadas medidas locais durante o tratamento do câncer, como a utilização de lubrificantes, saliva artificial e gomas de mascar, a administração de medicamentos e aplicação de flúor.

A Tabela 3 mostra as condutas citadas na literatura sobre a cárie de radiação, as quais são concentradas em medidas preventivas da doença cárie antes do tratamento do câncer.

A candidíase é tratada quase exclusivamente durante o tratamento do câncer com medicamentos antifúngicos, via oral ou local. Alguns artigos referiram- se à ocorrência de osteorradionecrose com complicações bucais decorrentes de tratamento antineoplásico. A prevenção dessa condição tem como indicação a realização de tratamento odontológico cirúrgico e restaurador para a eliminação de focos infecciosos e a aplicação de flúor na prevenção da cárie dentária. Durante o tratamento há indicação de analgésicos e antibióticos, anestésicos tópicos e a utilização de câmara hiperbárica.

 

 

 

 

 

 

 

Discussão

Com o tratamento antineoplásico, os pacientes geralmente apresentam uma ou mais complicações bucais que causam perda de qualidade de vida, pois experimentam dor, problemas de deglutição, fonação e comprometimento nutricional pela dificuldade de se alimentar1,2,3,4. Os efeitos colaterais da QM e da RT podem resultar em infecções sistêmicas, pois as lesões bucais podem servir de porta de entrada para micro-organismos oportunistas, quadro que pode ser agravado pelo estado de imunossupressão que muitos pacientes enfrentam durante o tratamento2,5.

A mucosite bucal é a complicação mais frequente entre os pacientes1,6. Quase todos os que recebem RT sozinha ou com QM experimentarão algum grau de mucosite. Trata-se de uma inflamação e ulceração da mucosa, resultado do efeito citotóxico inespecífico da QM e da RT nas células derivadas do epitélio basal da mucosa5, que provoca dor intensa, febre e aparecimento de infecções secundárias. A literatura indica que podem ser utilizadas várias condutas para prevenir e diminuir os efeitos deletérios da mucosite, os quais envolvem a higiene bucal, o tratamento odontológico, a administração de medicamentos de ação sistêmica e a utilização de laser de baixa frequência. Todavia, verificou-se que as condutas se concentram em maior número durante o tratamento antineoplásico, quando o aparecimento das complicações é evidente.

As alterações salivares caracterizadas pela denominação de xerostomia resultam da disfunção das glândulas salivares, ocasionada pelo tratamento antineoplásico2, mas também como efeito colateral de alguns medicamentos utilizados pelos pacientes7. A xerostomia caracteriza-se pela hipossalivação, mas as consequências das alterações da saliva compreendem também modificações na composição, capacidade tampão, concentração de eletrólitos, composição da flora e deficiência de imunoproteínas8. Essas condições salivares aumentam o risco de cárie dentária e de infecções da mucosa, pois a saliva, em condições normais, exerce papel protetor da membrana mucosa contra infecções bacterianas e fúngicas1. A indicação de conduta na literatura consultada para a prevenção dos efeitos da xerostomia é o controle da placa bacteriana por meio da higiene bucal. Durante o tratamento antineoplásico, as principais medidas de controle visam estimular a produção de saliva para aliviar o desconforto do paciente e prevenir a cárie dentária com uso de flúor.

A candidíase bucal ocorre pelo crescimento anormal de fungos da espécie Candida. Esse crescimento é facilitado pelas mudanças histológicas induzidas pela irradiação, que provocam o aparecimento de mucosite e interferem na qualidade e quantidade da saliva9. Manifestam-se visualmente por placas brancas e aveludadas na mucosa da boca e língua e podem ser acompanhadas de sintomatologia dolorosa e ulcerações6. Não é considerada uma infecção que ameace a vida do paciente, mas traz desconforto, pode ser disseminada para o esôfago e compromete a ingestão de alimentos6. A indicação de conduta no manejo da candidíase, em nosso estudo, foi a utilização de medicamentos antifúngicos por via sistêmica predominantemente, motivo pelo qual não foi construída uma tabela.

A cárie dentária pós-radiação é considerada predominantemente um efeito indireto do tratamento antineoplásico, causado pela interação de vários efeitos colaterais relacionados à radiação e, especialmente, pela diminuição do fluxo salivar, levando rapidamente à amputação das coroas e à perda completa dos dentes8. A literatura consultada mostra que as principais condutas são preventivas, concentradas principalmente no controle da placa bacteriana e da cárie dentária, por meio da higiene bucal e uso de flúor.

A literatura consultada registra também a ocorrência de osteorradionecrose como uma complicação do tratamento radioterápico. A exposição de altas doses de radiação dos pacientes que apresentam câncer de cabeça e pescoço afeta, inevitavelmente, a mandíbula. A radiação reduz o potencial de vascularização dos tecidos, o que afeta sua atividade normal e seu potencial de cicatrização10,11,12. Os tratamentos odontológicos invasivos ou mutiladores, como, por exemplo, as exodontias, são considerados de alto risco em pacientes nessas condições. Isso coloca em evidência a necessidade de atuar nessas necessidades antes do tratamento radioterápico.

Importantes considerações relacionadas à saúde bucal dos pacientes portadores de câncer de cabeça e pescoço e de malignidades hematológicas devem ser levantadas. Embora a frequência e a severidade das complicações bucais decorrentes do tratamento do câncer sejam influenciadas por fatores de risco relacionados ao próprio tratamento, como o volume e tipo de radiação, dose total e diária da radiação e da quimioterapia, os fatores de risco relacionados ao paciente devem ser considerados, como idade, gênero, estado bucal e nutricional, microflora oral e estado funcional das glândulas salivares.1,4,7,10

Mesmo sendo difícil prever quais pacientes desenvolverão efeitos colaterais decorrentes do tratamento antineoplásico, é fato que a presença de uma condição bucal deficiente associada à higiene bucal precária contribui para o aparecimento e o agravamento dos sinais e sintomas das complicações bucais4. A execução de tratamento odontológico durante o tratamento do câncer pode expor o paciente, já fragilizado, a mais complicações em razão da possibilidade de exposição de vias de entrada de micro-organismos e comprometimento da cicatrização, como no caso de tratamento endodôntico, periodontal ou de exodontias.

O tratamento odontológico antes do tratamento do câncer é uma medida preventiva que diminuirá os efeitos colaterais presentes nessas situações. Nesta abordagem são necessários os tratamentos restauradores, endodônticos, periodontais, cirúrgicos e de adequação das próteses, de modo que os processos inflamatórios e infecciosos possam ser controlados, juntamente com a adoção de hábitos persistentes e eficazes de controle de placa, capazes de perdurar durante e após o tratamento do câncer.

Nessas condições, o diagnóstico e o tratamento precoce das condições bucais, o acompanhamento das alterações bucais por meio de exames e registros periódicos da mucosa, gengiva e lábios1,13, além da intervenção imediata diante de sinais e sintomas de complicações bucais, resultam na melhora da qualidade de vida dos pacientes.

O quadro apresentado por pacientes submetidos a tratamento do câncer com complicações bucais expõe a necessidade de um trabalho em equipe multidisciplinar4,7. Nessa equipe, a presença do cirurgião-dentista é fundamental, todavia este profissional deve ter uma formação ampliada para o cuidado não só da cavidade bucal, mas também das implicações que permeiam o cuidado em saúde na perspectiva da integralidade da atenção. Observou-se na literatura consultada que pouco ou nada é referido sobre o acompanhamento do paciente após o tratamento do câncer. De nada adianta o esforço em prevenir ou tratar lesões específicas sem o olhar do profissional para um cidadão que, espera-se, retorne saudável à sociedade e mantenha e controle de sua saúde.

Não foi propósito desta revisão fazer a análise da evidência de cada uma das medidas preconizadas nas condutas sugeridas pela literatura. Outros estudos devem ser efetuados para que os profissionais possam tomar as melhores decisões diante das situações levantadas nesta revisão.

 

Conclusão

Este estudo mostra que as principais complicações bucais decorrentes de tratamentos de câncer de cabeça e pescoço e de malignidades hematológicas documentadas na literatura consultada são previsíveis. É de fundamental importância o diagnóstico precoce das alterações, o manejo correto das condutas durante todos os estágios do tratamento, efetuado de forma multiprofissional. Todos os esforços devem ser dirigidos para que a qualidade de vida dessas pessoas antes, durante e depois do tratamento seja a melhor possível.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
João Luiz Pozzobon
Rua Travessa Farroupilha, nº 235, Km 03
97095-170 Santa Maria - RS

e-mail:
joaoluiz_pozzobon@hotmail.com

 

Recebido: 11.08.2011
Aceito: 01.11.2011