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RFO UPF

versão impressa ISSN 1413-4012

RFO UPF vol.18 no.3 Passo Fundo Set./Dez. 2013

 

 

Análise microbiológica do soro fisiológico utilizado no tratamento endodôntico

 

Microbiological analysis of sterile saline solution used in endodontic treatment

 

 

Giselle Priscilla Cruz Abi-RachedI;Geovânia Caldas AlmeidaII;Alexandre Augusto ZaiaIII;Caio Cezar Randi FerrazIII;José Flávio Affonso de AlmeidaIV; Brenda Paula Figueiredo de Almeida GomesV

I Doutoranda na área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – Universidade Estadual de Campinas (FOP/Unicamp)
II Bióloga e estagiária da área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – Universidade Estadual de Campinas (FOP/Unicamp)
IIIProfessor associado da área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – Universidade Estadual de Campinas (FOP/Unicamp)
IVProfessor doutor da área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – Universidade Estadual de Campinas (FOP/Unicamp)
VProfessor titular da área de Endodontia da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – Universidade Estadual de Campinas (FOP/Unicamp)

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

Objetivo: analisar a contaminação do soro fisiológico (SF) utilizado como substância irrigadora no tratamento endodôntico (TE). Materiais e método: amostras de 1 mL de soro fisiológico foram coletadas em tubos tipo Eppendorf. Vinte coletas microbiológicas foram realizadas em seis diferentes situações: Grupo I (GI) - logo após a abertura da embalagem de SF; Grupo II (G II) - após verter o soro na cuba endodôntica; Grupo III (G III) - no momento do 1º preenchimento da seringa irrigadora; Grupo IV (G IV) - do SF ainda contido na embalagem ao final do tratamento; Grupo V (G V) - do remanescente de SF da cuba endodôntica após o TE; e Grupo VI (G VI) - da seringa irrigadora ao final do TE. Cento e vinte amostras foram processadas e incubadas, e as colônias, identificadas por meio de testes bioquímicos. Foi verificado o crescimento microbiano em 20% das coletas no G I, em 30% no G II, 55% no G III, 50% no G IV, 90% no G V e 90% no G VI. Resultados: a análise estatística feita pelos testes de Kruskal-Wallis e Dunn demonstrou contaminação mais frequente nas amostras dos Grupos V e VI em relação aos Grupos I e II (p < 0,05). O microrganismo mais frequentemente encontrado foi Staphylococcus spp. com 79%. Conclusão: o soro fisiológico pode ser contaminado durante o seu uso na prática endodôntica.

Palavras-chave: Remoção de contaminantes. Microbiologia. Endodontia.


 

ABSTRACT

Objective: to analyze the contamination of sterile saline solution (SS) used as irrigant substance in endodontic treatment (ET). Materials and method: samples of 1 mL of SS were collected in Eppendorf-type tubes. Twenty microbiological samples were collected in 6 different situations, as follows: Group I (G I) - soon after the opening of the SS packing; Group II (G II) - after pouring the SS in the endodontic bowl; Group III (G III) - at the moment of the first filling of the irrigating syringe; Group IV (G IV) - from the SS still inside the packing to the end of the treatment; Group V (G V) - from the remaining SS in the endodontic bowl after ET; Group VI (G VI) - from the irrigating syringe to the end of ET. One hundred and twenty samples were processed, incubated, and colonies were identified by means of biochemical tests. Microbial growth was verified in 20% of the samples collected from G I; 30% from G II; 55% from G III; 50% from G IV; 90% from G V, and 90% from G VI. Results: the statistical analysis performed by the Kruskal-Wallis and Dunn tests showed most frequent contamination for Groups V and VI in relation to Groups I and II (p < 0.05). The most frequently found microorganism was Staphylococcus spp., with 79%. Conclusion: it was concluded that the sterile saline solution may be contaminated during its use in endodontic treatment.

Keywords: Removal of contaminants. Microbiology. Endodontics.


 

 

Introdução

O tratamento dos canais radiculares visa a eliminar e prevenir a infecção e a reinfecção por microrganismos1. O preparo mecânico, auxiliado pela utilização de substâncias químicas auxiliares (SQA) e irrigantes dos canais radiculares, é de grande importância na terapia endodôntica por promover a remoção de tecido pulpar e restos necróticos, microrganismos presentes, debris de dentina e smear layer2.

Tanto as substâncias químicas auxiliares quanto os agentes irrigantes desempenham papéis fundamentais na terapêutica endodôntica, sendo utilizados de modos e em momentos distintos. As substâncias químicas auxiliares desempenham ações químicas, físicas e biológicas concomitantemente à ação mecânica dos instrumentos endodônticos, podendo ser empregadas na forma líquida, em gel ou em creme3. Já os irrigantes apresentam-se apenas na forma de soluções, uma vez que a irrigação é representada por uma corrente líquida no interior da cavidade pulpar4, com o objetivo de manter em suspensão os remanescentes necróticos, restos pulpares e debris de dentina, facilitando sua remoção por meio de aspiração.

A irrigação tem um papel fundamental na determinação do sucesso da terapêutica endodôntica5. Muitos estudos demonstraram que a quantidade de debris encontrados é maior em canais preparados sem irrigação6. Na técnica preconizada pela Faculdade de Odontologia de Piracicaba - Unicamp, a substância química auxiliar de escolha é a clorexidina 2% em gel por suas propriedades antimicrobianas, lubrificante, substantividade, diminuição da formação de smear layer, baixa citotoxicidade, entre outras7-9. O agente irrigador é o soro fisiológico, por promover a suspensão de partículas, favorecendo, assim, a sua remoção, e por diminuir o risco de reações químicas entre as substâncias químicas auxiliares empregadas.

De acordo com Byströn e Sundqvist2 (1981), canais preparados manualmente utilizando apenas o soro fisiológico tiveram uma redução de 53,4% de células bacterianas da luz do canal. Berber et al.10 (2006), em um estudo avaliando a redução de E. faecalis por meio de diferentes substâncias auxiliares e técnicas, verificaram a redução de 99% de células bacterianas também da luz do canal quando da utilização do soro fisiológico em todas as técnicas testadas. Martinho et al.11 (2010) verificaram redução de 96,27% do conteúdo endotóxico dos canais radiculares com polpa necrosada, usando irrigação com salina estéril/apirogênica e instrumentação rotatória com limas de níquel-titânio do sistema Mtwo (VDW GmbH, Munique, Alemanha).

O soro fisiológico utilizado na terapêutica endodôntica tem de ser estéril, uma vez que seu uso em condições impróprias pode servir de via de infecção ou reinfecção do sistema de canais radiculares. Entretanto, o soro pode ser contaminado pelo simples procedimento da abertura de sua embalagem, pela exposição na cuba endodôntica durante o tratamento endodôntico e durante o preenchimento de seringas irrigadoras.

O objetivo do presente estudo é avaliar e identificar a contaminação microbiológica do soro fisiológico durante o tratamento de canais radiculares.

 

Sujeitos e método

Amostras de 1 mL de soro fisiológico foram coletadas em condições assépticas em tubos tipo Eppendorf de 1,5 mL (Cral, São Paulo, SP, Brasil), com o auxílio de micropipeta (Nichipet, Nichiryo Co. Ltd., Tóquio, Japão), durante 20 tratamentos endodônticos realizados na Clínica de Graduação da Faculdade de Odontologia de Piracicaba, Unicamp, nas seguintes situações:

• na abertura da embalagem de soro;
• do soro dispensado inicialmente na cuba endodôntica;
• do soro presente na seringa endodôntica de irrigação no início do tratamento;
• do soro remanescente na cuba ao final do tratamento endodôntico;
• do soro presente na seringa endodôntica de irrigação no final do tratamento;
• na embalagem aberta durante todo o tratamento.

O processamento das amostras foi realizado no Laboratório de Microbiologia da disciplina de Endodontia da FOP/Unicamp.

No laboratório, cada tubo contendo a amostra foi agitado por 60 segundos no agitador tipo vortex (MA 162-MARCONI, São Paulo, SP, Brasil) para facilitar a dispersão dos microrganismos. A seguir, alíquotas de 50 μl de cada amostra foram plaqueadas nos seguintes meios de cultura:

• placas de ágar MacConkey para seleção de enterobactérias, incubadas em CO2 a 37 °C por 2 dias;
• placas de ágar Sabouraud-Dextrose acrescido de 0,1% de cloranfenicol para a seleção de leveduras, incubadas a temperatura ambiente (± 25 °C) por 4 dias e depois incubadas em 10% CO2 a 37 °C por 2 dias;
• placas contendo 5% de sangue de carneiro + Brain Heart Infusion (BHI) ágar (Oxoid, Basingstoke, UK), aerobicamente a 37 °C, por 2 dias, para permitir o crescimento de microrganismos facultativos.

Após a incubação, cada placa foi examinada e os diferentes tipos de colônia foram subcultivados em placas de BHI + 5% de sangue de carneiro desfibrinado recém-preparadas. As colônias foram selecionadas para a identificação inicial através das diferentes aparências nos meios ricos e seletivos. O reconhecimento morfológico das colônias foi feito de acordo com: tamanho, cor, forma, elevação, borda, superfície, textura, consistência, opacidade. As colônias puras foram inicialmente identificadas pela morfologia da coloração de Gram, requerimentos gasosos e habilidades de produzir catalase. A identificação das espécies foi realizada por meio dos testes bioquímicos padronizados, apropriados para identificação de cada espécie, como descrito a seguir.

Identificação microbiana

Os seguintes kits bioquímicos padronizados foram utilizados para a especificação primária dos microrganismos isolados:
• Rapid ID 32A (BioMérieux SA, Marcy-l'Etoile, França) para os bastonetes Gram-negativos e Gram-positivos, anaeróbios obrigatórios/facultativos;
• API Staph (BioMérieux SA, Marcy-l'Etoile, França) para os estafilococos e micrococos (cocos Gram-positivos, catalase positiva);
• API Strep (BioMérieux SA, Marcy-l'Etoile, França) para os estreptococos (cocos Gram-positivos, catalase negativa);
• API AUX (BioMérieux SA, Marcy-l'Etoile, França) para identificar espécies de Candida.

Análise estatística

Os testes de Kruskal-Wallis e Dunn, com o nível de significância de 5%, foram utilizados para verificar os grupos que apresentaram maior frequência de contaminação.

 

Resultados

Foi verificado o crescimento microbiano em 20% na coleta inicial realizada imediatamente após a abertura da embalagem do soro fisiológico (G I), 30% nas amostras obtidas do soro da cuba endodôntica ao início do tratamento (G II), 55% nas amostras do soro da seringa irrigadora ao início do tratamento (G III), 50% na coleta final realizada na embalagem que ficou aberta durante todo o tratamento endodôntico (G IV), 90% na coleta do soro presente na cuba endodôntica ao final do tratamento endodôntico (G V) e 90% na coleta do soro presente na seringa irrigadora ao final do tratamento endodôntico (G VI). A análise estatística pelos testes de Kruskal-Wallis e Dunn demonstra contaminação mais frequente nas amostras dos Grupos V e VI em relação aos Grupos I e II (p < 0,05) (Fig. 1).

 

 

 

Staphylococcus spp. foi o microrganismo mais encontrado nas amostras, atingindo uma porcentagem de 79% (Tab. 1).

 

 

 

Discussão

O controle microbiano está intimamente relacionado ao sucesso do tratamento endodôntico12. Em situações clínicas, o tratamento endodôntico objetiva a eliminação de microrganismos por meio da associação de preparo biomecânico, irrigação com diferentes soluções e uso de medicação intracanal quando necessária13. Como foi observado no presente estudo, o soro fisiológico utilizado na irrigação de canais radiculares não permaneceu estéril durante todo o procedimento endodôntico. Em todas as situações testadas, o irrigante mostrou-se passível de contaminação. Essa contaminação, de acordo com que foi verificado, ocorreu principalmente após o momento em que a embalagem foi aberta, tendo o remanescente de soro na cuba e na seringa, após o tratamento, se mostrado significativamente mais contaminado em relação às amostras obtidas inicialmente no frasco e na cuba.

Apesar de terem sido encontrados vários microrganismos, Staphylococcus spp., um gênero de bactérias muito encontrado na pele, foi observado em maior número, numa porcentagem de 79%. Delboni14 (2006) isolou Staphylococcus spp. em 50% de canais radiculares com crescimento microbiano de dentes com insucesso do tratamento endodôntico. Tal incidência alerta-nos sobre a necessidade da manutenção da cadeia asséptica durante toda a terapêutica endodôntica, diminuindo, assim, as chances de insucesso.

Dessa forma, fica implícita a necessidade de medidas assépticas, tais como: a) esterilização da cuba endodôntica; b) aquisição de embalagens de soros fisiológicos estéreis, em pequenas quantidades (250 mL), com tampa, para que a embalagem seja mantida fechada durante o procedimento; c) abertura da embalagem apenas no momento de seu uso; d) descarte do soro fisiológico da cuba e da embalagem após a finalização do tratamento (para evitar o reaproveitamento); e) desinfecção das seringas irrigadoras com gaze estéril embebida em um agente de desinfecção (ex. clorexidina 2%) antes do seu preenchimento, para que seja evitada a contaminação do soro fisiológico contido na cuba endodôntica.

A possibilidade de utilizar um irrigante com propriedades antimicrobianas, como a clorexidina 2% líquida, por exemplo, não deve ser descartada. Entretanto, além do custo elevado, comparado com o do soro fisiológico, outras implicações, tais como reações químicas entre as substâncias químicas auxiliares e esse irrigante, podem ocorrer 9,15.

 

Conclusão

O soro fisiológico pode ser contaminado durante o seu uso na prática endodôntica.

 

Agradecimentos

Este trabalho teve o apoio do CNPq (302575/ 2009-0) e da Capes.

 

Referências

1. Byström A, Sundqvist G. Bacteriologic evaluation of the effect of 0.5 percent sodium hypochlorite in endodontic therapy. Oral Surg Oral Med Oral Pathol 1983; 55(3):307-12.         [ Links ]

2. Byström A, Sundqvist G. Bacteriologic evaluation of the efficacy of mechanical root canal instrumentation in endodontic therapy. Scand J Dent Res 1981; 89(4):321-8.

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5. Torabinejad M, Walton RE. Endodontia: princípios e prática. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2010.

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14. Delboni MG. Identificação de microrganismos presentes na saliva, na coroa e no canal radicular de dentes associados ao insucesso endodôntico e suscetibilidade antimicrobiana de Enterococcus faecalis isolados dos canais radiculares [Dissertação de Mestrado]. Piracicaba: Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Universidade Estadual de Campinas; 2006.

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Endereço para correspondência:
Brenda P. F. A. Gomes
Departamento de Odontologia Restauradora – Área de Endodontia
Faculdade de Odontologia de Piracicaba – FOP/Unicamp
Av. Limeira, 901 - Bairro Areião 13.414-018 Piracicaba - SP

e-mail:
bpgomes@fop.unicamp.br

 

Recebido: 03/07/2013.
Aceito: 28/10/2013.