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Arquivos em Odontologia

versão impressa ISSN 1516-0939

Arq. Odontol. vol.47 no.2 Belo Horizonte Abr./Jun. 2011

 

 

Conhecimento de graduandos, pós-graduandos e docentes de Odontologia em relação à bioética

 

Knowledge of undergraduate students, graduate students, and Dental School professors regarding bioethics

 

 

Letícia Ferreira dos SantosI; Letícia Oliveira ToninI; Ricardo Henrique Alves da SilvaI

I Departamento de Clínica Infantil, Odontologia Preventiva e Social, Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

Contato: leticia.ferreira.santos@usp.br, leticia.tonin@usp.br, ricardohenrique@usp.br

Autor correspondente

 

 


 

RESUMO

Objetivo: Verificar o conhecimento de graduandos, pós-graduandos e docentes no que se refere às atividades de pesquisa científica em Odontologia e sua relação com a Bioética. Materiais e Métodos: Foram selecionados alunos de graduação, pós-graduação e docentes, perfazendo 10 sujeitos de pesquisa para cada grupo especificado, em cada um dos cursos de Odontologia da Universidade de São Paulo, para aplicação de questionário objetivo. Resultados: Com relação à assinatura de termo de consentimento para realização de fotos em pacientes, 46,7% (graduandos), 39,3% (pós-graduandos) e 42,6% (docentes) afirmaram não solicitar autorização, embora reconheçam a necessidade de assinatura do mesmo antes do início do tratamento, relatando existir, quando da participação em pesquisas, termo de autorização. Conclusões: Os alunos de graduação e pós-graduação, bem como os docentes das unidades de Odontologia estudadas, demonstraram possuir conhecimentos básicos sobre os aspectos relacionados à Bioética e Ética em pesquisa com seres humanos.

Descritores: Ensino. Bioética. Odontologia.


 

ABSTRACT

Aim: To check the knowledge of undergraduate and graduate students, as well as professors, concerning scientific research activities and their relationship with Bioethics. Materials and Methods: Undergraduate students, graduate Students, and Dental School professors were selected and an objective questionnaire was applied. The research subjects were divided into specific groups (n=10) from each course within the School of Dentistry at the University of São Paulo. Results: Concerning the signing of a consent form to take pictures of the patients, 46.7% (undergraduates), 39.3 (graduate students), and 42.6 (professors) do not ask for any authorization. However, they are aware that they must have the patient's signature before beginning the treatment, claiming that this authorization already exists within the consent form signed by the patient to participate in the study. Conclusions: It can be concluded that in the analyzed sample, undergraduate and graduate students, as well as professors from the three Dentistry courses, have an overall knowledge of the aspects related to Bioethics and Ethics in research that deals directly with human beings.

Uniterms: Teaching. Bioethics. Dental schools.


 

 

INTRODUÇÃO

A Bioética pode ser conceituada como o estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e dos cuidados da saúde, empregando uma variedade de metodologias, analisando os argumentos morais a favor e contra determinadas práticas humanas que afetam a qualidade de vida e o bem-estar de todos os seres vivos, bem como a qualidade dos seus ambientes1. Desta forma, a Bioética deve ser uma disciplina capaz de rastrear o desenvolvimento científico com consciência ética e isento de interesses particulares2.

Com o desenvolvimento de novas tecnologias aplicadas à saúde, os envolvidos na pesquisa com seres humanos são confrontados com os mais variados dilemas morais e o paradigma da ética tradicional não é capaz de oferecer soluções para as novas situações apresentadas pela contínua evolução da ciência e os problemas daí resultantes3. O pluralismo da sociedade humana atual, a complexidade dos problemas de saúde e a sofisticação da tecnologia impõem ao sistema educacional a necessidade de se repensar a sua função como agente facilitador e promotor do desenvolvimento da capacidade do aluno para tomar decisões4.

Neste sentido, o ensino de bioética tem, no bojo de sua função social, um duplo desafio pedagógico: prover o estudante da chamada "caixa de ferramentas" da Bioética e promover, com este estudante, a prática da reflexão crítica permanente acerca dos conflitos morais com os quais, provavelmente, irá se deparar na sua prática profissional5.

Os valores do profissional são, em grande parte, construídos durante a sua formação como estudante e com forte influência da relação professoraluno6. Desta forma, a dimensão moral da relação docente-discente preanunciaria a futura dimensão moral da relação profissional-paciente, que seria, no mercado de trabalho, permeada por muitos dos valores construídos e praticados durante a formação5. Tendo em vista que ensinar é uma atividade política e ética que exige grande responsabilidade do docente, os alunos se miram e espelham seus mestres e anseiam por seus saberes7. E, desta forma, a Bioética deve tornar-se uma das principais preocupações no desenvolvimento do pesquisador brasileiro, a fim de adequar sua formação às necessidades contemporâneas3.

O presente trabalho objetivou verificar o conhecimento de graduandos, pós-graduandos e docentes quanto às atividades de pesquisa científica e sua relação com a Bioética.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (FORP) da Universidade de São Paulo (USP), pelo Processo n° 2009.1.519.58.8 (CAAE n° 0043.0.138.000-09).

Foram selecionados, de cada faculdade de Odontologia da USP, em três grupos distintos, alunos de graduação em Odontologia realizando Iniciação Científica, alunos de Pós-Graduação - nível mestrado ou doutorado e Docentes - inseridos em orientação de Iniciação Científica e/ou Pós-Graduação, perfazendo 10 participantes para cada grupo de pesquisa.

A amostragem probabilística, no caso do grupo "Docentes", foi realizada a partir de sorteio entre todos os professores de cada faculdade de Odontologia da USP (Bauru, Ribeirão Preto e São Paulo). No caso dos grupos "Graduandos" e "Pós- Graduandos", por meio de sorteio a partir da listagem disponibilizada no momento da visita presencial em cada uma das instituições abordadas. Desta forma, totalizaram-se 30 participantes por faculdade de Odontologia da USP, sendo a amostra total composta por 90 indivíduos.

O critério de inclusão foi condicionado à correta compreensão dos objetivos e métodos da pesquisa, bem como da aceitação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. O instrumento utilizado para a coleta dos dados foi um questionário objetivo. Posteriormente foi realizada a análise dos dados por meio de estatística descritiva.

 

RESULTADOS

A Tabela 1 destaca que, tanto alunos de graduação, pós-graduação e docentes afirmaram já terem realizado fotos em pacientes das clínicas das faculdades analisadas. Dentre eles, verificou-se que uma parcela relatou não solicitar assinatura de termo de consentimento para realização do registro fotográfico.

 

 

 

Na Tabela 2 observou-se que os indivíduos pesquisados conhecem a necessidade de assinatura de termo de consentimento, por parte do paciente, antes do início do tratamento. Com relação à existência, neste mesmo termo de autorização para tratamento odontológico, para a participação em pesquisas, 44,4% dos docentes, 86,7% dos alunos de graduação e 79,2% dos alunos de pós-graduação responderam afirmativamente.

A Tabela 3 destaca o percentual de alunos de graduação, pós-graduação e docentes que afirmaram já terem apresentado algum trabalho científico contendo fotos de pessoas. Dentre os que responderam afirmativamente a essa questão, revela se foi utilizado algum método de não identificação do indivíduo e indica sobre a existência ou não de parecer do Comitê de Ética.

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

No Brasil, apenas em 1988 o Conselho Nacional de Saúde (CNS) estabeleceu normas para pesquisas com seres humanos, com fundamentação nos principais documentos internacionais, nas disposições da Constituição da República Federativa do Brasil e na legislação brasileira correlata. Em 1996 foram regulamentadas as normas em pesquisa envolvendo seres humanos (Resolução 196/96 do CNS), estabelecendo-se os princípios básicos para apreciação ética dos protocolos de pesquisa, e criando-se os CEPs e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)8, com o objetivo principal de garantir o respeito à pessoa, a qual se estende não só ao sujeito da pesquisa, ao pesquisador e à equipe de pesquisa, mas também à sociedade como um todo9. E, nesse sentido, com relação à ética em pesquisa e à proteção aos participantes da pesquisa, o Brasil ocupa, atualmente, posição de destaque na América Latina, pois possui regulamentações bem definidas que tratam sobre esta questão e que são contempladas na Resolução 196/96 e complementações10.

Tendo em vista a interface ensino odontológico e pesquisa científica, todo projeto de pesquisa envolvendo seres humanos (direta ou indiretamente) deve ser submetido à apreciação de um CEP, o qual contribui para a qualidade das pesquisas e para a discussão do papel da pesquisa no desenvolvimento institucional e social da comunidade. Além de exercer papel consultivo, o CEP desenvolve também um papel educativo visando assegurar a formação continuada dos pesquisadores da instituição e promover a discussão junto à comunidade9.

Com o intuito de proteção ao sujeito de pesquisa e seguindo os princípios da Bioética, nos trabalhos envolvendo uso de imagem de pessoas, é recomendada e necessária a autorização por um CEP, ainda que em relatos de caso, sendo importante ressaltar que, para todo tipo de pesquisa envolvendo seres humanos a ser realizada, deverá ser feito obrigatoriamente o encaminhamento do protocolo de pesquisa para o CEP da instituição. Apenas após aprovação do protocolo é que o estudo poderá ser realizado. Isto é válido para os mais diversos métodos e formatos em pesquisas com seres humanos (experimental, revisão de prontuários, análise anátomo patológica, levantamento genético, levantamento social, levantamento epidemiológico, pesquisas envolvendo somente questionários, dentre outros)9.

A maioria dos entrevistados relatou já ter apresentado algum trabalho científico com fotos de pessoas e indicaram, como principal meio para preservar a identidade e a privacidade do sujeito de pesquisa, a utilização de tarja preta ou deformação de imagens, evidenciando, assim, o princípio de beneficência que se traduz em não causar danos, extremar os benefícios e minimizar os riscos. Quando se utilizam tais recursos, o pesquisador visa proteger o participante de qualquer risco que aquela exposição poderá causar11. No entanto, a justificativa para a não utilização de nenhum tipo de "barreira" perante um possível prejuízo no entendimento do caso clínico, pois a área de interesse seria a ocupada pela deformação, apenas pode ser aplicada e aceita mediante autorização de uso de imagem por parte do sujeito da pesquisa.

Outro aspecto importante verificado no presente estudo refere-se à realização de fotografias durante o tratamento. A grande maioria dos entrevistados afirmou já ter realizado fotos (alunos de graduação - 57,8%; pós-graduação - 66,7%; docentes - 85,9%). Porém, nos três níveis pesquisados (alunos de graduação - 46,7%; pósgraduação - 39,3%; docentes - 42,6%) foi relatada a não solicitação de autorização para realizá-las. Essa realidade contraria o Biodireito, que vem a ser um conjunto de regras referentes ao corpo humano em relação a muitos aspectos, entre eles a privacidade e confidencialidade12. O fato parece indicar, de forma consensual, que a formação médica, entre outras formações da área na saúde, "é inadequada e incapaz de formar indivíduos com a adequada competência ética"13, e a ausência de disciplinas específicas14 nos currículos das faculdades destinadas a discutir os problemas éticos em pesquisa com seres humanos podem, em parte, justificar esses resultados.

No ensino odontológico, o docente tem como desafios15: transmitir conhecimentos a partir de uma visão interdisciplinar num âmbito cada vez mais amplo e complexo de temas; modificar atitudes e comportamentos; incidir na relação profissionalpaciente e na mudança dos modelos de assistência em saúde. Além disso, deve transmitir os valores éticos mais apropriados e necessários para os profissionais da saúde e para a sociedade em geral. A Bioética é, por um lado, um tema que mobiliza as pessoas de maneira geral e, por outro, pode envolver conflitos e interesses diversos. Muitos profissionais consideram-se aptos a discutir e a ensinar Bioética16.

Desta forma, pode-se dizer que o ensino de bioética é ainda um desafio para a educação brasileira5. Conforme estudo realizado em 2004, 45% dos programas de pós-graduação em Odontologia do Brasil não oferecem qualquer tipo de ensino da Bioética3. De acordo com Rego et al.17 há disciplinas de Bioética para a graduação em quase todas as universidades públicas brasileiras e em alguns programas de mestrado e doutorado, e os cursos de graduação e de pós-graduação das instituições abordadas nesta pesquisa apresentam disciplinas básicas em que são discutidos temas da Bioética.

Avaliando formandos de um curso de Odontologia, Freitas et al.18 identificaram, a partir de um dilema ético hipotético, que mais da metade dos alunos ingressará no mercado de trabalho sem ter muita certeza de como irão pautar as suas decisões profissionais a partir de valores morais. Amorim19 afirmou que falta ao ensino da ética o caráter de transdisciplinaridade, uma vez que essa temática é trabalhada em disciplinas, muitas vezes tardias, ao final do curso e que assumem uma abordagem de caráter apenas deontológico, determinando uma concepção normativa da Ética na formação do profissional.

Nesse sentido, Matos & Tenório20, em trabalho realizado em dois cursos de Odontologia do Estado da Bahia, observaram que quase a totalidade dos alunos responderam que o curso estimula a dimensão ética e, a partir dos depoimentos obtidos foi possível reconhecer quatro abordagens feitas: (1) percebem a importância dessa dimensão na formação acadêmica e reconhecem que o curso a valoriza; (2) evidenciam em suas falas conhecimentos acerca dos princípios da Bioética; (3) reconhecem que a maioria das disciplinas e dos professores se preocupa com essa dimensão da formação e aborda temas relativos à ética, tanto na teoria como na prática; (4) ainda que a maioria dos alunos reconheça que esses são temas evidenciados pelos professores, muitos deles chamam a atenção para o fato de que existem professores que não aparentam se importar com essas questões e denunciam a falta de ética por parte de alguns.

O conceito de Ética no cotidiano do ensino odontológico, portanto, precisa também ser ampliado de uma ética profissional, codificada em obrigações e direitos, para uma "ética do gênero humano, visando a aprender um saber-ser e não somente um saber-fazer"21. De acordo com Morin22, alcançar esta ética implica que a educação assuma a concepção complexa do ser humano, comportando a tríade indivíduo/sociedade/espécie.

 

CONCLUSÃO

De acordo com os resultados obtidos, os alunos de graduação e pós-graduação, bem como os docentes das três faculdades de Odontologia estudadas, demonstraram possuir conhecimentos básicos sobre os aspectos relacionados à Bioética e Ética em pesquisa com seres humanos.

 

REFERÊNCIAS

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22. Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, Brasília: UNESCO; 2002.

 

 

Autor correspondente:
Ricardo Henrique Alves da Silva
Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto - USP
Departamento de Clínica Infantil, Odontologia Preventiva e Social
Avenida do Café, s/n, Bairro Monte Alegre
CEP: 14040-904 - Ribeirão Preto - SP - Brasil

E-mail: ricardohenrique@usp.br

Recebido em 09/12/2010 - Aceito em 06/04/2011