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Arquivos em Odontologia

versão impressa ISSN 1516-0939

Arq. Odontol. vol.50 no.2 Belo Horizonte Abr./Jun. 2014

 

 

A integralidade, a partir do acolhimento, nas práticas de ensino clínico em uma faculdade de Odontologia

 

Comprehensiveness, beginning with embracement, in the clinical practices of a Dental School

 

 

Giselle Cabral da Costa I; Heriberto Fiuza Sanchez I; Viviane Elisângela Gomes II; Efigênia Ferreira e Ferreira II; Andréa Maria Duarte Vargas II

 

I Cirurgião-dentista, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
II Departamento de Odontologia Social e Preventiva, Faculdade de Odontologia da UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Contatos: gikosta@yahoo.com.br, heribertofsanchez@gmail.com, vivigomes_br@yahoo.com.br, efigeniaf@gmail.com, vargasnt@task.com.br

 

 


 

RESUMO

Objetivo: Avaliar o acolhimento na prática assistencial e no projeto pedagógico de um curso de Odontologia. Materiais e métodos: Este estudo foi realizado por metodologia qualitativa, tendo como sujeitos da pesquisa alunos e usuários da instituição, utilizando entrevistas semi-estruturadas, examinadas a partir da análise do conteúdo. Resultados: Os resultados mostraram que o acolhimento está relacionado à disponibilidade de vagas aos usuários, ao relacionamento entre os membros da equipe e em relação à referência e contra referência dos usuários. O acolhimento na prática clínica não apresenta solidez. Conceitos e reflexões acerca do tema permearam os discursos, mas as práticas são principalmente conservadoras e antigas. Conclusão: O acolhimento como atributo da integralidade da atenção ainda é um conceito em construção, uma reflexão que ainda não se concretizou. Observa-se a convivência de elementos a conquistar e alguns já em curso. É necessário que a prática do acolhimento seja objeto de discussão maior na faculdade, teorizando-a e tornando-a uma realidade de modo que todos os segmentos a percebam.

Descritores: Educação em Odontologia. Acolhimento. Pesquisa qualitativa.


 

ABSTRACT

Objective: To evaluate the embracement of patients in healthcare practices and the pedagogical design of a dental course. Methods: This study applied a qualitative method, with the participation of students and users of the institution, using semistructured interviews, examined from the point of view of content analysis. Results: The results showed that embracement is related to space availability for users, to the relationships among the team members, as well as to recommendations and counter-recommendations given by users. Embracement in clinical practice shows no solid foundation. Concepts and reflections on the theme have permeated discourses, but the practices have remained mostly conservative and old-fashioned. Conclusion: Embracement as the attribute of the comprehensiveness of care is still a concept under construction, a reflection that has yet to materialize. What can be observed is the coexistence of elements that have not yet been achieved and some that are already in progress. For the practice of embracement, further discussions are necessary within the Dental School, theorizing it and making it a reality in such a way that all divisions within the school will take notice of it.

Uniterms: Dental education. User embracement. Qualitative research.


 

 

INTRODUÇÃO

O termo integralidade é considerado polissêmico e traz uma série de potencialidades que devem ser cautelosamente tratadas: defini-lo exatamente pode ser um exercício indesejável, uma vez que alguns dos sentidos do termo podem ser omitidos, silenciando inquietações de atores sociais que lutam por uma sociedade mais justa. É necessário um equilíbrio entre a falta de uma definição que englobe as potencialidades do termo e o risco de esvaziamento do mesmo, decorrente da ausência de uma conceituação adequada. A integralidade se posicionaria contrária a atitudes profissionais marcadamente biomédicas, fragmentárias e objetivantes1.

A Constituição Federal Brasileira, embora não cite especificamente a integralidade, aponta como uma de suas diretrizes o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais2. O termo integralidade passou a ser usado oficialmente a partir da Lei 8080, chamada Lei Orgânica da Saúde e nesse momento foi definido como o conjunto contínuo e articulado de ações e serviços, preventivos e curativos, individuais e coletivos, em todos os níveis de complexidade3.

Esse princípio ordenador pode ser entendido a partir de três significados. O primeiro refere-se a atributos das práticas dos profissionais de saúde, numa contraposição à atitude fragmentada que os usuários são atendidos. O segundo diz respeito à organização dos serviços, que devem estar estruturados para realizar uma apreensão ampliada das necessidades da população à qual atendem. Por fim, a integralidade pode ser abordada a partir de configurações de certas políticas específicas, chamadas aqui de políticas especiais, desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde, ou aos problemas de saúde que afligem certo grupo populacional específico1.

A integralidade, como atributo de práticas integrais de saúde e organização de serviço, pode ser entendida a partir de dimensões articuladas como: acolhimento, vínculo/responsabilização e qualidade da atenção na construção dos processos de trabalho e dos modelos tecnoassistenciais. Essas dimensões são apontadas como capazes de avaliar a integralidade4. O acolhimento é reconhecido como a postura do trabalhador de sentir as necessidades do usuário e, na medida do possível, atendê-las ou direcioná-las para o ponto do sistema que seja capaz de responder àquelas demandas5.

O acolhimento, entendido como a humanização das relações entre trabalhadores e serviços de saúde com os usuários, é uma estratégia para inverter a lógica da organização e o funcionamento do serviço de saúde, colocando em primeiro lugar a necessidade dos usuários. Dessa forma garante, a todas as pessoas, acessibilidade universal com escuta e resolutividade e reorganiza o processo de trabalho a partir de uma equipe multiprofissional. A produção da responsabilização clínica e sanitária e a intervenção resolutiva só acontecem quando há a construção de uma relação profissional/paciente com acolhimento, vínculo e responsabilidades compartilhadas6.

O acolhimento "é um dos atributos disparadores de reflexões e mudanças a respeito da forma como se organizam os serviços de saúde"4 e pode ser entendido em diferentes dimensões. A primeira dimensão, acesso aos serviços, liga o acolhimento às circunstâncias de entrada de cada usuário na rede de serviços em seus diferentes níveis de complexidade. A segunda dimensão, postura, pressupõe a forma humanizada com que os profissionais de saúde recebem, escutam e tratam os usuários e suas necessidades, construindo uma relação de confiança e de mútuo respeito. A terceira dimensão, técnica, permite que procedimentos e ações organizadas facilitem o atendimento, a escuta, a aquisição de saberes e a divisão de responsabilidades participativas, resultando em trabalho em equipe e interdisciplinaridade.

É possível observar uma importante mudança de foco da prática de saúde: de uma relação verticalizada de prestação de serviços de saúde para uma relação mais humanizada e usuário-centrada. Esta reflexão produz uma reorganização dos processos de trabalho em saúde e consequentemente repercute nas respectivas instituições de ensino7.

Tradicionalmente, o ensino em Odontologia esteve por muito tempo orientado pelo modelo biomédico8, considerando o paciente como objeto de ensino9,10 sem referenciais éticos e humanísticos em suas práticas pedagógicas e assistenciais11. Assim, são constatadas inadequações na formação profissional para o enfrentamento de um trabalho que é reconhecidamente complexo, a abordagem integral ao indivíduo. Profissionais incompletos são formados para situações complexas, mantendose o desafio para as instituições de ensino12. Dessa maneira, é indispensável redefinir a relação entre os profissionais da saúde e a população. O caminho que pode tornar tal fato possível passa pela graduação desses profissionais dentro de um novo paradigma, adequado ao trabalho no sistema público de saúde13.

Questiona-se, portanto, se a formação universitária teria condições de possibilitar ao novo profissional uma atuação voltada para o enfrentamento desta complexidade. Frente a esse desafio foram criadas importantes ações governamentais como as Diretrizes Curriculares Nacionais14, o Pró-Saúde15 e a própria lei 80803, buscando concretizar politicamente as mudanças necessárias no processo de formação em saúde dos alunos de graduação em Odontologia.

Com base nestes conceitos relativos ao compromisso humano, à questão do processo de ensino-aprendizagem e com base no modelo teórico4, pretende-se ponderar em que nível o princípio de integralidade na sua dimensão acolhimento está realmente sendo utilizado no instrumento pedagógico e como prática assistencial em uma faculdade de Odontologia em Minas Gerais. Esta instituição está implantando seu novo projeto pedagógico, modificado segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais e discutido com toda a comunidade durante vários anos. Esse projeto pedagógico foi concebido para propiciar ao aluno uma compreensão sobre a integralidade das ações em saúde incluindo práticas que ajudem o aluno a perceber sua importância.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Diversas estratégias para avaliação em saúde vêm sendo desenvolvidas nas últimas décadas. Para melhor entendimento e possibilidade de se aprofundar neste universo, a pesquisa qualitativa é indicada, levando em consideração o universo de significados, aspirações e valores dos sujeitos envolvidos. A escolha por esse tipo de pesquisa se deu porque dentre suas aplicações funcionais está a capacidade de avaliação de processos e resultados de propostas pedagógicas16.

O universo deste estudo compreendeu os usuários e alunos das Clínicas Integradas de Atenção Primária (CIAP) de uma faculdade de Odontologia em Minas Gerais. Desde a última reformulação do projeto pedagógico, em 1992, existem cinco CIAP distribuídas do quarto ao oitavo períodos letivos. As CIAP realizam o atendimento clínico em atenção primária e, de acordo com o sistema estabelecido, representam a porta de entrada do usuário às clínicas de atendimento da faculdade. Por esta razão, a CIAP é o espaço prioritário de práticas integrais em saúde, fazendo com que as demais clínicas de especialidades funcionem como referência para encaminhamentos. Foram selecionados como voluntários 5 usuários e 9 alunos das CIAP da faculdade de Odontologia, entre aqueles que quisessem participar, num intervalo de um mês. Os segmentos escolhidos são importantes, pois representam diferentes atores envolvidos no desenvolvimento da prática clínica de ensino.

Foram escolhidos por conveniência, uma vez que a amostra deve ser constituída por quem tem um discurso sobre o assunto16. Muito embora outros atores sejam envolvidos nessa prática, como professores e auxiliares, a opção dessa pesquisa foi avaliar como está o aprendizado da integralidade, na dimensão acolhimento, junto aos alunos, bem como sua prática junto aos usuários.

O método utilizado para obtenção dos dados foi a entrevista gravada, com roteiro estruturado, realizada em local reservado dentro da faculdade. A entrevista permite que o depoente possa ultrapassar a resposta objetiva e direta de determinado tema acessando dados de caráter subjetivo, isto é "idéias, crenças, maneiras de pensar; opiniões, sentimentos; conduta ou comportamento"16. O critério de saturação das respostas obtidas determinou o número de participantes e representou uma lógica social de cada segmento entrevistado17. Um estudo piloto foi aplicado em um participante que não fazia parte da amostra, de cada segmento da pesquisa, para aperfeiçoamento e teste da metodologia.

Para a condução das entrevistas foi confeccionado um roteiro de perguntas que contemplasse aspectos observados na dimensão do acolhimento4, conforme quadro 1. A escolha do marco teórico orientador da metodologia foi definida pela grande capacidade objetiva e esclarecedora com que os autores categorizaram as dimensões da integralidade: o acolhimento, o vínculo e a qualidade da atenção. Estes autores propuseram ainda, como recurso norteador metodológico do contexto de acolhimento, objeto de estudo deste trabalho, a avaliação dos seguintes aspectos (Quadro 1):

 

 

 

Os dados foram examinados a partir de análise de conteúdo, considerada apropriada para as investigações qualitativas na saúde. Para tal, a análise se deu em três etapas. Na primeira etapa foi feita leitura flutuante, exaustiva e repetida dos textos. Na segunda etapa buscou-se apreender temas e categorias centrais relatados18. Todo esse processo foi realizado por três pesquisadores, simultânea e independentemente, com o intuito de permitir diferentes enfoques e abordagens contidas nos dados, objetivando uma análise mais cuidadosa do material. Após discussão entre os pesquisadores, buscou-se consensar os temas.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP-UFMG) sob o protocolo n° 248/08.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados estão descritos de acordo com as categorias adotadas para a avaliação do acolhimento: acesso ao serviço, postura profissional e aspectos técnicos4. Na apresentação das falas, os usuários são identificados por letra (U), bem como os alunos (A).

Com relação à categoria acesso ao serviço, considerou-se para análise os aspectos geográficos e organizacionais, incluindo neste último as idéias centrais sobre o agendamento de consultas, sobre o fluxo de encaminhamentos e sobre o tempo de tratamento.

Os segmentos reconhecem que a proximidade geográfica ajuda no acesso já que o deslocamento dos usuários acontece por meio de transporte coletivo.

"Eu só tomo um ônibus para chegar aqui"(U)
"O deslocamento é fácil porque moro perto".
"Quando venho do meu trabalho pego dois ônibus" (U)
"Normalmente eles vem de ônibus. Eles têm liberdade de justificar as faltas, mas ficam constrangidos de falar de custo de deslocamento" (A)

Esta preocupação quanto ao serviço já foi externada19, quando o parâmetro ideal de proximidade ao serviço de saúde seria uma caminhada de no máximo vinte a trinta minutos. Aspectos como o custo e tempo de espera do transporte coletivo também foram considerados por este autor. No presente estudo, alunos comentam que o custo do deslocamento às vezes impede o comparecimento do usuário, fala não compartilhada pelos usuários. A ideia de que usuários não comparecem por problemas financeiros, que circula há muitos anos entre alunos, pode dificultar a observação de outras causas de faltas e abandono de tratamento, um obstáculo para que outros problemas sejam enfrentados. A distância nem sempre é um obstáculo à busca pelo serviço de saúde uma vez que sabe-se que os usuários tendem a buscar um serviço de saúde no qual eles sejam efetivamente atendidos, pois serviços próximos à sua residência não significam a garantia de atendimento5.

Percebeu-se que a queixa principal dos usuários diz respeito ao número de vagas e a oportunidade para conseguí-las.

"Fiquei sabendo do atendimento por meu cunhado que trata aqui". (U)
"O SUS passou na minha casa e perguntou se eu queria tratar aqui, aí me chamaram com 30 dias". (U)
"Sou mecânico de um professor que me arrumou uma vaga, mas já sabia do atendimento da faculdade". (U)
"Ele vem encaminhado pelo posto de saúde e a faculdade liga marcando". (A)

A instituição do ensino, pesquisada oficialmente, atende a usuários cadastrados no SUS e encaminhados por Centros de Saúde, previamente definidos pelo Serviço Público do município. Existe um questionamento do Conselho Municipal de Saúde quanto a esta territorialização, que define que devem ser atendidos prioritariamente usuários de determinados distritos sanitários do município de Belo Horizonte, que possuem uma escassez de equipes de saúde bucal em alguns de seus bairros, pois existem pessoas fora desta área adstrita que gostariam de ter acesso aos serviços ali ofertados. No entanto observa-se que a porta de entrada não é exclusivamente aquela pactuada com o serviço, já que o privilégio de conhecer alguém que trabalhe na instituição onde a pesquisa foi desenvolvida ou a entrada pela emergência ainda prevalecem.

Mesmo reconhecendo que o fluxo previsto em uma rede de atenção5 não funciona perfeitamente nesta instituição de ensino, os usuários entrevistados não se queixam do referenciamento feito entre as clínicas.

"Meu tratamento já terminou, mas estou aqui hoje para a emergência". (U)
"Trato desde 2003. Meu tratamento começou na Faculdade antiga". (U)
"Já tratei em 3 clínicas. O encaminhamento foi rápido, não foi tão demorado quanto eles falam. Agora estou em manutenção". (U)

Em uma pesquisa realizada nesta mesma instituição10, há 12 anos, foi encontrada uma maior insatisfação quanto à demora do fluxo e para o término dos tratamentos. Esta discordância de resultados pode estar relacionada a diferenças na metodologia aplicada em relação ao nosso estudo, uma vez que as entrevistas realizadas por aquela autora foram no domicílio do entrevistado. Outro aspecto que pode justificar esta diferença de resultados diz respeito a mudanças na estrutura organizacional, ocorridas no Centro de Apoio, Seleção e Encaminhamento do Usuário (CASEU), órgão da instituição pesquisada responsável pela entrada e fluxo dos usuários nas diversas clínicas de atendimento. Algumas alterações internas com maior controle de listas e encaminhamentos ou modificações em metodologias da prática clínica, como o uso de instrumentos rotatórios na endodontia, podem ter contribuído para a redução no tempo de espera dessas listas para as clínicas de referência.

Este pensamento difere da percepção dos alunos que relatam problemas na referência e na contra referência. Os tratamentos se alongam, muitas vezes por não conseguir encaminhamento para clinicas de referência, existe descontinuidade nos atendimentos, algumas vezes com prejuízos irrecuperáveis.

"Acho que o paciente fica bastante tempo tratando aqui na faculdade. A gente pega as fichas e vê que eles estão há muito tempo tratando e retratando" (A).
"O problema é que eles têm necessidade de encaminhamento para clínica de periodontia, endodontia, prótese, dentística e não conseguimos vaga"(A)
"No semestre passado a ficha de uma paciente não foi encaminhada para lugar nenhum, aí ela ficou um ano sem atendimento" (A).
"Já recebi paciente que foi encaminhado errado e ficou um ano esperando e quando eu fui reencaminhar foi muito sofrido, pois a espera causou a quebra e a perda do dente" (A).

Para os alunos, o maior problema do acesso diz respeito ao fluxo e tempo de tratamento dos usuários. Relatam ainda que as clínicas de referência não disponibilizam vagas e que alguns colegas não se comprometem tanto na responsabilidade de encaminhar devidamente seu paciente. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) ressalta a necessidade dos serviços serem oportunos, contínuos, atenderem à demanda real e serem capazes de assegurar o acesso a outros níveis hierárquicos do sistema. Considerando o aspecto funcional do acesso aos serviços, alguns autores5,20 também levantaram a necessidade de existência de oferta de serviços adequados às demandas da população. Neste estudo, percebemos a reflexão dos segmentos quanto à insatisfação do serviço prestado. No entanto, não se sentem responsáveis por alguma mudança que concordam ser necessária.

Os alunos levantam uma questão importante quando relatam a dificuldade dos usuários em se inserir em um tratamento odontológico longo levando em consideração sua rotina de vida e trabalho. Vários fatores são considerados obstáculos à utilização dos serviços como custo, localização, forma de organização, demora para obtenção do atendimento. Estes fatores, inseridos em contextos pessoais de vida e trabalho, infelizmente podem inviabilizar um tratamento21. Ressalte-se que, a preocupação dos alunos quanto a estas dificuldades denota um pouco mais de atenção com o outro e não apenas com a sua atividade clínica.

"Eu queria indicar alguém para tratar, mas é difícil conseguir vaga. Podia disponibilizar mais vagas. Tenho parentes, vizinhos e amigos que não conseguem vaga aqui. Tinha que melhorar". (U)
"Tem paciente que é antigo na faculdade, não sei como foi o acesso dele aqui. Eu já atendi uma paciente que começou o tratamento aqui porque veio na emergência". (A)

Na categoria postura profissional, foram observadas as ideias centrais quanto aos aspectos da escuta, relação profissional-usuário e relação intra equipe.

Para o grupo de usuários o grande problema está na obtenção de informações. Os alunos também reconhecem a deficiência de informação e de recepção deste paciente, mas não se percebem parte do processo e acreditam que a responsabilidade está fora do seu próprio grupo.

"No início eu fiquei meio perdida, mas fui muito bem recebida Não tive informação de como era o tratamento, mas fui bem tratada. Eu acho que a gente precisava de mais informação. (...). Quando alguém me pergunta como é para tratar aqui eu não sei o que dizer. Estou até tentando vaga para o meu filho, mas não sei como fazer". (U)
"Na primeira vez ele fica perdido aí fora, ele tem que comparecer mas não sabe a quem procurar e fica aguardando aí fora ansioso (...). Ele (O USUÁRIO) me perguntou sobre custo e sobre a fila de espera nos encaminhamentos e eu não soube responder. Quando ele começou aqui não foi bem instruído, não sabia que tinha manutenção para fazer, mas foi informado que podem faltar no máximo duas vezes senão perdem a vaga". (A)

Deste modo, nenhum dos segmentos relatou a existência ou inexistência de momentos de escuta. Esta atitude por parte do profissional permite um momento de liberdade para troca de informações. A postura de escuta cria a oportunidade de dar uma resposta às necessidades de saúde trazidas pelo usuário. Uma postura profissional menos formal e indiferente também constrói oportunidades mais profundas de acesso a queixas e expectativas do usuário5,22. Dessa maneira, observou-se que informações sobre a doença, o tratamento indicado e a relação estabelecida entre profissional e usuário são aspectos que podem estar sendo comprometidos pela falta de escuta qualificada.

Alguns relatos eram focados nos diferentes relacionamentos existentes entre os diferentes atores envolvidos, desde aqueles processados entre alunos e usuários e entre diferentes membros, como professores e auxiliares, envolvidos no cuidado aos usuários.

"Eu percebo um bom relacionamento entre todos na clínica". (U)
"Sempre há diálogo. O relacionamento com os usuários é muito bom. No resto da equipe, existe um bom relacionamento na medida do possível. Entre alunos e professores é melhor. Não tenho um bom relacionamento com a professora mas tento contornar para não afetar o paciente. (...) No geral os relacionamentos intra-equipe são satisfatórios". (A)
"Algumas funcionárias da roseta sempre chegam atrasadas e saem mais cedo, mas são funcionárias públicas. Levam tudo para o lado pessoal, não têm espírito de equipe". (A)

Apesar disto, a relação entre os alunos e usuários é considerada satisfatória para os entrevistados. No entanto, os alunos relatam uma dificuldade de relacionamento intra-equipe. Os alunos externaram sua insatisfação com a relação estabelecida entre outros grupos (professores e funcionários) envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. Alunos apontam como problema o descompromisso dos funcionários com o horário de trabalho, causando um sentimento de desrespeito e desvalorização entre esses dois atores. Observa-se uma reprodução de uma hierarquia social vigente, alimentada pelo capitalismo e pela estrutura econômica dos países em desenvolvimento, quase um desejo dos alunos a uma subordinação dos funcionários. Esta hierarquia, quando estabelecida dentro de uma equipe, promove uma relação do poder, de competição, de dominância de saber e de desrespeito, grandes dificultadores da formação e desenvolvimento de equipes23.

É necessário que a equipe se organize e tome medidas para impedir que problemas de relacionamento adquiram maiores proporções. Promover o diálogo entre as pessoas para melhorar a convivência, elevar a motivação da equipe e delinear com todos os membros ações a serem implantadas e objetivos a serem cumpridos são medidas que promovem a integração da equipe e a qualidade da assistência24.

Na categoria aspectos técnicos considerou-se as seguintes ideias centrais: o trabalho em equipe, a capacitação profissional e a aquisição de tecnologias.

Observa-se que a percepção dos usuários se faz a partir de indicadores próprios. Para este grupo há uma integração da equipe, há boa comunicação e há entendimento de que a capacitação dos alunos está em um nível de aprendizado, porém se tranqüilizam com a supervisão de um professor.

"Sempre sinto que é uma equipe que está me atendendo. Acho que há comunicação entre todos eles. (..). Os profissionais sempre discutem juntos o que fazer. Eu às vezes percebo o aluno inseguro mas sempre tem o professor junto e isso é bom. Os equipamentos e produtos são de primeiro mundo. A limpeza de tudo também é visível. Eu acho que a gente precisa do tratamento e eles precisam da gente, então a gente tem que ter paciência para ajudar eles também". (U)

"Alguns professores orientam bem, outros deixam a gente um pouco de lado. O professor tem que seguir o que o coordenador falou. Às vezes uma regra poderia ser temporariamente mudada para beneficiar o paciente, mas falta flexibilidade. Entre professores e alunos a integração para formar equipe é obrigatória, mas em relação aos funcionários poucas vezes isso acontece. Na equipe existe uma hierarquia muito grande. Aqui se manda e obedece. Dentro da clínica há discussão de casos pelos professores, principalmente nas clínicas de patologia, cirurgia e CIAP. Entre as clínicas é muito mais raro, só quando o professor está com muita dúvida e não é da área dele. Não vejo muita troca de experiência entre os professores. Tudo é feito através de encaminhamentos e ainda não existe facilidade para mandar o paciente tratar em outra clínica. Eu faço o melhor que eu posso mas o paciente tem consciência de que é um aluno que está fazendo. O trabalho final é de qualidade mas não o ideal porque a gente está aprendendo". (A)

Os usuários avaliam a qualidade do atendimento quando comparam a experiências clínicas anteriores25. Porém, o usuário também se percebe como parte do ensino quando diz que "tem que ter paciência, pois está ajudando ao aluno", e este dado é de importância para despertar na equipe quais atitudes deveriam ser reavaliadas com o intuito de mudança. Para os alunos, grandes problemas que resultam em uma pobre resolutividade do sistema se encontram nesta dimensão, aspectos técnicos.

Para os alunos, a falta de pontualidade das funcionárias dificulta o rendimento do trabalho. Acreditam ainda, que produzem um trabalho de qualidade exceto quando necessitam de laboratórios terceirizados.

Os alunos apontam um aspecto primordial na dimensão técnica: há falha na comunicação, no trabalho em equipe e na interdisciplinaridade. Esta falha ocasiona uma ausência de integração do corpo docente e conseqüentemente uma deficiência assistencial e pedagógica. Um grande obstáculo para as instituições de ensino em saúde é a ausência de comunicação entre os departamentos, impedindo o desenvolvimento de uma cultura acadêmica interdisciplinar e integralizada26. Teoricamente, integração significa cooperação entre provedores dos serviços assistenciais, ou seja, trabalho em equipe. O trabalho em equipe implica em compartilhar o planejamento, na divisão de tarefas e na colaboração mútua, permitindo uma interação entre os conhecimentos técnicos específicos com a produção de um conhecimento que não seria produzido por nenhum dos profissionais isoladamente27,28. Esta prática multiprofissional com ética inter-disciplinar é fundamental no campo do trabalho e da educação29.

Quanto à aquisição de tecnologias e saberes, nenhum dos grupos relatou explicitamente a necessidade de educação permanente e aquisição de tecnologias leves. A crescente incorporação de tecnologias duras por meio da super especialização na saúde empobreceu aspectos subjetivos da relação profissional-usuário, levando a desvalorização da dimensão cuidadora.

 

CONCLUSÃO

Considerando o tema acolhimento, algumas considerações podem ser feitas, a partir dos relatos analisados. O acesso geográfico pode dificultar o deslocamento das pessoas, mas não foi este o aspecto que parece prejudicar o acolhimento, uma vez que maiores problemas foram percebidos com relação ao aspecto organizacional do acesso. Nesta instituição, o acesso está diretamente correlacionado à disponibilidade de vagas para tratamento. As vagas existem e são limitadas ao número de alunos matriculados por semestre. Alia-se a isto a baixa resolutividade, algumas vezes justificada pelo ensino, que prejudicando o término de tratamentos e o fluxo contínuo de usuários, diminui mais ainda a disponibilidade de vagas. Os usuários por sua vez, não se queixam e se conformam, seja pela "gratuidade" do serviço ou pela qualidade do atendimento, que supõem ser a realidade de uma instituição de ensino. Permanece por um lado, a resignação de um grupo frente à negligência de outro.

As relações e práticas fragmentadas das clínicas de atenção primária e das clínicas de referência também são pano de fundo para nossa avaliação. Foi possível observar relações fragilizadas pela fragmentação do saber que disputam a superioridade e as competências exclusivas dentro da prática clínica. Um novo olhar sobre todos membros da equipe inclusive sobre si mesmo é urgente.

O acolhimento como atributo da integralidade da atenção ainda é um conceito em construção. Na prática, foi possível observar uma reflexão que ainda não se concretizou. Em nosso estudo percebemos a presença de muitos elementos a conquistar e muitos que já estão em curso, no entanto, é necessário que a prática do acolhimento seja objeto de discussão maior na faculdade, teorizando-a e tornando-a uma realidade de modo que todos os segmentos a percebam.

 

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