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Arquivos em Odontologia

versão impressa ISSN 1516-0939

Arq. Odontol. vol.51 no.1 Belo Horizonte Jan./Mar. 2015

 

 

Determinantes do não uso de serviços odontológicos por crianças de cinco anos

 

Individual determining factors of the non-use of dental services by 5-year-old children

 

 

Adriana Benquerer Oliveira Palma I; Raquel Conceição Ferreira II; Andréa Maria Eleutério Barros Martins I; Katyane Benquerer Oliveira Assis III; Danilo Antônio Duarte IV

 

I Departamento de Odontologia, Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Montes Claros, MG
II Departamento de Odontologia Social e Preventiva, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG
III Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL), São Paulo, SP
IV Departamento de Odontopediatria, UNICSUL, São Paulo, SP

Contatos: ferreira_rc@hotmail.com, martins.andreamebl@gmail.com, benquererk@hotmail.com, danilo.duarte@cruzeirodosul.edu.br, adrianabenquerer@ yahoo.com.br

 

 


 

RESUMO

Objetivo: Estudo transversal, que avaliou a prevalência e fatores associados ao não uso dos serviços odontológicos entre crianças de cinco anos de Montes Claros/MG. Foi realizado estudo populacional com amostra probabilística por conglomerados aleatoriamente selecionada. Material e Métodos: A amostra incluiu 997 crianças, que foram submetidas a um exame epidemiológico por examinadores calibrados (kappa > 0,60). Os pais ou responsáveis responderam a um questionário sobre condições socioeconômicas, necessidades percebidas e utilização de serviços odontológicos. Análises bivariada e múltipla empregando Regressão de Poisson Robusta, com estimativa das Razões de Prevalência foram empregadas para testar a associação da variável dependente "uso de serviços odontológicos" e as independentes, segundo Modelo Comportamental de Andersen e Davidson. O programa SPSS 18.0 foi utilizado para análise dos dados. Resultados: Uma proporção de 64,3% (n = 603) nunca usou serviços odontológicos na vida. Houve maior prevalência de crianças que não usaram os serviços odontológicos entre aquelas que não receberam informações sobre como evitar problemas bucais (1,38; IC95% 1,27-1,50), com menor renda (1,73; IC95% 1,22-2,47), filhos de mães com menor escolaridade, que não utilizavam flúor (1,41; IC95% 1,20-1,65) e crianças filhas de mães que não percebiam necessidade odontológica nos seus filhos (1,31; IC95% 1,17-1,47). A prevalência de não uso de serviços odontológicos foi menor nas crianças sem cobertura pela Estratégias de Saúde da Família (ESF) (0,90; IC95% 0,80-1,00) e diminuiu com o aumento do número de dentes decíduos obturados (0,26; IC95% 0,14- 0,47). Conclusão: Houve uma baixa prevalência de uso de serviços odontológicos. Os resultados sugerem uma distribuição desigual no uso de serviços, principalmente determinada por fatores sociais.

Descritores: Estudos transversais. Pré-escolares. Assistência odontológica para crianças.


 

ABSTRACT

Aim: Cross-sectional study that evaluated the prevalence and factors associated with the non-use of dental services among 5-year-old children in Montes Claros, Brazil. Methods: Sample included 997 children who were submitted to clinical exams by calibrated examiners. Parents answered questionnaires about socio-economic conditions, perceived needs, and use of dental services. Bivariate and multivariate analyses (Robust Poisson Regression) tested the association between the "use of dental services" and independent variables according to Andersen's Behavioral Model. The SPSS 18.0 program was used to analyze data. Results: A proportion of 64.3% (n = 603) had never used dental services. There was greater prevalence of children who did not use dental services among those who did not receive information about how to avoid oral problems (1.38; 95% CI 1.27-1.50), with lower income (1.73; 95% CI 1.22-2.47), children of mothers with a lower educational level, who did not use fluoride (1.41; 95% CI 1.20-1.65), and children of mothers who did not perceive their children's dental needs (1.31; 95% CI 1.17-1.47). The prevalence of the non-use of dental services was lower in children without Family Health Strategy (FHS) coverage (0.90; 955 CI 0.80-1.00) and diminished with the increase in the number of filled primary teeth (0.26; 95% CI 0.14-0.47). Conclusion: There was low prevalence of dental service use. The results suggest an unequal distribution in the use of dental services, especially those determined by social factors.

Uniterms: Cross-sectional studies. Child preschool. Dental care for children.


 

 

INTRODUÇÃO

A saúde no Brasil é uma garantia constitucional e apresenta-se como direito a ser garantido pelo Estado, com a universalização da atenção. Neste sentido, o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde deve ser buscado de forma constante1, atenuando as desigualdades entre pobres e ricos. A saúde bucal é parte integrante e inseparável da saúde geral, porém historicamente uma parcela importante da população brasileira enfrentou problemas de acesso a serviços odontológicos, sendo desigual e limitado a determinados grupos etários2.

A atenção odontológica em idades precoces pode contribuir para a prevenção das doenças bucais, reduzindo suas sequelas e o custo com o tratamento3. Historicamente, as crianças de cinco anos foram excluídas do acesso a serviços odontológicos, destinados exclusivamente a escolares. No Brasil, no ano 20004, a saúde bucal foi incluída nas equipes das Estratégias de Saúde da Família (ESF), com o objetivo de reorganização da atenção primária, atendendo às pessoas que residem em determinada área de abrangência, inclusive as crianças. Essa atenção está organizada em redes de atendimento onde a família é o foco da atenção, no ambiente onde vive, permitindo uma compreensão ampliada do processo saúde/doença5. Nesse contexto, o uso de serviços odontológicos configura-se como um comportamento passível de ser adotado entre usuários cadastrados na ESF.

O uso de serviços odontológicos, segundo Andersen & Davidson6, está associado de forma independente a um conjunto de fatores. Os comportamentos de saúde (práticas pessoais e uso formal de serviços) são variáveis intermediárias, precedidas pelos determinantes primários de saúde bucal (ambiente externo, sistema de atenção à saúde bucal e características pessoais) e que antecedem os desfechos de saúde bucal (condição de saúde bucal, percepção da condição de saúde bucal e satisfação com os serviços e ou com a condição de saúde). Esse modelo teórico é dinâmico e as variáveis se interagem de forma mútua, podendo as condições de saúde preceder os comportamentos de saúde, num mecanismo de retroalimentação6,7.

O uso de serviços de saúde é um indicador, embora não se trate de uma avaliação do acesso à atenção à saúde. O estudo dos fatores associados ao uso de serviços permite a identificação da iniquidade, possibilitando orientar o desenho de políticas de saúde que incentivem a procura de atendimento odontológico e/ou a garantia do acesso em idade precoce por parte da população8.

Estudo realizado na Bélgica mostrou que 21% das crianças de 5 anos não haviam procurado o cirurgião-dentista uma única vez9. Enquanto que um estudo americano registrou que 79,0% das crianças nunca foram ao dentista10. No Brasil, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 1998 e 2003 (PNAD/1998/2003), foi observado que 42,9% e 36,8% das crianças de 5 a 9 anos, respectivamente, nunca consultaram o cirurgiãodentista. De modo geral, estudos nacionais mostraram grande variabilidade dos resultados (22,1% a 86,7%) referentes a saúde bucal e uso de serviços odontológicos entre as crianças11,12,13,14,15,16. Porém, somente um único estudo foi conduzido entre crianças de cinco anos, idade índice preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1997, para avaliação da saúde bucal de crianças com dentição decidua16. Torna-se, portanto, fundamental estudar os determinantes desse comportamento em saúde, nesta idade índice.

Diante do exposto, este estudo caracterizou o uso de serviços odontológicos, investigou a prevalência e os fatores associados a não utilização de serviços odontológico por crianças de cinco anos residentes no município de Montes Claros (Minas Gerais, Brasil).

 

MATERIAIS E MÉTODOS

Estudo transversal com uma amostra representativa das crianças de cinco anos participantes do "Projeto SBMOC- Levantamento epidemiológico das condições de saúde bucal da população de Montes Claros, Minas Gerais". Esse projeto foi conduzido com o intuito de representar duas idades índice (cinco e 12 anos) e quatro faixas etárias (18-36 meses, 15-19, 35-44 e 65-74 anos), conforme recomendação da OMS, em 199717. A coleta de dados foi realizada em 2008/2009, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unimontes (Protocolo 318/06). Os responsáveis pelas crianças assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi fruto de parceria entre Unimontes e Prefeitura Municipal de Montes Claros.

População estudada

O universo, segundo resultados do censo conduzido pelo IBGE no ano 2000, foi formado por 7017 crianças16 de cinco anos de idade residentes na cidade de Montes Claros, Minas Gerais. Foi estimada uma amostra complexa, probabilística por conglomerados em dois estágios (setores censitários e quadras), conforme metodologia do SBBrasil 2002/200318. No cálculo amostral, considerou-se a estimativa da ocorrência dos eventos ou doenças bucais em 50% da população, um erro de 5,5%, nível de confiança de 95%, o deff (design effect = efeito de desenho) de 2, uma taxa de não resposta de 20% e a garantia de proporcionalidade por sexo. Após correção para população finita, foi estimada uma amostra final de 729 crianças de cinco anos de idade. As unidades amostrais foram selecionadas em dois estágios: primeiro, por amostragem aleatória simples, foram selecionados 53 dos 276 setores censitários urbanos e duas das 11 áreas rurais. Em seguida, por amostragem aleatória simples, foram selecionadas duas quadras em cada um dos 53 setores. Todos os domicílios das quadras selecionadas foram incluídos e as crianças de cinco anos examinadas. Na zona rural, os residentes em todos os domicílios situados a uma distância de até 500 metros de uma instituição de referência foram convidados a participar18.

Coleta de dados

Inicialmente, foi conduzido um estudo piloto para testar a logística e processo de trabalho dos entrevistadores no campo. Avaliou-se a reprodutibilidade dos instrumentos considerados, assim como, os níveis de concordância dos examinadores. A calibração consistiu da seleção de voluntários, treinamento teórico, treinamento prático, coleta de dados e cálculo da concordância. Trinta e três cirurgiões-dentistas examinaram e reexaminaram os voluntários, utilizando os códigos e critérios propostos pela OMS em 1997. Na estimativa das concordâncias, considerando satisfatórios os níveis ≥ 0,60, utilizaram-se os coeficientes adequados à condição de saúde avaliada: Kappa (condições da coroa dentária e da raiz dentária, necessidade de tratamento dentário, alteração gengival e uso/ necessidade de prótese), Kappa ponderado (fluorose, cálculo e condições periodontais) e o coeficiente de correlação intra-classe (Índice de Estética Dental). Dentre, aproximadamente, 1600 voluntários, 945 foram selecionados. Os participantes do estudo piloto não foram incluídos no estudo principal. Os treinamentos teórico e prático demandaram noventa horas e foram realizados na Universidade Estadual de Montes Claros. Após a coleta de dados (sessenta horas) e cálculo da concordância, constatou-se que, dos trinta e três examinadores, vinte e seis foram considerados aptos a participarem da coleta de dados, dos quais, nove atuaram do início até a finalização e quinze atuaram em algum momento da coleta. Todo o processo de calibração e cálculo dos coeficientes de concordância foram detalhadamente descritos em artigos publicados anteriormente19,20. As coletas do estudo piloto e do estudo principal foram baseadas no "Levantamento Epidemiológico das Condições de Saúde Bucal da População Brasileira", que seguiu as orientações da OMS17.

Os dados foram coletados por meio de entrevistas e exames intrabucais, realizados nos domicílios, em ambiente amplo, sob iluminação natural, com espelho, seguindo as normas de biossegurança preconizadas para investigações epidemiológicas. As informações foram registradas simultaneamente por anotadores treinados, empregando um computador de mão com um programa criado especificamente para a coleta de dados.

Na caracterização do uso de serviços odontológicos, foram avaliadas as seguintes variáveis: tipo de serviço utilizado, o motivo e o tempo desde a última consulta ao cirurgião-dentista, a avaliação do serviço utilizado na última vez, se o usuário recebeu orientações sobre higiene bucal, sobre dieta e sobre como evitar o câncer de boca.

A variável dependente "uso de serviços odontológicos" foi obtida pela resposta à seguinte pergunta: "A criança já foi ao dentista alguma vez na vida?" (sim ou não). As variáveis independentes foram classificadas em três grupos: determinantes primários, comportamentos de saúde bucal e desfechos de saúde bucal segundo modelo teórico de Andersen e Davidson6.

Foi considerada uma única variável exógena, a raça/cor de pele autodeclarada.

Determinantes primários

Ambiente externo: (localização geográfica de residência), sistema de atenção à saúde bucal: (Domicílio cadastrado na ESF; recebeu informações sobre como evitar problemas bucais na criança); Características pessoais: (sexo, renda per capita; escolaridade materna em anos de estudo). A renda per capita foi categorizada considerando o valor do salário mínimo da época (R$415,00/ que correspondia a $191,24). A escolaridade das mães foi categorizada considerando os anos de escolaridade (≤ 4, 5 a 8, 9 a 11 e ≥ 12 anos).

Comportamentos de saúde bucal

Práticas pessoais: número de vezes que limpou os dentes na última semana e uso de suplemento de flúor.

Desfechos de saúde bucal

Condições de saúde bucal: (alteração de tecido mole, experiência de cárie, placa bacteriana, sangramento gengival, cálculo dentário, maloclusão, necessidade normativa de tratamento odontológico, número de dentes decíduos cariados, perdidos e obturados); percepção da condição de saúde bucal: (a mãe acha a boca da criança saudável e a mãe considera que a criança necessita de tratamento odontológico atualmente). Foram avaliadas as cinco superfícies dentárias (vestibular, lingual/palatina, mesial, distal e oclusal) de seis dentes índices (51, 71, 55, 65, 75 e 85), sendo registrada a pior condição observada para cada um dos sextantes na identificação da presença de placa, sangramento e de cálculo. A presença de sangramento gengival foi avaliada considerando a presença de gengivite, por meio do índice de alterações gengivais (AG).

A maloclusão foi avaliada conforme índice preconizado pela OMS17, modificado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em 1996, conforme metodologia adotada no Projeto SB Brasil 200318. As crianças foram classificadas segundo a presença e gravidade da maloclusão em: 00 = oclusão normal, 01 = maloclusão leve (um ou mais dentes com giroversão ou ligeiro apinhamento ou espaçamento prejudicando o alinhamento regular), 02 = maloclusão moderada/grave [efeito inaceitável sobre a aparência facial, redução da função mastigatória, ou problemas fonéticos observados pela presença de uma ou mais das seguintes condições nos quatro incisivos anteriores: Trespasse horizontal maxilar estimado em 9 mm ou mais (overjet positivo); Trespasse horizontal mandibular, mordida cruzada anterior igual ou maior que o tamanho de um dente (overjet negativo); mordida aberta; desvio de linha média estimado em 4 mm ou mais; apinhamento ou espaçamento estimado em 4 mm ou mais].

A avaliação da condição da coroa foi conduzida com o intuito de estimar a experiência de cárie pelo índice ceo-d (dentes cariados, extraídos e obturados)16. Estimou-se o índice assim como o número de dentes: cariados, extraídos e obturados. Foram considerados livres de cárie as crianças com ceo-d=0.

Quanto a Percepção da condição de saúde bucal foi avaliado se a mãe da criança: achava que a boca da criança estava saudável ou se considerava que a criança necessitava de tratamento odontológico no momento da entrevista.

Análise e interpretação dos dados

Foi utilizado o programa estatístico SPSS® (Statistical Package for the Social Science) versão 18.0 para Windows®. Como o estudo envolveu amostra complexa por conglomerados, todas as análises foram realizadas com correção pelo efeito de desenho21.

Inicialmente foi realizada análise descritiva das variáveis consideradas na caracterização do uso de serviços e das variáveis independentes investigadas. As análises descritivas incluíram frequência absoluta (n), frequência relativa com correção pelo efeito de desenho (%) para as variáveis categóricas. Investigou a associação da variável dependente com as independentes por meio das análises bivariadas e Regressão de Poisson Robusta com estimativa das razões de prevalências ajustadas e não ajustadas e os intervalos de 95% de confiança (IC 95%). Entraram no modelo múltiplo, as variáveis associadas à variável dependente com valor de p < 0,25, permanecendo do modelo ajustado as que permaneceram associadas, independente das demais, com valor de p < 0,05.

 

RESULTADOS

Uma amostra de 997 crianças de cinco anos de idade participou do estudo. A taxa de resposta foi de 94,4%. A maioria das crianças (n = 603, 64,3%) nunca usou serviços odontológicos. Quanto à caracterização dos que usaram esses serviços odontológicos, constatou-se que a maioria usou serviço público, há menos de um ano, devido a alguma queixa, considerou o serviço como ótimo/bom e ficou satisfeito com o serviço. A maior parte relatou ter recebido orientações de higiene e de dieta, porém a maioria não recebeu informações sobre câncer de boca (Tabela 1).

 

 

 

Na análise bivariada, variáveis referentes aos grupos de variáveis exógenas, aos determinantes primários, aos comportamentos, aos desfechos de saúde bucal foram associadas ao não uso de serviços odontológicos (p ≤ 0,25), essas variáveis foram incluídas no modelo múltiplo (Tabela 2).

 

 

 

 

 

A prevalência de crianças que não usaram serviços odontológicos foi maior entre as crianças de mães que relataram ter recebido informações sobre como evitar problemas bucais, entre crianças de famílias com menor renda per capita, filhos de mães com menor escolaridade, crianças que não usavam suplementos de flúor e crianças cujas mães não percebiam a necessidade de tratamento odontológico do filho. A prevalência de crianças que não usaram serviços odontológicos ao longo da vida foi menor entre as que residiam em uma área com cobertura pela Estratégia Saúde da Família e naquelas com maior número de dentes obturados (Tabela 3).

 

 

 

DISCUSSÃO

Neste estudo, toda a análise foi realizada com correção pelo efeito de desenho, uma vez que é o procedimento recomendado para amostras por conglomerados21.

Quanto à caracterização dos que usaram serviços odontológicos, constatou-se que a maioria usou serviço público. Ressalta-se que a melhoria na oferta de serviços e nas políticas públicas de saúde bucal mostram que os investimentos influenciam na utilização e acesso de indivíduos de maneira geral2. Neste estudo, foi observado que a maioria das crianças foi ao cirurgião-dentista há menos de um ano. Diferentemente do observado em Sobral, onde um terço das crianças, devido a alguma queixa14, realizaram o tratamento odontológico há mais de um ano, o que caracteriza utilização dos serviços vinculado à urgência odontológica ou busca para solução de algum problema pontual22. Na amostra estudada, para a maioria das crianças, as mães relataram ter recebido orientações sobre higiene e dieta. Contudo, a maioria relatou não ter recebido informações sobre câncer de boca. Esses resultados evidenciam a necessidade de reforço nas ações de promoção e educação em saúde. A educação em saúde contribui para o empoderamento da população, podendo, como consequência, melhorar a sua qualidade de vida23.

O interesse e a preocupação com as desigualdades em saúde vêm crescendo no Brasil2. A principal implicação dos resultados descritos nesse estudo é que o maior conhecimento sobre quem não utiliza os serviços pode subsidiar políticas públicas de saúde inclusivas mais efetivas para esta população. Para Andersen & Davidson6, a presença de outros fatores, além dos demográficos e dos relacionados às necessidades de saúde em si, denotam uma situação de iniquidade, ou seja, só haveria equidade na utilização de serviços odontológicos se os indivíduos possuíssem condições potencialmente iguais para a utilização de serviços de saúde7.

A proporção de crianças que nunca fizeram a primeira consulta com o cirurgião-dentista foi de 64,3%. Este dado reforça os resultados observados em níveis nacionais, que revelam alta proporção de pré-escolares que nunca procuraram atendimento odontológico4. De acordo com a PNAD, realizada em 2003, aproximadamente 80% das crianças menores de cinco anos nunca realizaram uma consulta odontológica. O mesmo ocorreu em Canela/RS, onde 86,7% não realizaram uma consulta com o cirurgiãodentista13. Noro et al.14 encontraram que 49,1% das crianças de cinco a nove anos jamais tiveram acesso ao tratamento odontológico na cidade de Sobral/CE. Em Recife/PE, 32,6% das crianças de cinco anos não foram ao consultório odontológico e, entre as crianças de escola pública, a porcentagem foi ainda maior 48,9%12. Em Recife/PE, Massoni et al.15 verificaram que 22,1% das crianças de cinco a doze anos não haviam realizado uma consulta com o cirurgião-dentista. Em um estudo, 79,0% das crianças americanas em idade pré escolar, não fizeram a primeira consulta com cirurgiãodentista10. Em Santa Maria/RS, 76,3% das crianças de um a cinco anos, avaliadas durante a Campanha Nacional de Vacinação, nunca realizaram uma consulta odontológica23. As diferenças nas características sociodemográficas das populações investigadas e referentes a questões metodológicas podem explicar as variações nas prevalências da utilização de serviços odontológicos registradas. Constata-se, entretanto, a necessidade de políticas de saúde inclusivas que garantam o acesso a esses serviços.

O Ministério da Saúde incluiu, desde o ano 2000, a equipe de saúde bucal na ESF. A Constituição Federal prevê acesso universal aos serviços de saúde a todos os indivíduos4. Este estudo demonstrou que, mesmo com esforços governamentais, com a implantação de equipes odontológicas nas ESF, as desigualdades na utilização de serviços persistem. As crianças que residiam em domicílios cadastrados na ESF não realizaram nenhuma consulta odontológica. Este fato pode estar relacionado à alta carga de trabalho e desequilíbrios entre esforço/recompensa comprometendo a saúde do trabalhador bem como causando impacto negativo na prestação de serviço à comunidade24. Por outro lado, pode ser devido à indisposição dos cirurgiões-dentistas em acolher as crianças de cinco anos, por não terem habilidade neste atendimento.

Além do acesso aos serviços odontológicos, é direito do cidadão o acesso às informações em saúde, previsto na Constituição Brasileira e na Política Nacional de Saúde Bucal. As informações e conhecimentos podem contribuir para a construção da sua autonomia e para o exercício da sua cidadania, capacitando-o para escolhas saudáveis25. Neste estudo, a prevalência de crianças que não usaram serviços odontológicos foi maior naquelas cujas mães relataram não ter recebido informações sobre como evitar problemas bucais.

A iniquidade no acesso e na utilização de serviços odontológicos tem sido previamente demonstrada no Brasil4,12,15,22. As condições de vida desfavoráveis representam barreiras sociais na utilização de serviços, tanto pela falta de recursos financeiros quanto pela falta de conhecimentos e informações acerca dos cuidados domiciliares relacionados à promoção de saúde bucal15. Pesquisa realizada por Piovesan et al.22 mostrou que os fatores socioeconômicos e psicossociais são importantes preditores da utilização de serviços por crianças de 12 anos de idade e, por Machry et al.23, em crianças de um a cinco anos. No presente estudo tais achados foram confirmados, pois dois indicadores socioeconômicos foram significativamente associados à utilização de serviços. O que evidencia uma menor prevalência de utilização de serviços odontológicos nas crianças de famílias com menor renda per capita e filhos de mães com menor escolaridade. De forma semelhante, Barros & Bertoldi2 observaram que crianças de zero a seis anos com melhores condições socioeconômicas consultaram o dentista cinco vezes mais que aquelas com piores condições socioeconômicas. Diferenças na utilização de serviços entre crianças, segundo diferentes níveis de renda, foram previamente observadas em estudos nacionais 3,10-11,13-14,20 e internacionais26,27,28; além de estudos em outras idades e faixas etárias7,22,29-30.

Mães com maior escolaridade, provavelmente, possuem maior discernimento quanto a real necessidade de tratamento da criança. Além disso, a educação permite acesso a uma determinada ocupação e a um melhor nível de renda, podendo influenciar diferentes condutas relacionadas à saúde14-15. Adicionalmente, as crianças de cinco anos são consideradas vulneráveis e a procura por atendimento é dependente das decisões dos responsáveis13. As famílias assumem importante papel como espaço criador de oportunidades e de perspectivas de vida para seus membros e, por conseguinte, podem interferir na utilização de serviços de saúde31. As mães têm uma participação fundamental dentro da família, principalmente em respeito à saúde, pois são elas quem determinam muitos dos hábitos que seus filhos adotarão23. É possível que a utilização de serviços de saúde pelas mães estabeleça impacto positivo sobre a saúde bucal das crianças28. Portanto, a primeira consulta odontológica deveria ser estimulada desde a gestação, incluíndo a consulta odontológica como protocolo no exame pré-natal25.

Neste estudo, a prevalência do não uso dos serviços odontológicos foi maior entre as crianças que não utilizavam flúor, uma vez que a maioria das crianças usou o serviço devido a alguma queixa (dor). Por outro lado, a consulta de rotina (prevenção, orientação e flúor) foi menos utilizada, concordando com estudo de Colares & Caraciolo12. Além disso, as crianças de cinco anos de idade, cujas mães relataram não ter recebido informações sobre como evitar problemas bucais, não utilizaram os serviços odontológicos. As informações sobre a importância do flúor ou sobre como evitar problemas bucais normalmente são orientações transmitidas durante a consulta de rotina da criança no consultório odontológico. Portanto, verifica-se que a procura por serviços odontológicos para prevenção das doenças que acometem a cavidade bucal ainda não está plenamente incorporada à cultura no país, mas tem ganhado destaque devido às mudanças pelas quais a odontologia tem passado nos últimos tempos15.

A associação com o número de dentes obturados sugere que as crianças que acessam o serviço odontológico estejam recebendo tratamento curativo dos dentes. Este fato mostra maior procura pelo reparo da saúde bucal do que pela prevenção, ocorrendo associação entre a presença de necessidade de tratamento restaurador e utilização de serviços. Com relação à história da prestação de serviços de saúde bucal no Brasil, havia a característica de ações de baixa complexidade, na sua maioria curativa e com acesso restrito da população. Grande parte dos municípios planejava e desenvolvia ações para a faixa etária de seis a doze anos (escolares)32.

A prevalência do não uso dos serviços odontológicos foi maior entre as crianças filhas de mães que não percebiam a necessidade de tratamento odontológico. Massoni et al.15 observaram que os responsáveis apontavam a não utilização dos serviços odontológicos "por considerarem desnecessários" e "a crianças não ter cárie". Esta situação reflete a falta de conhecimento dos mesmos quanto à necessidade de controle e manutenção da saúde bucal sem a instalação de processos patológicos, além da concepção de uma odontologia principalmente curativa, buscada apenas quando necessário. Normalmente, os indivíduos dão maior importância aos sintomas e aos impactos psicossociais das doenças bucais do que aos sinais visíveis da doença23. A associação entre dor e necessidade de tratamento é frequente na literatura7.

A análise múltipla mostrou a adequação do modelo teórico de Andersen & Davidson6. Variáveis referentes aos determinantes primários, aos comportamentos e aos desfechos de saúde foram fatores associados ao não uso de serviços odontológicos. Embora este estudo forneça informações importantes sobre o uso de serviços odontológicos por crianças de cinco anos em Montes Claros/MG, não se pode deixar de considerar suas limitações. Devido ao desenho do estudo transversal, os resultados obtidos referenciam hipóteses relativas aos fatores associados, mas não tem poder de inferência causal. Outra limitação está relacionada com a possibilidade de viés na resposta o que afeta qualquer inquérito epidemiológico, uma vez que as informações são baseadas em informações auto-referidas. No entanto, os resultados descritos mostram-se semelhantes aos de outras localidades.

 

CONCLUSÃO

A maioria das crianças de cinco anos não usou os serviços odontológicos. Dentre aqueles que usaram, a maioria utilizou o serviço público há menos de um ano, devido a alguma queixa; ficou satisfeito com o serviço; relatou ter recebido orientações de higiene e de dieta; porém relatou não ter recebido informações sobre câncer de boca. A prevalência de crianças que não usaram serviços odontológicos foi maior entre aquelas cujas mães relataram ter recebido informações sobre como evitar problemas bucais, de famílias com menor renda per capita, filhos de mães com menor escolaridade, crianças que não usavam suplementos de flúor, crianças cujas mães não percebiam a necessidade de tratamento odontológico do filho e aquelas que moravam em área com cobertura pela ESF. Evidencia-se iniquidade no uso de serviços odontológicos, principalmente determinada por fatores sociais, sugerindo-se a necessidade de aprimoramento das políticas de saúde quanto ao acesso aos serviços de saúde odontológicos entre crianças de cinco anos.

 

REFERÊNCIAS

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