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Arquivos em Odontologia

versão impressa ISSN 1516-0939

Arq. Odontol. vol.52 no.2 Belo Horizonte Abr./Jun. 2016

 

 

 

Cárie dentária em crianças com paralisia cerebral e sua relação com a sobrecarga dos cuidadores

 

Relationship between caregiver burden and dental caries in children with cerebral palsy

 

 

Ana Carolina Oliveira LemosI; Cintia Regina Tornisiello KatzII

 

I Mestre em Odontologia/Odontopediatria. Departamento de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia de Pernambuco da Universidade de Pernambuco – FOP/UPE, Recife, Pernambuco, Brasil
II Doutora em Odontologia/Odontopediatria. Departamento de Clínica e Odontologia Preventiva da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Recife, Pernambuco, Brasil

Correspondência para:

 

 


 

RESUMO

Objetivo: Este estudo transversal objetivou avaliar a ocorrência de cárie dentária em 167 crianças de 6 a 12 anos de idade com paralisia cerebral e sua relação com a sobrecarga dos cuidadores. Métodos: Os dados foram coletados através de questionários e exames clínicos. A sobrecarga dos cuidadores foi avaliada utilizando-se a Escala de Avaliação da Sobrecarga do Cuidador - Burden Interview. Para a análise estatística foram utilizados os testes Qui-quadrado de Pearson, Exato de Fisher, F(ANOVA) e Student t-test. Resultados: A maioria das crianças apresentou paralisia cerebral do tipo espástica (70,7%). As prevalências de cárie foram 61,1% e 26,3% para as dentições decídua e permanente, respectivamente. A maioria dos cuidadores apresentou algum nível de sobrecarga (80,5%), sendo que o maior percentual apresentou sobrecarga leve à moderada (55,0%) e 25,5% apresentaram sobrecarga moderada a severa. Verificou-se que as médias do índice CPO-D e de dentes permanentes cariados foi maior entre os que tinham hemiparesia e menor entre os que tinham quadriparesia, com diferença significativa entre essas duas categorias (p=0,004). A ocorrência de cárie dentária não foi associada à sobrecarga dos cuidadores (p=0,881 para a dentição decídua e p=0,144 para a dentição permanente). A sobrecarga do cuidador foi associada à escolaridade (p=0,044) e à região de procedência (p=0,001). Conclusão: Nesta população, a cárie está mais relacionada aos problemas inerentes aos comprometimentos da paralisia cerebral, do que às dificuldades da rotina do cuidador. Sugere-se que estratégias mais humanizadas de acolhimento aos cuidadores sejam traçadas, visando à abordagem integral dos pacientes com paralisia cerebral e suas famílias.

Descritores: Paralisia cerebral. Cárie dentária. Cuidadores.


 

ABSTRACT

Aim: This study aimed to assess the relationship between the prevalence of dental caries in 167 children, 6 to 12 years of age, with cerebral palsy and caregiver burden. Methods: The data were collected using questionnaires and clinical examinations. Caregiver burden was assessed using the Burden Interview scale. Statistical analyses included Pearson's Chi-square test, Fisher's exact test, analysis of variance (ANOVA),and Student's t-test. Results: The majority of the children exhibited spastic cerebral palsy (70.7%). The prevalence of caries in the deciduous and permanent teeth was 61.1% and 26.3%, respectively. The majority of caregivers reported some degree of burden (80.5%), with mild to moderate being the most common answer (55.0%), followed by moderate to severe (25.5%). The mean DMFT and decayed teeth values were higher in children with hemiparesis and lower in those with quadriparesis, with a statistically significant difference between these two categories (p=0.004). The occurrence of caries was not associated with the caregiver burden. (p=0.881 deciduous teeth; p=0.144 permanent teeth). However, this variable was associated with education level (p=0.044) and the location of origin (p=0.001). Conclusions: In this population, caries were associated with the problems inherent to cerebral palsy rather than the difficulties of the caregiver's routine. Additional strategies should be drafted for caregivers to ensure a humanizing approach for cerebral palsy patients and their families.

Uniterms: Cerebral palsy. Dental caries. Caregivers.


 

INTRODUÇÃO

A Paralisia cerebral (PC) é a forma mais comum de desordem neurológica na infância. De acordo com as principais entidades envolvidas no estudo deste problema (United Cerebral Palsy; The Castang Foundation; National Institute of Neurological Disorders and Stroke), o termo Paralisia Cerebral engloba um grupo de desordens do desenvolvimento dos movimentos e da postura que causam limitações das atividades diárias. Estas limitações são atribuídas a distúrbios não progressivos que ocorrem durante o desenvolvimento fetal do cérebro infantil.1,2

Estudos mostraram que nos Estados Unidos, a incidência da PC está entre 1,2 a 2,3 a cada 1000 crianças em idade escolar. No Brasil a incidência da PC é de 1,5 a 2,5 a cada 1000 nascimentos.3

As desordens motoras da PC geralmente são acompanhadas de convulsões, movimentos involuntários e por distúrbios nas sensações, na cognição, na percepção e/ou no comportamento. Essas limitações podem gerar grandes repercussões na realização de tarefas simples e corriqueiras, afetando a rotina das crianças e de seus familiares.1,2,4-6 Os indivíduos acometidos também podem apresentar comprometimento gastrointestinal, infecções respiratórias crônicas, sendo esta última, a causa mais frequente de mortalidade.3

Particularmente em relação ao sistema estomatognático, os pacientes com PC frequentemente apresentam uma diminuição na função da fala, mastigação e deglutição, o que aumenta o risco de cárie. A ocorrência de hipoplasia do esmalte, trauma dental e de tecidos moles, hiperplasia gengival medicamentosa causada pelo uso de anticonvulsivantes, doença periodontal, maloclusões, atraso na erupção, bruxismo, deglutição atípica e respiração oral também são achados bucais comuns nos pacientes com PC.3,7

A demanda da família de crianças com PC é significativamente maior, já que esta necessita participar mais ativamente do cuidado de suas crianças. A existência de uma criança com PC altera a estrutura familiar, por aumentar a necessidade de tempo dos cuidados em casa e os recursos financeiros devido aos gastos dispensados ao tratamento.5,8 Assim, o difícil processo de cuidar de crianças com PC, aliado ao aumento das responsabilidades que essa função promove, pode levar ao cansaço, isolamento, estresse e sobrecarga dos cuidadores.8

A sobrecarga do cuidador pode ser entendida como uma perturbação resultante do lidar com a dependência física e incapacidade mental do indivíduo alvo de atenção e cuidado. Pode ser considerada como um conjunto de problemas físicos, mentais e socioeconômicos que acometem os cuidadores de pessoas com enfermidades, afetando suas atividades cotidianas, relacionamentos sociais e o equilíbrio emocional.9

Os cuidadores de crianças com paralisia cerebral, assim como em outras deficiências, são, em sua maioria, as próprias mães, que se incumbem da atividade geralmente sozinhas, o que as torna frequentemente sobrecarregadas. 5,11,12

A responsabilidade pela saúde da criança é frequentemente e culturalmente atribuída à mãe. No exercício da clínica Odontopediátrica, é comum justificar as muitas necessidades de tratamento da criança com PC pelo grau de sobrecarga materna. Buscando trazer evidências científicas sobre esta relação, este estudo objetivou avaliar ocorrência de cárie dentária em crianças com PC e sua relação com a sobrecarga dos cuidadores.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Este estudo foi desenvolvido na cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco (PE). A população do estudo foi composta por crianças com PC, cadastradas para atendimento odontológico na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) de Pernambuco, no ano de 2010. Foi realizado um estudo transversal com uma amostra de 167 crianças, com idades entre 6 a 12 anos, que compareceram para triagem no serviço odontológico da AACD-PE, durante os meses de agosto e setembro de 2010. Segundo dados da entidade, no ano de 2010 estavam cadastradas para atendimento 2.103 crianças na faixa etária de 6 a 12 anos.

Foram excluídos da amostra os pacientes considerados de alto risco, como os de alto grau de comprometimento motor e/ou neurológico, por serem extremamente debilitados e apresentarem maiores dificuldades de locomoção e de posicionamento na cadeira odontológica; fazendo uso de sonda nasogástrica e respiradores artificiais. Considerando a avaliação da sobrecarga do cuidador, foram excluídas as crianças que se apresentaram desacompanhadas dos seus cuidadores primários (mães ou pais) ou secundários (tios ou avós).

Os dados foram coletados através de quatro instrumentos. O Questionário de Dados Socioeconômico-demográficos foi aplicado para obter informações das crianças e seus responsáveis, como idade, sexo, classificação da PC, escolaridade, número de irmãos, posição na família, grau de parentesco do cuidador, situação marital e ocupação.

Foi utilizado O Critério de Classificação Econômica do Brasil da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa/ABEP (2003), que consiste em um sistema de pontuação padronizado usado para estimar a capacidade de consumo. Neste instrumento, a divisão de mercado definida é em classes econômicas. Em ordem decrescente, as famílias foram classificadas em classes A1, A2, B1, B2, C, D, E.

O Burden Interview consiste em uma escala para a avaliação da sobrecarga dos cuidadores de pacientes com incapacidade física ou mental.13 A versão brasileira deste questionário foi traduzida e validada por Scazufca14. O questionário é composto de 22 questões a serem respondidas pelos cuidadores, englobando as áreas de saúde, vida social e pessoal, situação financeira, bem-estar emocional e relacionamento interpessoal. Este questionário foi construído tanto para ser autoaplicável quanto para ser aplicado por um entrevistador.

Os exames clínicos foram realizados no consultório odontológico da AACD-PE, com a utilização de instrumental preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Foram considerados os critérios para o diagnóstico da cárie dentária da OMS, utilizados também nos últimos levantamentos de saúde bucal brasileiros. Atendendo às especificações internacionais para este tipo de estudo (BASCD - British Association for the Study of Community Dentistry), os exames clínicos foram precedidos pelo treinamento e calibração da examinadora (primeira autora). Para a condição da coroa dental, pela avaliação da concordância entre a examinadora e o padrão-ouro (segunda autora), obteve-se o coeficiente de Kappa de 0,93. Pela avaliação da concordância intra-examinadora, obtevese o valor de Kappa = 0,97.

A análise estatística foi realizada no programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences, SPSS Inc., Chicago, IL, USA) na versão 15. Foram obtidas distribuições absolutas, percentuais e as medidas estatísticas: média, mediana e desvio padrão; e foram utilizados os testes estatísticos: Qui-quadrado de Pearson ou Exato de Fisher quando as condições para utilização do Qui-quadrado não foram verificadas, e os testes F(ANOVA) e t-Student com variâncias iguais e desiguais. Os testes estatísticos foram realizados com margem de erro de 5,0%.

Esta pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética e pesquisa da AACD-PE (Parecer nº 044/2010). Os pacientes e/ou seus responsáveis foram informados sobre a metodologia deste estudo e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a sua inclusão na pesquisa.

 

RESULTADOS

Das 167 crianças, cento e uma (60,5%) eram do sexo masculino e 66 (39,5%) do sexo feminino. Quanto às idades, cinquenta e três crianças (31,7%) estavam na faixa etária de 6 a 7 anos, cinquenta e cinco (32,9%) na faixa de 8 a 9 anos e 59 (35,3%) na faixa etária de 10 a 12 anos. A média das idades foi de 8,61 anos. Verificou-se que um pouco mais da metade das crianças (51,5%) estava frequentando a escola, e 48,5% não estudavam. Apenas 29,9% estavam cursando o ensino fundamental, 8,4% cursavam a alfabetização e 13,2% ainda estavam cursando a educação infantil. Com relação ao número de irmãos, verificou-se que apenas 19,8% eram filhos únicos, e a maioria tinha até um irmão (41,3%). Considerando a ordem de nascimento ou posição da criança na família, verificou-se que a grande maioria das crianças (47,3%) era o primeiro filho.

De acordo com a classificação da paralisia cerebral quanto ao comprometimento do tônus muscular, verificou-se que a maior parte das crianças apresentava o tipo espástica (70,7%). Os demais tipos, atetóide, atáxico e misto, distribuíram-se em aproximadamente 10,0% da amostra. Quanto à localização do comprometimento motor, observouse que a maior parte das crianças apresentava quadriparesia (35,3%), seguido de 24,0% que apresentaram diparesia e 11,4% que apresentaram hemiparesia.

Quanto ao perfil dos cuidadores, verificou-se que a grande maioria era composta por mães (87,4%), com estado marital de casamento ou união estável (64,7%). Quanto ao nível de escolaridade, observouse que um alto percentual possuía ensino fundamental incompleto (42,5%). Apenas 16,8% dos cuidadores exerciam alguma atividade remunerada fora do lar. Mais de 60,0% das crianças estavam inseridas em famílias que recebiam até 2 salários mínimos por mês e pertenciam às classes sociais C, D e E. Quanto à região de procedência, a amostra deste estudo foi bastante equilibrada sendo praticamente metade das crianças da cidade do Recife e região metropolitana e metade do interior do estado de Pernambuco. Com relação aos níveis de sobrecarga dos cuidadores, observou-se que a maioria (55,0%) apresentou sobrecarga leve a moderada, 19,5% apresentaram ausência de sobrecarga e 25,5% apresentaram sobrecarga moderada a severa.

A prevalência de cárie foi de 61,1% para a dentição decídua e 26,3% para a dentição permanente. Quanto à experiência de cárie na dentição decídua, a média do ceo-d foi de 3,77 e a média de dentes decíduos cariados foi de 2,23. Em relação à dentição permanente, a média do CPO-D foi de 0,85 e a média dos dentes permanentes cariados foi de 0,66. O componente cariado foi o de maior representação tanto ceo-d, quanto no CPO-D (59,2% e 77,6%, respectivamente).

A Tabela 1 mostra a avaliação da relação entre o índice ceo-d e seus componentes com as variáveis faixa etária, sexo, comprometimento muscular da PC e localização do comprometimento motor. Verificouse diferença significativa entre as médias do ceo-d e as variáveis: faixa etária, média do número de dentes decíduos cariados e média do número de dentes decíduos obturados. As médias do ceo-d e as médias do número de dentes decíduos cariados e obturados foram correspondentemente maiores nas faixas etárias de 6 a 9 anos (4,60 ± 4,72 e 2,92 ± 3,47, respectivamente) do que de 10 a 12 anos (2,24 ±3,90 e 0,97 ± 1,98, respectivamente). Observou-se também uma diferença significativa entre a posição da criança na família e a média do número de dentes decíduos cariados (p=0,025). A média de dentes cariados foi maior quando o filho era o terceiro ou superior (3,46 ± 3,34).

 

 

 

A Tabela 2 mostra a avaliação da relação entre o índice CPO-D e seus componentes com as variáveis relativas à criança. Observou-se diferença significativa entre as faixas etárias para o índice CPO-D e para o componente obturado. As médias do CPO-D e do número de dentes permanentes obturados foram significativamente maiores na faixa etária de 10 a 12 anos (1,32 ± 2,05 e 0,95 ± 1,88, respectivamente) (p=0,007). Verificou-se uma diferença significativa entre o número de dentes permanentes cariados e o número de filhos. A média de dentes permanentes cariados foi menor quando os examinados não tinham irmãos (0,27 ± 0,94) e foi maior quando tinham dois ou mais irmãos (1,03 ± 1,93), com diferença significativa entre as duas categorias citadas (p=0,026).

Diferenças significativas também foram registradas nas localizações do comprometimento motor para o número de dentes permanentes cariados e o índice CPO-D. Para as referidas variáveis, observou-se que a médias do CPO-D e de dentes cariados foi maior entre os que tinham hemiparesia (1,68 ± 2,33 e 1,47 ± 2,29, respectivamente) e menor entre os que tinham quadriparesia (0,34 ± 1,21 e 0,25 ± 1,03, respectivamente), com diferença significativa entre essas duas categorias (p=0,004) (Tabela 2).

 

 

 

 

 

A Tabela 3 mostra a avaliação dos índices ceo-d e CPO-D de acordo com as variáveis relativas aos cuidadores. Com relação ao índice ceo-d, a única diferença significativa foi registrada entre o índice ceo-d e a variável renda familiar mensal (p=0,027). Observou-se que as médias do ceo-d reduziram à medida que a renda mensal aumentou. Considerando o índice CPO-D, verificou-se diferença significativa com classe econômica (p=0,025). Com relação à sobrecarga do cuidador, verificou-se que, apesar das médias do ceo-d e CPO-D terem sido maiores nas crianças cujos cuidadores apresentaram sobrecarga moderada a severa (3,68 ± 4,99 e 0,85 ± 1,73, respectivamente), estas diferenças não foram estatisticamente significantes (p=0,881 e p=0,114).

A Tabela 4 apresenta a avaliação da sobrecarga do cuidador de acordo com as variáveis relativas à criança. Verificou-se que nenhuma destas variáveis foi associada ao nível de sobrecarga do cuidador.

A Tabela 5 mostra a relação entre o nível de sobrecarga e as variáveis socioeconômicodemográficas relativas ao cuidador. Observou-se associação significativa entre a sobrecarga do cuidador e as variáveis escolaridade e região de procedência. Entre os cuidadores com ensino fundamental incompleto, verificou-se que a maioria apresentou sobrecarga moderada a severa (52,4%) contra 24,2% que apresentaram ausência de sobrecarga. Entre os cuidadores com ensino médio completo ou superior, a maioria apresentou sobrecarga ausente (51,5%), enquanto 16,7% apresentaram sobrecarga moderada a severa. Estas diferenças foram estatisticamente significantes (p=0,044). Em relação à região de procedência, verificou-se que a maioria significativa dos cuidadores que residia na cidade do Recife ou Região Metropolitana apresentou sobrecarga leve ou moderada, quando comparados aos cuidadores residentes em outros estados (p=0.001).

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Neste estudo, a maioria das crianças era do sexo masculino. Este resultado também foi observado em outros estudos,15-17que afirmaram que paralisia cerebral é mais comum em meninos. De acordo com um levantamento epidemiológico realizado em catorze países europeus, a PC é mais prevalente em meninos e existe uma predominância do tipo espástico em relação aos demais.17 No presente estudo, uma maior ocorrência de casos de PC espástica também foi observada, caracterizando uma amostra de pacientes com grande comprometimento motor e dificuldade de locomoção. 15,19,20 Verificouse o elevado percentual de crianças com alto grau de comprometimento (quadriparesia espástica), o qual pode ter influenciado na baixa escolaridade das crianças, uma vez que aproximadamente metade das crianças não frequentava a escola.

Nesta pesquisa, a maior parte dos cuidadores apresentava baixo nível de escolaridade e baixo nível socioeconômico, com a grande maioria das famílias vivendo com até dois salários mínimos e pertencendo às classes econômicas com menor poder de mercado. Esses resultados foram concordantes com os encontrados em outras regiões do Brasil. A pobreza e a carência de informações sobre cuidados com a saúde bucal são fatores que dificultam o acesso e a continuidade de tratamento odontológico nesta população.21,22

A grande maioria dos cuidadores eram as mães. Destas, pouco mais da metade eram casadas e um elevado percentual das mesmas não exercia atividade remunerada. Estes resultados concordaram com outros estudos, que relataram que o cuidador primário da criança com PC é normalmente a mãe, que se incumbe da responsabilidade geralmente sozinha, alterando sua vida em função de melhorar a condição da criança, muitas vezes abrindo mão dos seus papéis sociais.5,11,12,22

A literatura reforça esses achados ao traçar o perfil subserviente das mães das crianças com deficiência, não possuindo emprego ou renda fora do lar, uma realidade que, somada ao impacto negativo da doença, provoca instabilidades na família.11,12 O fato de estar casada parece reforçar a condição de abnegação a uma vida profissional própria, e, ao mesmo tempo, imuniza a cuidadora de arrependimentos, dúvidas ou de achar que ultrapassou limites. Nesta postura, sua obrigação passa a ser "somente" cuidar da criança, fato que pode mascarar uma possível sobrecarga. A representação do papel de mãe, nesses casos, é supervalorizada a uma condição na qual trabalhos excessivos relacionados à criança e aos afazeres em demasia são vistos como premiação e realização pessoal.

A prevalência de cárie em crianças com PC quando comparada à prevalência de cárie na população em geral é uma questão muito discutida na literatura. Um levantamento epidemiológico realizado em préescolares de Hong Kong, comparando crianças com e sem PC, encontrou experiências de cárie similares nas duas populações.23 Outros estudos também apontaram experiências de cárie similares ou inferiores em crianças com PC, quando comparadas à população de crianças sem PC.24,25

No Brasil, estudos relataram experiências de cárie mais elevadas na dentição decídua de crianças com PC.19,21,22 No presente estudo, a experiência de cárie na dentição decídua foi bem maior do que a experiência de cárie na dentição permanente. Entretanto, devese considerar que este resultado pode ser justificado pela faixa etária dos participantes do estudo e o maior número de dentes decíduos na cavidade bucal.

Com relação à dentição permanente, neste estudo, comparando o resultado do índice CPO-D na faixa etária de 10 a 12 anos (1,3) com o encontrado na população de crianças de 12 anos da região Nordeste (2,7), de acordo com os dados divulgados nos últimos levantamentos nacionais de saúde bucal26,27, verificase que a experiência de cárie na dentição permanente de crianças com PC foi menor.

Com base nestes resultados, além da questão da faixa etária da amostra estudada, uma outra justificativa para a menor prevalência de cárie em dentes permanentes nas crianças com PC pode ser o atraso na cronologia de erupção, que é comum nos paciente com PC.1,3,16 Sugere-se, portanto, que estudos controlados sejam realizados para comparar a experiência de cárie na dentição permanente de crianças com e sem PC, nos quais, para o pareamento das crianças, a cronologia de erupção seja levada em consideração.

Neste estudo observou-se que os valores do CPO-D foram maiores nas crianças com hemi ou diparesia quando comparadas com as crianças com quadriparesia. Uma possível explicação para esta diferença se deve ao fato de que as crianças com hemi ou diparesia da faixa etária estudada, por apresentarem melhores habilidades psicomotoras quando comparadas às com quadriparesia, consequentemente apresentam um grau de dependência menor dos cuidadores em relação aos cuidados com a higiene. Estas podem ter recebido menor atenção em relação à supervisão da higiene oral, quando comparadas àquelas altamente comprometidas.

Observou-se que a maioria dos cuidadores apresentou sobrecarga leve a moderada. Este resultado foi diferente do encontrado por Santos et al.12, em pesquisa realizada também na região nordeste do Brasil, que encontraram uma sobrecarga intensa na maioria dos pesquisados. Porém, deve-se considerar que esses autores categorizaram a sobrecarga em apenas dois níveis: leve e intensa. Desta forma, a amostra do referido estudo ficou bem dividida em sobrecarga leve (47,6%) e intensa (52,4%).

A literatura sugere que quanto maior o acúmulo de atividades por parte do cuidador, menor prioridade será dada aos cuidados básicos com a saúde bucal da criança, por enfrentar diversas outras dificuldades. Essas dificuldades resultam no surgimento da sobrecarga, que se reflete negativamente na saúde dos cuidadores e consequentemente nos cuidados com seus filhos. 4,8,9,11,28

Sabe-se que os pais desempenham um importante papel na saúde bucal das crianças. Na prática clínica diária, é comum os profissionais de Odontologia atribuírem a precariedade da saúde bucal dos pacientes infantis ao grau de sobrecarga dos pais, ou, mais especificamente, à sobrecarga das mães, as quais arcam com mais facilidade com o peso da responsabilidade pela saúde dos filhos. Pesquisadores identificaram que estar sobrecarregado na rotina diária dificulta o acompanhamento odontológico infantil, pois os esforços de promoção de saúde, através do acompanhamento odontológico periódico das crianças, têm menor prioridade para os pais sobrecarregados.28

Remetendo este entendimento para a rotina dos pacientes com necessidades especiais e seus cuidadores, fica fácil atribuir a esses últimos a responsabilidade pelos problemas bucais frequentes nesta população. Entretanto, ressalta-se a escassez de estudos que embasem cientificamente esta relação.

Particularmente em relação à doença cárie, os resultados do presente estudo mostraram que este raciocínio não pode ser aplicado às crianças com PC. Neste estudo, a ocorrência de cárie dentária não foi associada à sobrecarga dos cuidadores, evidenciando que esta doença está mais relacionada com os problemas inerentes aos comprometimentos da PC do que às dificuldades da rotina do cuidador. Assim, sugere-se que estratégias mais humanizadas de acolhimento aos cuidadores sejam traçadas, ao invés de posturas de responsabilização dos mesmos pelos problemas de saúde bucal dos pacientes, visando à sensibilização desses cuidadores quanto à importância dos cuidados precoces com a saúde bucal na manutenção da saúde geral desses pacientes. Por outro lado, esta sensibilização não fará sentido se a assistência odontológica a esses pacientes não for melhorada de forma quantitativa, qualitativa e integrada com ações multidisciplinares.

 

CONCLUSÃO

Nesta população, a cárie está mais relacionada aos problemas inerentes aos comprometimentos da paralisia cerebral, do que às dificuldades da rotina do cuidador. Sugere-se que estratégias mais humanizadas de acolhimento aos cuidadores sejam traçadas, visando à abordagem integral dos pacientes com paralisia cerebral e suas famílias.

 

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Correspondência para:

e-mail: anacarolinalemos@yahoo.com.br
e-mail: cintia@katz.com.br