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Stomatos

versão impressa ISSN 1519-4442

Stomatos vol.16 no.31 Canoas Jun./Dez. 2010

 

ARTIGOS CIENTÍFICOS

 

Atenção odontológica em pacientes com deficiências: a experiência do curso de Odontologia da ULBRA (Canoas/RS)

 

Dental attention in patients with disabilities: the experience in the School of Dentistry of the Lutheran University (Canoas/RS)

 

 

Luciana Macedo PereiraI; Etiene MarderoII; Simone Helena FerreiraIII; Paulo Floriani KramerIV; Rafael Barreto CogoV

IAluna do Curso de Mestrado em Clínica Odontológica com ênfase em Odontopediatria da ULBRA/RS
IIEspecialista em Odontopediatria pela Associação Brasileira de Odontologia
IIIProfessora da Disciplina de Clínica Infantil do Curso de Odontologia ULBRA (Canoas/RS)
IVProfessor Doutor da Disciplina de Clínica Infantil do Curso de Odontologia da ULBRA (Canoas/RS)
VEspecialista em Odontologia para o Portador de Necessidades Especiais pela Associação Brasileira de Odontologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi avaliar o perfil dos pacientes com deficiência atendidos no projeto de extensão "Conquistando Saúde: atendimento a pacientes com necessidades especiais" do Curso de Odontologia da Universidade Luterana do Brasil – Campus Canoas / RS, no período de 2001 a 2006. A coleta dos dados foi feita a partir dos prontuários dos pacientes atendidos no referido período. Observou-se um equilíbrio entre os pacientes do sexo masculino e feminino, uma maior procura ao serviço por pacientes jovens, procedentes de Canoas e com distúrbios neurológicos. Aproximadamente 80% dos pacientes apresentavam experiência de cárie. A partir dos resultados obtidos sugere-se o estabelecimento de políticas públicas de promoção de saúde e reorientação de serviços odontológicos que facilitem o acesso e a utilização por indivíduos com deficiências.

Palavras-Chave: pacientes com necessidades especiais; atendimento odontológico.


ABSTRACT

The objective of this study was to evaluate the profile of patients with disabilities served by the extension project "Conquering Health: serving patients with special needs" in the School of Dentistry Lutheran University of Brazil – Canoas Campus/RS, from 2001 to 2006. The data was collected from patients's charts. A similar number of male and female patients, a higher prevalence of young patients, coming from Canoas and with neurological disorders was observed. Approximately 80% of the patients with disabilities presented caries. The results obtained suggest the establishment of public policies on health promotion and reorientation of dental services that facilitate access and use by individuals with disabilities.

Key words: patients with special needs; dental visit.


 

 

INTRODUÇÃO

Pacientes com necessidades especiais (PNE) são aqueles que possuem deficiências físicas, mentais, sensoriais, de desenvolvimento, comportamentais e/ou emocionais, além de condições limitadas que requerem atenção médica (problemas sistêmicos de saúde) que necessite de programas ou serviços especializados no tratamento. A condição patológica pode ser de desenvolvimento ou adquirida, podendo causar limitações ou incapacidade nas atividades do dia a dia (Acs et al., 2001). Atualmente, o termo considerado mais adequado é "pessoa com deficiência" contrariando o popular "pessoas com necessidades especiais" que impõe limitações (Lippo, Matarazzo, 2009).

Existem hoje em todo mundo cerca de 500 milhões de indivíduos com deficiência. De acordo com o censo demográfico de 2000 (IBGE), 25 milhões de brasileiros, ou seja, 14,5% da população têm algum tipo de deficiência. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a prevalência das deficiências seja de uma pessoa a cada dez, e afirma que desse total de deficientes, mais de dois terços não recebem nenhum tipo de assistência odontológica (Sampaio et al., 2004). A sociedade se preocupa muito com a incapacidade destes indivíduos, porém esquece que eles necessitam de educação e atendimento especiais (Silva, Cruz, 2009).

A Constituição Brasileira de 1988 já apresentava princípios gerais de política de inclusão das pessoas com deficiência. A partir daí, leis complementares relativas a aspectos educacionais, de acessibilidade e de incentivo a emprego vem sendo implementadas. Este processo, entretanto, tem sido bastante irregular com avanços em alguns setores e lentidão em outros (Ministério da Educação, 2001). A atenção odontológica, por exemplo, não tem merecido a devida atenção. O tratamento odontológico, contudo, pode modificar o perfil dos indivíduos com deficiência, estimulando sua participação social como cidadãos (Figueiredo et al., 2003).

A grande maioria dos pacientes com deficiência pode e deve ter o seu atendimento odontológico solucionado no âmbito da atenção primária, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Ao constatar impossibilidade da prestação de serviço neste nível de atenção o paciente será encaminhado para o atendimento de referência. A Portaria número 599/GM, de 23 de março de 2006, define a implantação dos Centros de Especialidades Odontológicas e estabelece que todo CEO deve realizar atendimentos a pacientes com deficiência. Neste momento será feito o atendimento e a avaliação da necessidade ou não de atendimento hospitalar sob anestesia geral (Cadernos de Atenção Básica, 2006).

O tratamento odontológico de pacientes com deficiência envolve a compreensão das dificuldades específicas (dificuldades motoras, dificuldades devido à falta de comunicação, necessidades odontológicas acumuladas, graus de limitação física, dentre outras) e inespecíficas (falta de profissionais habilitados, barreiras arquitetônicas e a superproteção da criança com deficiência) que envolvem o tratamento (Guimarães et al., 2006). Além disso, é essencial que haja o envolvimento e o comprometimento dos pais/responsáveis no planejamento das atividades, juntamente com a equipe multidisciplinar na tentativa de minimizar a possibilidade de intervenções futuras (Haddad, 2007). Porém, muitas vezes estes cuidados são dificultados pela falta de colaboração do núcleo familiar ou dos cuidadores (Varellis, 2005).

A anamnese é o momento que o profissional tem a oportunidade de perceber os aspectos psicológicos que envolvem a família, os anseios e as expectativas em relação ao tratamento, além de eventuais experiências frustradas anteriores. O cirurgião dentista, além de dispensar atendimento adequado, segundo a necessidade do paciente, deve perceber e entender como a família funciona e interfere no comportamento deste (Guedes-Pinto, 2003).

Os procedimentos odontológicos não diferem tecnicamente daqueles realizados em qualquer indivíduo. As principais diferenças envolvem as características do espaço físico do consultório (acesso facilitado com rampas, elevadores e portas amplas), na análise psicológica do paciente e da família, na abordagem do próprio paciente (posicionamento deste na cadeira odontológica e tipo de contenção a ser realizada), cuidados pré-operatórios e uso de abridores de boca para segurança do paciente e do profissional (Toledo, 2005).

As pessoas com deficiência apresentam maior risco para o surgimento de doenças bucais em função do uso sistemático de medicamentos, dificuldade na realização do controle de placa bacteriana e hábitos alimentares precários. Portanto, estes pacientes devem receber atenção precoce e cuidados contínuos para evitar problemas futuros (Varellis, 2005; Toledo, 2005).

A formação do cirurgião dentista no que diz respeito à atenção odontológica aos pacientes com deficiência ainda é falha, pois o currículo dos Cursos de Odontologia não contemplam uma abordagem generalista da saúde (Varellis, 2005).

Este estudo tem como objetivo verificar o perfil dos pacientes com deficiência que são atendidos no projeto de extensão "Conquistando Saúde: Atendimento de pacientes com necessidades especiais" do Curso de Odontologia da Universidade Luterana do Brasil (Canoas/RS).

 

METODOLOGIA

O delineamento deste estudo é observacional do tipo transversal. O universo amostral foi constituído dos prontuários dos pacientes atendidos no projeto de extensão: "Conquistando Saúde: Atendimento de pacientes com necessidades especiais" do Curso de Odontologia da ULBRA (Canoas/RS) no período de março de 2001 a dezembro de 2006.

A coleta dos dados foi realizada por dois examinadores (cirurgiões dentistas) devidamente treinados. Todos os prontuários foram avaliados perfazendo um total de 149 pacientes. Os prontuários com falhas no preenchimento foram descartados, obtendo-se um total de 138 pacientes. Os dados coletados foram transcritos em uma ficha especialmente confeccionada para este fim.

As variáveis coletadas envolveram:

a) Dados demográficos: sexo, idade e cidade onde reside;

b) Tipo de necessidade especial (adaptado da IADH – International Association of Dentistry for Disabilities and Oral Health):

1) Deficiências neurológicas: deficiência mental, paralisia cerebral, megaloencefalia, microcefalia, aneurisma, epilepsia;

2) Deficiente físico: motricidade alterada, espasmo muscular, cadeirante;

3) Distúrbios congênitos: fendas palatais e labiais, síndromes;

4) Distúrbios psico-sociais: esquizofrenia, bipolar, drogadito, autista, depressão, hiperativo;

5) Distúrbios sensoriais e áudio-comunicação: surdo, mudo, cego;

6) Distúrbios sistêmicos: diabete, cardíacos, fenilcetonúrios, toxoplasmose, pulmonares, tireoidismo;

7) Condições sistêmicas especiais: gestantes, transplantados, colostomia, oncológicos, aidéticos;

8) Sem diagnóstico específico.

c) Experiência de cárie: sim ou não;

d) Variáveis terapêuticas: exame radiográfico, aplicação de selante de fossas e fissuras, restauração, exodontia, terapia pulpar, aplicação tópica de flúor, raspagem de cálculo, aplicação de cariostático, procedimentos cirúrgicos e prótese.

Para análise estatística dos dados foi utilizado o programa SPSS (versão 13.0). Foram descritas as freqüências simples e percentuais relativas às características da população e em relação aos desfechos.

O projeto da presente pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil (CEP-ULBRA 2005-366H).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

De acordo com os dados obtidos, 50,7% dos pacientes eram do sexo masculino e 49,3% do sexo feminino. Quanto à procedência, observou-se que 48,6% residiam em Canoas e os demais pacientes distribuíram-se entre outras cidades do Rio Grande do Sul, o que indica que o atendimento prestado é referência. Em relação à idade constatou-se que mais de 60% dos pacientes atendidos tinham menos de 20 anos de idade, sendo que mais de 20% tinham menos de 10 anos de idade (Tabela 1).

 

 

Os dados indicam uma abordagem precoce, visto que os pacientes com deficiência são mais propensos a problemas bucais por todas as suas limitações. Quanto antes este paciente tiver acesso ao serviço odontológico, mais cedo será incluído numa abordagem preventiva, garantindo-lhe uma melhoria na qualidade de vida. Neste sentido, tem-se preconizado que a idade ideal para a primeira consulta odontológica seja entre seis e doze meses de vida (Hashim-Nainar, Straffon, 2003; Rayner, 2003).

Com relação ao diagnóstico dos pacientes atendidos, observou-se que 55,8% apresentavam distúrbios neurológicos; 4,3% deficiência física; 23,2% apresentavam distúrbios congênitos; 13,8% distúrbios psico-sociais; 5,8% distúrbios sensoriais e de áudio-comunicação; 18,1% distúrbios sistêmicos; 1,4% apresentavam condições sistêmicas especiais e 4,3% não apresentavam diagnóstico específico (Tabela 2).

 

 

Pesquisa avaliando o perfil dos pacientes com necessidades especiais atendidos no Instituto de Previdência do Estado do Ceará, no período de janeiro de 1997 a maio de 1998,

destacou que 36% dos pacientes tinham problemas neurológicos; 52% apresentavam deficiências físicas; 5,5% eram acometidos de distúrbios sensoriais e de áudio-comunicação; 2,4% tinham distúrbios sistêmicos; 11,8% com distúrbios psico-sociais e em igual número pacientes com problemas associados (Guimarães et al, 2006). Verificou-se um grande número de pacientes com deficiência física (52%), quando comparado aos resultados do presente estudo (4,3%). Com relação aos distúrbios sistêmicos também observou-se uma diferença significativa. Isto pode evidenciar dificuldades na identificação do diagnóstico destes pacientes, pois muitos apresentam mais de uma alteração. Além disto, muitos pacientes são encaminhados de entidades que atendem determinados tipos de deficiência e isto pode influenciar nos resultados.

O atendimento odontológico dos pacientes com deficiência é muitas vezes prejudicado por vários fatores, tais como: situação socioeconômica, necessidade de grandes deslocamentos, dificuldade de transportes, além do tempo despendido em outros tratamentos de reabilitação paralelos ao tratamento odontológico (Guimarães et al., 2006; Silva, Lobão, 2010). Problemas extrínsecos como políticas governamentais, planos educativos no nível das universidades, correta atenção à saúde bucal na rede pública, formação de equipe e serviços especializados, recursos odontológicos, falta de profissionais idôneos em quantidade suficiente para atender a demanda, programas preventivos, falta de diretrizes voltadas à assistência de pessoas com deficiência, dentre outros, são considerados fatores responsáveis para que a situação bucal deste paciente seja praticamente esquecida (Guimarães et al., 2006).

Com relação à experiência de cárie, o presente estudo evidenciou que apenas 17,2% dos pacientes atendidos apresentavam-se livres de cárie. Os indivíduos com deficiência têm um risco aumentado de desenvolver doenças bucais que, por sua vez, tem um impacto direto e negativo em sua saúde (Silva, Lobão, 2010; Acs et al., 2001). A higiene bucal apresenta-se ainda precária ou inexistente (Guedes-Pinto, 2003; Toledo, 2005). Assim, a educação dos pais/responsáveis é fundamental para assegurar a supervisão necessária. Os cirurgiões dentistas devem demonstrar as técnicas de higiene, incluindo como posicionar adequadamente as pessoas com deficiência para realização do procedimento (Silva, Lobão, 2010).

Em relação aos procedimentos odontológicos realizados, a aplicação tópica de flúor é realizada como protocolo do serviço. Foram realizadas ainda 131 exodontias em dentes decíduos e permanentes, 16 endodontias em dentes decíduos e permanentes, 123 radiografias, 141 sessões de raspagens de cálculo, 305 procedimentos restauradores em decíduos e permanentes, 81 profilaxias, além de 55 aplicações de selantes de fóssulas e fissuras.

Outros procedimentos como aumento de coroa clínica, clareamento de dente não-vital, colagem de dente de estoque, cunha distal, gengivectomias, moldagens, pulpotomias, raspagens de cálculo subgengivais, reembasamento de próteses, remoção cirúrgica de hiperplasia gengival, restaurações em amálgama de prata e restaurações atraumáticas, foram também realizadas. Fica evidente que não existem limites protocolares rígidos na elaboração de um plano de tratamento para pessoas com deficiência.

Apenas três pacientes, representando aproximadamente 3% do total de pacientes atendidos foram encaminhados para anestesia geral. A indicação ocorreu devido ao grande comprometimento neurológico e complexidade do caso, impossibilitando o atendimento em ambulatório. De acordo com OMS, aproximadamente 8% das pessoas com deficiências tem indicação de tratamento odontológico sob anestesia geral, demonstrando que a grande maioria pode receber este tratamento em ambulatório ou consultório (Varellis, 2005).

Um dos maiores desafios do tratamento odontológico dos pacientes com deficiência é o manejo do comportamento. Reclamações e resistência ao atendimento podem ser vistas na pessoa com deficiência mental e naquelas que apresentam incapacidades físicas. Por outro lado, o comportamento da maioria dos pacientes com incapacidade física e/ou mental pode ser controlado no consultório com o auxílio dos pais ou responsáveis. A contenção física pode ser útil para os pacientes em que as técnicas tradicionais de manejo não forem eficazes (Silva, Lobão, 2010).

Em decorrência do rápido avanço científico e tecnológico, as pessoas com deficiência estão atingindo idades cada vez mais avançadas. Em virtude disto, deverá haver mais cirurgiões-dentistas preparados para atendê-los, bem como mais estudos referentes ao tema para embasar este atendimento. Além disso, faz-se necessário o estabelecimento de políticas públicas de promoção de saúde e reorientação de serviços que facilitem o acesso e a utilização dos serviços odontológicos.

 

CONCLUSÕES

De acordo com os dados obtidos conclui-se que:

• O curso de Odontologia da ULBRA possui um serviço de referência para atendimento odontológico de pessoas com deficiência.

• A maioria dos pacientes que procuraram atendimento é jovem com distúrbios neurológicos procedentes do município de Canoas.

• Os procedimentos odontológicos são realizados em ambulatório e envolvem desde aplicação tópica de flúor até confecção de prótese. Apenas 3% dos pacientes são atendidos sob anestesia geral.

• Políticas públicas de promoção de saúde bucal com a inclusão das pessoas com deficiência faz-se necessário no município de Canoas e região metropolitana de Porto Alegre

 

REFERÊNCIAS

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