14 3 
Home Page  

    Compartir


    Odontologia Clínico-Científica (Online)

      ISSN 1677-3888

    Odontol. Clín.-Cient. (Online) vol.14 no.3 Recife jul./sep. 2015

     

    Artigos de Revisão / Review Articles

     

    BIOTECNOLOGIA E ODONTOLOGIA: A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA A PRÁTICA ODONTOLÓGICA

     

    Biotechnology and Dentistry: the importance of bioethics in the dental practice.

     

    Fabiano MalufI; Monique PyrrhoII

     

    I Cirurgião dentista, doutorando em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília - UnB
    II Cirurgiã dentista, doutora em Bioética Universidade de Brasília - UnB, analista em Ciência e Tecnologia do Ministério de Ciência e Tecnologia

     

     


     

    RESUMO

    O incremento do uso de biotecnologias tem aumentado o número de questões morais relacionadas à prática odontológica. Este, entre outros motivos, tem tornado a reflexão ética pautada no diálogo com o usuário cada vez mais necessária no cotidiano clínico. O presente artigo visa ilustrar como a Bioética pode contribuir para a atuação do dentista, de forma a tornar mais consciente e crítica e, também, mais equânime a relação profissional de saúde-usuário.

    Descritores: Biotecnologia, Odontologia, Bioética.


     

    ABSTRACT

    The accrued use of biotechnologies has increased the number of moral issues related to the dental practice. This, among other reasons, has turned ethical reflection guided by dialogue with the service user, into a need to the daily clinical work. This article aims at showing how Bioethics can contribute in dentist's performance, in order to make health professional-user relationship more conscious and critic, as well as more equalitarian.

    Key-words: Biotechnology, Dentistry, Bioethics.


    INTRODUÇÃO

    A chamada revolução biológica, marcada pela descoberta do código genético nos anos 1950, transformou as práticas biomédicas. O acelerado avanço e incorporação das biotecnologias em diversas áreas, inclusive na Odontologia, ampliou a capacidade de intervenção biomédica e o poder de tratamento e cura de diversas patologias1.

    No entanto, em decorrência disso, não somente tornouse imprescindível uma constante atualização tecnocientífica, como também é cada vez mais exigida dos profissionais a capacidade de identificar e refletir sobre as questões morais derivadas destas novas aplicações biotecnológicas2. Na Odontologia, especificamente, são lançados a cada dia novos produtos destinados à aplicação direta sobre tecidos vivos, como a dentina, a polpa, o osso alveolar e os tecidos periodontais, algumas vezes permanecendo em sua intimidade por prolongados períodos3.

    A rapidez com que estes avanços científicos e tecnológicos chegam à realidade clínica e, ao mesmo tempo, o maior acesso à informação por parte dos usuários de serviços odontológicos exigem do cirurgião-dentista (CD) um diálogo mais amplo e uma reflexão ética mais acurada. Não basta ao clínico dominar as técnicas e os materiais necessários à sua prática, é cada vez mais requisitada sua capacidade de pensar sobre as novas implicações éticas possivelmente decorrentes destas aplicações tecnológicas, bem como sobre as questões resultantes da relação profissional de saúde-usuário3.

    É nesse contexto que se apresenta a bioética, como um campo de estudo e reflexão ética, que envolve diferentes movimentos e sujeitos, orientados para agir, quanto à cidadania e aos direitos humanos, em contextos temporais e espaciais nos quais pessoas se encontram vulneráveis, tanto no acesso quanto na busca da saúde4.

    A bioética, como uma disciplina dinâmica, que ao mesmo tempo estuda os impactos das tecnologias no modo de viver do homem e contempla referenciais amplos como a tolerância e o pluralismo moral, possibilita a utilização de novas categorias de análise para as decorrências do processo saúdedoença. Especificamente na Odontologia, pode contribuir para as relações entre os sujeitos desse processo e para a análise e reflexão das implicações éticas da prática odontológica, como a recente discussão sobre o uso de biomaterias, por exemplo5.

    A Bioética e a Odontologia: contribuição e relevância

    pesquisa com seres humanos, tendo na teoria dos quatro princípios seu mais conhecido referencial teórico e exemplo de aplicabilidade e utilização nesse campo. Por ter sua contextualização dirigida basicamente ao relacionamento entre profissionais de saúde e os paciente e/ou entre as instituições e entre os próprios pacientes, este enfoque é por vezes denominado de bioética clínica6.

    No entanto, a teoria bioética hegemônica, o Principialismo, parece não ser suficiente para a resolução de todos os conflitos morais pertinentes à prática clínica. Os princípios da autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça frequentemente estão em conflito entre si, o que faz com que haja a necessidade de estabelecer prioridade entre eles7,8.

    Na Odontologia, a limitação deste referencial teórico se revela em situações de conflito entre a autonomia do paciente e a beneficência que rege a atuação profissional, como no caso em que o paciente não deseja a melhor solução técnica proposta pelo dentista.

    Outro tipo de conflito frequente é aquele entre o princípio da não-maleficência, que deve pautar a conduta do CD, e a autonomia do paciente, quando este, por exemplo, solicita que se realize um procedimento técnico que pode prejudicar sua saúde, como uma extração dentária não preconizada pelo entendimento científico atual3.

    Entre os conflitos éticos gerados pela divergência entre as soluções propostas pelo profissional e o desejo do paciente podemos citar, ainda, a opção por um implante em vez do tratamento reabilitador protético ou a substituição de materiais restauradores satisfatórios por materiais estéticos, em detrimento da durabilidade e funcionalidade dos elementos dentais.

    Nessas divergências, porém, há muito mais a se considerar do que os parâmetros puramente técnicos e científicos. É preciso compreender quais são as perspectivas e desejos dos usuários. Ao profissional, cabe informar de maneira a se fazer perfeitamente entendido, com uma linguagem clara e compreensível, sobre eventuais danos, desconfortos e riscos que o paciente possa experimentar depois de feita sua escolha.

    A discussão dos detalhes e das implicações dos procedimentos a serem realizados, antes do início do tratamento, pode ajudar o paciente a rever sua escolha e também na superação do medo e na redução da ansiedade, tão comuns nesse momento. A abordagem tem de ser individual e diferenciada para cada paciente e a autonomia respeitada. A autonomia só é garantida quando as opções de tratamento, suas vantagens e desvantagens são informadas e a liberdade para tomada de decisão é assegurada.

    É fundamental, para tanto, que o dentista utilize seu saber técnico como instrumento de informação para seus pacientes. Desse modo, o saber especializado do profissional é utilizado não como uma forma de poder sobre o paciente, mas como uma maneira de tornar o usuário de seus serviços mais autônomo.

    Um exemplo ativo e positivo da importância da compreensão do paciente é aquele em que o CD atua incentivando a participação do paciente na manutenção da própria saúde bucal: sem a colaboração indispensável do paciente na adequação da sua dieta alimentar, no exercício correto da escovação dentária e de outras medidas necessárias ao controle da placa bacteriana, é pouco provável que a terapêutica instituída resulte em sucesso9.

    O uso de biomateriais: exemplo de considerações bioéticas na prática clínica-odontológica

    Embora a prática clínica odontológica tenha uma natureza bastante técnica, ao lidar com questões morais, porém, a reflexão ética não deve ser pautada somente em aspectos técnicos, ou na percepção do profissional. As decisões clínicas, em situações de conflito moral, devem considerar a diversidade dos valores morais e dos aportes culturais que pautam as decisões dos indivíduos9. Esta percepção é necessária para compreender que aquilo que diferencia os profissionais dos pacientes e dos usuários é o saber técnico, o que não implica em superioridade moral10.

    A bioética clínica, neste sentido, tem como objetivo instrumentalizar as decisões éticas decorrentes da relação profissional de saúde-usuário. Um exemplo de dilema bioético que diz respeito ao uso de biomateriais decorre da ausência de conhecimento e do descuido em relação aos critérios de biossegurança na utilização odontológica desses materiais.

    Segundo Bugarin Jr. e Garrafa11 (2007), em pesquisa realizada com especialistas em periodontia, implantodontia e cirurgia e traumatologia buco-maxilo-facial, no Distrito Federal, os cirurgiões-dentistas pesquisados, ao utilizar biomateriais, incorrem em dois problemas éticos.

    O primeiro deles é a ausência do uso do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). O termo visa assegurar o fornecimento das informações necessárias para o consentimento dos procedimentos clínicos e sua ausência pode ser entendida como indício de uma relação assimétrica marcada pela diminuição de autonomia do usuário. Este indício é confirmado, de certa maneira, pelo segundo tipo de problema ético apontado pelo estudo: o desconhecimento, por parte dos profissionais, dos reais riscos e efeitos adversos possivelmente relacionados aos biomateriais11.

    O desconhecimento acaba por refletir na capacidade de informar o usuário que, consequentemente, acaba por ter sua autonomia diminuída. Assim, não é somente a ausência do uso do TCLE, detectada pela pesquisa, que atenta contra a autonomia do paciente, mas a própria falta de informações torna-se o principal impeditivo de uma decisão completamente autônoma11.

    Nesse sentido, é oportuno lembrar que a utilização de substâncias como os biomateriais odontológicos sobre os tecidos gengivais, mucosas e tecidos duros constitui um risco terapêutico que deve ser controlado pelo CD, por meio do conhecimento sobre as características, concentrações e propriedades dos produtos utilizados11.

    O uso de novos biomateriais e produtos sem a devida atenção aos critérios de biossegurança estabelecidos, além de gerar problemas clínicos como o insucesso terapêutico, criam problemas éticos, uma vez que o paciente pode ser submetido a uma terapêutica sem o conhecimento dos riscos12.

    O que se espera, portanto, de um dentista em nossos dias é estar familiarizado e atualizado a respeito dos materiais e técnicas que utiliza. Sobretudo, espera-se que o mesmo saiba compartilhar esta informação com o paciente para assim proporcionar-lhe não somente a melhor solução clínica, do ponto de vista técnico, mas também moral.

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Esta breve reflexão teve por intuito utilizar algumas situações clínicas rotineiras para apontar a importância da reflexão bioética para a prática odontológica.

    Dessa forma, além da dimensão científica e artística da Odontologia, é preciso não perder de vista a dimensão ética decorrente da atuação profissional sobre a saúde da população.

    A utilização do referencial bioético, portanto, para além da recomendação de princípios, auxilia na construção de uma relação menos assimétrica que considera e respeita a diversidade moral e cultural e que nela se pauta para as decisões éticas.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Sai YRKM, Siva Kishore N, Dattatreya A, Anand SY, Sridhari G. A review on biotechnology and its commercial and industrial applications. J Biotechnology & Biomaterials 2011; 1(7): 1-5.         [ Links ]

    2. O´Mathuna DP. Bioethics and Biotechnology. Cytotechnology 2007; 53(1-3): 113-19.

    3. Bugarin Jr JG, Pyrrho M, Maluf F. Bioética clínica e sua prática em Odontologia. In: Siqueira JE, Zoboli E, Kipper DJ. (Org.). Bioética clínica. 1a ed. São Paulo: Gaia, 2008. p. 111-31.

    4. Thomasma D. Clinical Bioethics in a postmodern age. In: Viafora C. Clinical bioethics: a search for the foundations. Dordrecht: Springer, 2005. p.3-20.

    5. Garrafa V. Bioética e Odontologia. In: Kriger L (Org). Promoção de saúde bucal. São Paulo: ABOPREV/ Artes Médicas, 2003. p.495-504.

    6. Segre M. Definição de bioética e sua relação com a ética, deontologia e diceologia. In: Segre M, Cohen C. (Orgs.) Bioética. São Paulo: Edusp, 2002. p.27-34.

    7. Clouser KD, Gert B. A critique of principlism. J Med and Philosophy 1990; 15(2): 219-36.

    8. Muirhead W. When four principles are too many: bloodgate, integrity and an action-guiding model of ethical decision making in clinical practice. J Med Ethics 2012; 38(4): 195-6.

    9. Maluf F, Carvalho GP, Diniz Jr JC, Bugarin Jr JG, Garrafa V. Consentimento livre esclarecido em Odontologia nos hospitais públicos do Distrito Federal. Cien Sau Col 2007; 12(6): 1737-46.

    10. Caplan A. Applying morality to advances in biomedicine. Can and should this be done? In: Bondeson WB, Engelhardt Jr. HT, Spicker SF, White Jr. JM. New Knowledge in the biomedical sciences. Some moral implications of its acquisition, possession and use. Dordrecht: Klwer, 1982. p.155-68.

    11. Bugarin Jr. JG, Garrafa V. Bioética e Biossegurança: o uso de biomateriais na prática odontológica. Rev Sau Pub 2007; 41(2): 223-28.

    12. Curtis RV, Watson TF. Dental biomaterials: imaging, testing & modelling. Cambridge: Woodhead publishing in materials, 2008.

     

     

    Recebido: 06/08/2015
    Aceito: 25/02/2016