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IJD. International Journal of Dentistry

versão On-line ISSN 1806-146X

IJD, Int. j. dent. vol.9 no.1 Recife Jan./Mar. 2010

 

RELATO DE CASO CASE REPORT

 

Diagnóstico de língua pilosa negra durante campanha de prevenção ao câncer de boca

 

Diagnosis of black hairy tongue during mouth cancer prevention campaign

 

 

Elaine Helena de OliveiraI; Ítala Laís Rodrigues CoelhoI; Mirna Marques BezerraII; Hellíada Vasconcelos ChavesIII; Delane Viana GondimIII; Antonio Alfredo Rodrigues e SilvaIII

IEstudante do Curso de Odontologia, Universidade Federal do Ceará - Campus Sobral
IIProfessora do Curso de Medicina, Universidade Federal do Ceará - Campus Sobral
IIIProfessor(a) do Curso de Odontologia, Universidade Federal do Ceará - Campus Sobral

Correspondência

 

 


RESUMO

A língua pilosa negra é uma condição benigna rara, comumente assintomática, que acomete, habitualmente, adultos e fumantes inveterados. É caracterizada pelo aumento das papilas filiformes do dorso lingual em conseqüência do aumento na produção de queratina ou por um decréscimo em sua descamação, mostrando um aspecto clínico marcante de "cabelos" na língua, suficiente para o seu diagnóstico, sem a necessidade de exames complementares. O tratamento consiste na remoção periódica das papilas hiperqueratóticas através do uso de escova de dente macia ou de um raspador de língua e na remoção de fatores associados à evolução do distúrbio. Este artigo relata um caso de diagnóstico clínico de língua pilosa negra durante exames realizados no decorrer de uma campanha de busca ativa de câncer bucal, no distrito de Jaibaras, município de Sobral - CE, em um paciente de 72 anos de idade, sexo masculino, edentado, etilista e fumante inveterado.

Palavras-chave: Língua Pilosa; Estomatologia; Diagnóstico.


ABSTRACT

The hairy tongue is a benign uncommon condition, non-symptomatic, that attacks, habitually, adults and inveterate smokers. The condition is characterized by the increase of lingual surface filamentous papillae in consequence of keratin production increase or of its fallen decrease, showing a "hair" clinical aspect of the tongue. This appearance is, frequently, enough to the diagnosis, without the need of complementary tests. The treatment consists of periodic hyperkeratotic papillae removal with soft toothbrush or tongue scraper and removal of associated factors on disorder evolution. This work presents a clinical diagnosis case of black hairy tongue, during a search campaign for oral cancer, in Jaibaras district of Sobral - CE, Brazil, in an alcoholic and inveterate smoker male 72 year-old edentulous patient.

Key words: Hairy Tongue; Stomatology; Diagnosis


 

 

INTRODUÇÃO

A língua pilosa é uma condição benigna incomum caracterizada pelo alongamento das papilas filiformes do dorso lingual, cuja causa parece estar relacionada à descamação defeituosa das papilas ou ao aumento da produção de queratina. Clinicamente, a condição apresenta o aspecto de pelos linguais, que podem ter diferentes colorações, desde o branco ao castanho, verde ou negro, dependendo de fatores extrínsecos (café, tabaco, chá e outros alimentos) ou intrínsecos (organismos cromogênicos da cavidade oral). Usualmente, a língua pilosa tem seu início na porção posterior do dorso lingual, próximo ao forame cego, estendendo-se lateral e anteriormente. Os pelos linguais podem chegar a 2 cm de comprimento. Os bordos linguais raramente estão envolvidos, e a condição pode estar associada a linfadenopatia cervical ou submandibular1-6

A prevalência da língua pilosa varia de 0,15 a 11,3% entre as populações, de acordo com diferentes estudos7-9, e ocorre com maior freqüência em homens, fumantes inveterados, usuários de drogas intravenosas, pacientes edêntulos com ingestão excessiva de café ou chá, idosos incapacitados e pacientes HIV-positivos2. No estudo de Jahanbani et al.9, dos 53 pacientes que apresentavam língua pilosa 71,9% eram do sexo masculino. Este dado é semelhante ao encontrado por Avcu, Kanli8 em que 70,9% dos 581 pacientes com língua pilosa também eram homens. Há um incremento na prevalência com a faixa etária e com o aumento do consumo de tabaco, café e chá.

A patogênese da língua pilosa é incerta, entretanto, parece que seu início está relacionado a mudanças no ambiente oral. Entre alterações químicas, físicas ou combinadas, da saliva ou da microbiota oral, os estudos ainda não apontam uma conclusão5. Como fatores etiológicos os trabalhos referem o uso de antibióticos de largo espectro (eritromicina) por longo período, o uso de agentes psicotrópicos (olanzapina, antidepressivos tricíclicos, benzodiazepínicos) e o uso de corticosteróides sistêmicos. Quadros de desidratação, debilitação geral, má higiene oral, consumo de álcool, tabaco, café e chá, infecções, nevralgia trigeminal, terapia de radiação de cabeça e pescoço, utilização de líquidos para limpeza bucal com antioxidantes ou antiácidos, pastas de dente contendo neomicina, e outros distúrbios sistêmicos como anemia, transtornos gastrintestinais e doenças imunodepressoras também aparecem na literatura como fatores etiológicos para a língua pilosa1,3,6,10,13-16.

Na maioria dos casos a língua pilosa é assintomática, e a busca por assistência odontológica se dá pela aparência pouco estética da lesão, causa de considerável preocupação e angústia por parte do paciente. O estudo de Míguez, Fernandez6 aponta a língua pilosa negra como um dos principais motivos de cancerofobia na cavidade oral. Alguns sintomas relatados pelo paciente incluem gosto metálico, náusea, halitose, coceira ou obstrução no palato mole durante a deglutição devido ao crescimento excessivo das papilas, e a sensação de língua ardente pelo crescimento de colônias de Candida albicans no espaço inter-papilar2.

O aspecto histológico normal das papilas filiformes humanas mostra, para cada papila, um eixo de tecido conjuntivo elevado recoberto por um epitélio estratificado parcialmente queratinizado. Pequenas protrusões de tecido conjuntivo partem do topo deste eixo central e são rodeadas por uma coluna de células epiteliais em processo de queratinização. Essas colunas ou escamas alongadas são conhecidas como papilas secundárias e apontam, caracteristicamente, para a faringe. O epitélio da superfície inter-papilar é não queratinizado. Dentro da área central de tecido conjuntivo, rodeada por anéis de 5 a 12 escamas epiteliais queratinizadas, existem células que produzem citoqueratina 4 (presente também no epitélio esofágico não queratinizado). As células da superfície inter-papilar também produzem essa citoqueratina. Uma fina banda de células produtoras de citoqueratina 1 (característica do epitélio da pele) está distribuída na base das escamas corneificadas, rodeando grupos de células produtoras de citoqueratina capilar11.

Conquanto não haja necessidade de exame histopatológico para confirmação diagnóstica, o achado mais marcante dos exames histopalógicos é a presença de numerosos pequenos fragmentos de células queratinizadas. Há descamação defeituosa das células na coluna central da papila filiforme, resultando na formação extremamente alongada sob a forma de escamas queratinizadas ou de pelos - marca típica da língua pilosa. O padrão de expressão da queratina na língua pilosa é semelhante ao encontrado no epitélio normal da língua, embora as células no centro da papila filiforme assim como aquelas na região inter-papilar possuam queratinas tipo-esôfago, e a coluna de células diretamente abaixo da escama queratinizada apresenta queratinas tipo-pele11,18.

Na maioria dos casos, o tratamento realizado por meio de medidas empíricas, como uso de escova de dentes macia ou raspador de língua, melhorias na higiene oral e eliminação de potenciais fatores ofensivos é normalmente suficiente para solucionar as lesões. Outras alternativas envolvem mudanças no estilo de vida, que inclui ingerir mais água e comer frutas e vegetais crus para promover descamação da língua. Intervenções farmacológicas raramente são requeridas, embora, em casos mais severos, antifúngicos, retinóides tópicos ou orais, ácido salicílico, vitaminas do complexo B, agentes ceratolíticos, como a podofilina, solução de uréia a 40% ou líquidos para limpeza bucal possam ser usados. Se outros tratamentos falharem, as papilas podem ser removidas usando-se técnicas como laser de dióxido de carbono e eletrodissecação. Cortar as papilas alongadas (usando anestesia local) ou excisão cirúrgica da papila são raramente necessárias, sendo sugeridas apenas como último recurso2-5,12,17,18

 

RELATO DE CASO

Paciente XXX de 72 anos de idade, sexo masculino, leucoderma, edentado, mas não-usuário de prótese dental, fumante e etilista, recebeu atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS) do distrito de Jaibaras, durante a III Campanha de Prevenção ao Câncer de Boca realizada no município de Sobral, Ceará, no mês de abril de 2009.

O exame intra-oral revelou a lesão característica de língua pilosa negra no dorso lingual do paciente (Figuras 1 e 2). Visualizou-se o aumento das papilas filiformes, com aparência de pelos, enegrecidas, envolvendo a maior parte do dorso lingual podendo, estas, serem levantadas com o uso da gaze. Não foi detectada linfadenopatia associada. Pequenas lesões leucoplásicas na forma de placas elevadas nos lábios, bochechas e região retro-molar também foram detectadas.

 

 

 

 

A anamnese resultou num relato curioso, em que o paciente revelou ser fumante inveterado desde a adolescência e, atualmente, fumava diariamente, porém de forma discreta, sem o conhecimento da cônjuge e dos filhos. Em suas próprias palavras: "doutor, eu fumo escondido há mais de 20 anos". Relatou também o uso esporádico de bebida alcoólica.

A campanha baseou-se na busca ativa de lesões orais sugestivas de câncer e no esclarecimento dos pacientes sobre fatores de risco para lesões malignas e, por isso, não foi possível acompanharmos o paciente para instituir um plano terapêutico da língua pilosa.

A grande demanda por atendimentos durante a campanha impossibilitou uma anamnese mais acurada que poderia revelar outros fatores associados à condição além dos que já foram citados. O paciente foi instruído quanto à higiene bucal e um apelo foi feito para o abandono do tabagismo e do etilismo. Em seguida o mesmo foi encaminhado para o Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) Sanitarista Sérgio Arouca, na sede do município de Sobral, para uma reavaliação da língua pilosa e das lesões leucoplásicas detectadas.

 

DISCUSSÃO

Sobral é a principal cidade do noroeste e a segunda mais importante do estado do Ceará em termos econômicos. Localizada a 240 Km de Fortaleza, possui uma área de 2.122km2, uma população de aproximadamente 180 mil habitantes e um IDH de 0,69919. Desde o ano de 2007, o município vem desenvolvendo campanhas de prevenção de câncer de boca junto às suas 48 Unidades de Saúde da Família. Além da detecção de lesões malignas em início de evolução, seu objetivo principal, as campanhas também têm o mérito de diagnosticar lesões estomatognáticas raras, como a língua pilosa negra. Campanhas de prevenção de câncer bucal têm grande importância em saúde pública, principalmente em ermos e pequenos distritos do interior do país, levando à população orientação, conhecimento e principalmente, encaminhando os pacientes para tratamento nos centros de referência.

A língua pilosa negra é uma condição benigna rara que está associada ao uso de tabaco, álcool e com a idade. Lesões potencialmente malignas como a leucoplasia estão frequentemente associadas nos pacientes portadores de língua pilosa18, provavelmente por relacionarem-se aos mesmos fatores de risco. A detecção de apenas um caso de língua pilosa negra durante a campanha é condizente com a raridade da lesão, embora essa incidência aumente com a faixa etária. Sua associação aos fatores de risco mencionados, entretanto, foi bem documentada neste caso, pois o paciente enquadrou-se em várias categorias (fumante inveterado a mais de 20 anos, etilista ocasional, e idoso). Além disso, o edentulismo e a presença de lesões associadas denunciam a higiene oral pobre do paciente, morador e trabalhador da zona rural.

 

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Correspondência:
Antônio Alfredo Rodrigues e Silva
e-mail: alfredodentista@gmail.com

Recebido em 11/09/2009
Aprovado em 18/02/2010