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Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial

On-line version ISSN 1808-5210

Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac. vol.10 n.1 Camaragibe Jan./Mar. 2010

 

ARTIGO DE CASO CLÍNICO

 

Ferimento a faca impactada na face (Síndrome de Jael): relato de caso

 

Impacted knife injuries of the face (Jael's Syndrome): a case report

 

 

Paulo Almeida JúniorI; Thiago de Santana SantosII; Paulo Nand KumarIII; Paulo Ricardo Saquete Martins FilhoII, IV; Ricardo Wathson Feitosa de CarvalhoV

IPhD. Professor da Disciplina de Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial do CESMAC – Maceió/AL. Cirurgião Buco-Maxilo-Facial do Hospital Governador João Alves Filho – Aracaju/SE
IICirurgião-Dentista graduado pela Universidade Federal de Sergipe - Aracaju/SE
IIICirurgião-Dentista do Serviço de Odontologia Hospitalar do Hospital Governador João Alves Filho – Aracaju/SE
IVMestrando em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Sergipe - Aracaju/SE
VCirurgião-Dentista graduado pela Universidade Tiradentes - Aracaju/SE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ferimentos a faca cravados na região maxilofacial são raros e pouco relatados na literatura. A importância do conhecimento acerca desses incidentes está no risco de vida ao paciente, especialmente nos casos em que envolvem estruturas cranianas nobres, grandes vasos sanguíneos e obstrução das vias aéreas por hemorragia. Será relatado um caso de um paciente do gênero masculino de 22 anos que foi ferido em uma briga e deu entrada no hospital com uma faca de cozinha cravada na região lateral do nariz e que tinha comunicação com a cavidade bucal. Apresentava-se consciente, hemodinamicamente estável e com as vias aéreas permeáveis. Foi realizado anestesia geral, e a faca foi removida, com cuidados, pela mesma via de entrada.

Descritores: Ferimentos Penetrantes. Ferimentos Perfurantes. Traumatismos Faciais.


ABSTRACT

Impacted knife injuries in the maxillofacial region are uncommon and scarcely reported in the literature. Knowledge regarding knife-inflicted trauma is of paramount importance because these injuries are life-threatening, especially in cases involving vital cranial structures, large blood vessels and airway obstruction caused by hemorrhage. Here we report the case of a 22-year-old male who sustainted a stab wound during a fight and was admitted to hospital with the blade of a kitchen knife lodged in the lateral region of the nose communicating with the oral cavity. The patient was conscious, stable hemodynamically, and presented permeable airways. General anesthesia was administered and the blade was carefully removed through the life entrance wound.

Keywords: Wounds, Penetrating. Wounds, Stab. Facial Injuries.


 

 

INTRODUÇÃO

O termo Síndrome de Jael tem sido utilizado na literatura baseado na passagem bíblica sobre o homicídio de Sisera por Jael (Judas IV:21). De acordo com Mckechnie1 o primeiro relato dessa Síndrome foi atribuído a Jefferson em 1968, o qual descreveu um grave ferimento acidental na região temporal de um garoto de 16 anos. Harris et al.2 definiram a Síndrome como um ferimento a faca, intencional, na região crânio-facial.

Os ferimentos a faca na região maxilofacial são relativamente raros, porém aqueles em que o objeto encontra-se cravado são extremamente raros e pouco relatados na literatura mundial3,4. Este tipo de ferimento pode levar o paciente a óbito, uma vez que pode atingir grandes vasos sanguíneos e ocasionar hemorragias. Quando há comunicação do ferimento com a cavidade oral ou nasal, esse sangramento pode ainda promover obstrução das vias aéreas5.

A abordagem nesse tipo de lesão deve ser sequencial e multidisciplinar, iniciando-se pela unidade de trauma que deverá promover manutenção das vias aéreas, estabilização hemodinâmica e ocasionalmente avaliação neurológica, oftalmológica e vascular2,6.

Com o objetivo de evidenciar e discutir o diagnóstico e tratamento desse tipo de lesão, será descrito um caso de ferimento a faca cravada na face.

 

RELATO DO CASO

Paciente do gênero masculino, feoderma, 22 anos, vítima de ferimento por arma branca foi conduzido à Unidade Hospitalar de Trauma com uma faca de cozinha inserida na região paranasal direita (D). Durante anamnese, ele relatou ocorrência de trauma durante uma agressão física, negando ocorrência de episódio emético e/ou perda de consciência.

Durante o primeiro atendimento, dentro dos requisitos protocolares do ATLS, o paciente encontrava-se consciente e orientado (Glasgow 15), hemodinamicamente estável (pressão arterial de 120/70 mm Hg, hemoglobina 12,0 g/dl) e vias aéreas permeáveis.

Ao exame físico extrabucal, observaram-se ferimentos corto-contusos em regiões supraorbitária direita (D) e paranasal (D), com penetração e impacção de uma faca em região paranasal (D) (Figura1 A;B). A disposição da faca na face denotava que o mecanismo da agressão foi deflagrado em sentido oblíquo, ântero-posterior, lateral-medial e de cima para baixo. Intrabucalmente, a presença da lâmina denotava um ferimento transfixaste, da região paranasal (D) para cavidade bucal, com a lâmina da faca sendo visualizada no palato duro à esquerda (Figura 2). A acuidade visual e motilidade ocular encontravam-se preservadas, e, em nenhum outro sistema corporal, havia alterações.

 


 

 

 

Foram realizadas radiografias em incidência póstero-anterior, lateral de crânio e perfil de face, para visualização da extensão, posição e trajeto da faca, apresentando penetração de aproximadamente nove centímetros em viscerocrânio (Figuras 3-A;B), não tendo penetração intracraniana.

 

 

Na oportunidade, foi realizada profilaxia antitetânica. O paciente foi submetido a procedimento cirúrgico, sob anestesia geral, para remoção da faca, sendo realizado movimento em sentido oposto ao mecanismo do trauma, não apresentando intercorrências hemorrágicas (Fig.7), prosseguindo-se irrigação copiosa com solução salina e síntese por planos (Figuras 4-A;B;C).

 


 

Durante o pós-operatório, não foram observados intercorrências, recebendo alta hospitalar dois dias após, não mais retornando para controle ambulatorial.

 

DISCUSSÃO

Ferimentos a faca cravados na face são raramente descritos na literatura. Cohen e Boyes-Varley7 relataram quatro casos de uma série de 37 pacientes com ferimentos penetrantes na face; Harris et al.2 descreveram quatro casos na região maxilofacial; Hudson6, em seu estudo na África do Sul, observaram quatro casos em um período de quatro anos; Shinohara Heringer e Carvalho8 demonstraram dois casos que ocorreram na mesma noite; Daya e Liversage3, em estudo na África do Sul, discutem 10 casos com esse tipo de lesão; Subburaman et al.4 relatam um caso recente, semelhante ao descrito neste artigo, em que a faca penetrou abaixo da pálpebra inferior esquerda e se comunicou com a cavidade oral, lacerando o palato.

Uma revisão dos aspectos socioeconômicos de 254 vítimas de ferimentos a faca e por arma de fogo foi descrita por Jett Van Hoy e Hamut9. As características dos pacientes estudados foram: homens negros, idade entre 15 e 35 anos, usuários de droga e baixo nível socioeconômico. Os incidentes ocorreram geralmente na sexta ou sábado à noite, entre 21 e 02h, ocasionados por brigas caseiras. O caso aqui relatado está parcialmente de acordo com a literatura, pois o paciente é do sexo masculino, apresentando 22 anos de idade, de baixo nível socioeconômico, tendo a agressão ocorrido na noite de sábado.

O exame clínico do paciente que apresenta ferimento a faca cravado na face deve ser realizado de uma forma sistemática6. Segundo Cohen e Boyers-Varley7 a região geniana é a mais acometida por esse tipo de ferimento, e nestes deve-se observar estruturas anatômicas importantes, como o nervo facial, glândula parótida e ducto parotídeo. Sangramento ativo do ferimento, presença de hematoma crescente, baixo nível de hemoglobina e presença de sinais de choque hipovolêmico durante admissão são indícios de lesão vascular associada10. A acuidade e motilidade ocular devem ser investigadas, pois ferimentos penetrantes na órbita estão freqüentemente associados a trauma ocular severo2,7,11. Nesse relato de caso, o ferimento ocorreu na região paranasal, não havia dano a estruturas anatômicas, não existiam indícios de lesão vascular associada, e a acuidade e motilidade oculares estavam preservadas.

Duas tomadas radiográficas (frontal e lateral) devem ser realizadas para determinar a localização do corpo estranho e sua relação com a fossa craniana2,3,8. No caso descrito, foram realizadas radiografias póstero-anterior e lateral de crânio, confirmando o trajeto descendente da lâmina da faca. Em casos mais complexos, a tomografia computadorizada torna-se imprescindível e um importante meio diagnóstico de lesões neurológicas. No caso de suspeita de lesão vascular ou proximidade anatômica com grandes vasos, pode-se realizar angiografia3,10. De acordo com Scheepers e Lownie12, e Subburaman et al.4, nos casos de hemorragias em locais inacessíveis, a angiografia, além de localizar o vaso sanguíneo, pode obstruí-lo através da embolização seletiva.

O tratamento deve priorizar inicialmente a estabilização do paciente com avaliação e manutenção das vias aéreas superiores, seguido de controle hemodinâmico e avaliação neurológica5. Somente após este atendimento primário, é que se deve proceder à remoção cuidadosa da lâmina da faca pelo mesmo trajeto de entrada, procedimento este melhor realizado sob anestesia geral2-4,7,8,13,14. O ferimento deve ser explorado, realizado hemostasia, irrigação copiosa com solução salina e sutura por planos8. Recomenda-se que sejam prescritos antibióticos durante o período pré e pós-operatórios bem como a profilaxia antitetânica2,3,6-8. O paciente aqui apresentado foi submetido à anestesia geral e a faca removida, cuidadosamente, sem dificuldades, pelo mesmo trajeto de entrada. Todos os cuidados pertinentes ao ferimento foram tomados bem como antibioticoterapia e profilaxia antitetânica.

Shinohara Heringer e Carvalho8 julgam a baixa ocorrência de ferimentos a faca cravados na região maxilofacial ao mecanismo de autodefesa, no qual a vítima acaba protegendo a face com as mãos durante a agressão.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A importância do conhecimento acerca deste incidente está no risco de vida ao paciente, especialmente nos casos que envolvem estruturas cranianas nobres, grandes vasos sanguíneos e obstrução das vias aéreas por hemorragia.

 

REFRÊNCIAS

1.McKechnie J. A severe craniofacial impalement injury (Jael's syndrome). Br J Oral Maxillofac Surg 1986 Aug;24(4):258-64.         [ Links ]

2.Harris AM, Wood RE, Nortjé CJ, Grotepass F. Deliberately inflicted, penetrating injuries of the maxillofacial region (Jael's syndrome). Report of 4 cases. J Craniomaxillofac Surg. 1988 Feb;16(2):60-3.         [ Links ]

3.Daya NP, Liversage HL. Penetrating stab wound injuries to the face. SADJ. 2004 Mar;59(2):55-9.         [ Links ]

4.Subburaman N, Sivabalan K, Ramachandran M, Chandrasekhar D. Impacted knife injury of the orbit, maxilla and oropharynx. Indian J Otolaryngol Head Neck Surg. 2005;57(4):347-50.         [ Links ]

5.Gussack GS, Jurkovich GJ. Penetrating facial trauma: a management plan. South Med J. 1988 Mar;81(3):297-302.         [ Links ]

6.Hudson DA. Impacted knife injuries of the face. Br J Plast Surg. 1992 Apr;45(3):222-4.         [ Links ]

7.Cohen MA, Boyes-Varley G. Penetrating injuries to the maxillofacial region. J Oral Maxillofac Surg. 1986 Mar;44(3):197-202.         [ Links ]

8.Shinohara EH, Heringer L, de Carvalho JP. Impacted knife injuries in the maxillofacial region: report of 2 cases. J Oral Maxillofac Surg. 2001 Oct;59(10):1221-3.         [ Links ]

9.Jett HH, Van Hoy JM, Hamit HF. Clinical and socioeconomic aspects of 254 admissions for stab and gunshot wounds. J Trauma. 1972 Jul;12(7):577-80.         [ Links ]

10.Kreutz RW, Bear SH. Selective emergency arteriography in cases of penetrating maxillofacial trauma. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1985 Jul;60(1):18-22.         [ Links ]

11.Orbay AS, Uysal OA, Iyigün O, Erkan D, Güldoğuş F. Unusual penetrating faciocranial injury caused by a knife: a case report. J Craniomaxillofac Surg. 1997 Oct;25(5):279-81.         [ Links ]

12.Scheepers A, Lownie M. The role of angiography in facial trauma: a case report. Br J Oral Maxillofac Surg .1994 Apr;32(2):109-10.         [ Links ]

13.Grobbelaar A, Knottenbelt JD. Retained knife blades in stab wounds of the face; is simple withdrawal safe?. Injury. 1991 Jan;22(1):29-31.         [ Links ]

14.Gardner PA, Righi P, Shahbahrami PB. Knife blade as a facial foreign body. Ann Otol Rhinol Laryngol .1997 Aug;106(8):710-3.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Thiago de Santana Santos
Rua Euclides Paes Mendonça, 394 - Cond. Costa do Sol, Ed. Malagá/804 - Bairro 13 de julho
Aracaju-SE CEP 49020-460
E-mail: thiago.ctbmf@yahoo.com.br

Recebido em 10/03/2009
Aprovado em 02/07/2009