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Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial

versão On-line ISSN 1808-5210

Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac. vol.11 no.2 Camaragibe Abr./Jun. 2011

 

 

Otite Média e Anquilose na Região Temporomandibular Causada por Fratura de Arma de Fogo. Relato de Caso

 

Otitis Media and Ankylosis in Temporomandibular Region Caused by Gunshot Fracture. Case Report

 

 

Juliana Vogas BairralI; Bruno Gomes DuarteII; Fernando Duque Lessa BastosIII; Hernando Valentim Rocha JúniorIII; Nicolas HomsiIV

I Aluna do Curso de Especialização em Cirurgia e Traumatologia BucoMaxilo-Facial, Hospital Geral de Nova Iguaçu (HGNI), Rio de Janeiro, Brasil.
II Cirurgião – Dentista, aluno do Programa de Curso Prática Profissionalizante em Cirurgia Bucal, Departamento de Estomatologia, Disciplina de Cirurgia, Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo (FOB-USP), Bauru, São Paulo, Brasil.
III Staff do Serviço de Cirurgia e Traumatologia BucoMaxilo-Facial do HGNI, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil.
IV Chefe de Serviço de Cirurgia e Traumatologia BucoMaxilo-Facial do HGNI, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As fraturas mandibulares ocupam o segundo lugar dentre todas as fraturas do esqueleto facial. Atualmente, com o aumento da violência nos grandes centros urbanos, houve, também, um aumento de fraturas decorrentes de armas de fogo em civis, tornando-se necessário o seu estudo para elaboração de protocolos de diagnóstico e tratamento desses pacientes. O presente trabalho visa apresentar um caso clínico de fratura condilar por arma de fogo, sendo esse trauma também responsável por anquilose na região da articulação temporomandibular do mesmo lado, bem como otite média.

Descritores: Fratura mandibular; Fratura condilar; Fratura por arma de fogo.


ABSTRACT

Mandibular fractures represent the most common facial fractures. Now, with the upsurge of violence in big citys, there was also an increase of fractures caused by gunshots on civilians, and its study for drawing up protocols of diagnosis and treatment of these patients. This work aims to present a clinical case of condilar fracture by gunshot, being this trauma also responsible for an ankylosis in the region of the temporomadibular joint, as well as an otitis.

Keywords: mandibular fracture, condylar fracture, gunshot fracture.


 

 

INTRODUÇÃO

A mandíbula apresenta-se como o único osso móvel do esqueleto facial, sendo articulada com a cabeça por meio de duas articulações, apresentando- se em formato de ferradura, na qual há uma área central resistente, sendo mais fraca nas suas extremidades1,2 apresentando-se como o osso mais comumente fraturado em decorrência da sua proeminência3, ocupando o segundo lugar dentre todas as fraturas do esqueleto facial3-6. Os agentes etiológicos das fraturas mandibulares podem variar de acordo com o local estudado6, sendo os mais comuns: acidentes automobilísticos1,3,6-9, acidentes esportivos1,3,6-9 , armas de fogo1,6,9 e fraturas patológicas9.

As fraturas por arma de fogo (PAF) podem estar relacionadas com dois tipos de projéteis: os de baixa velocidade (velocidade menor que 2.000 pés/s – aproximadamente 650 m/s) e os de alta velocidade (velocidade maior que 2.000 pés/s)10,11. Os ferimentos decorrentes de armas de fogo caracterizam-se por uma pequena lesão no ponto de entrada do projétil, podendo ocorrer uma ferida extensa no ponto de saída. Esses ferimentos podem estar relacionados com extensa destruição e avulsão de tecidos duros e moles, podendo, ainda, ocorrer desvitalização de tecidos adjacentes e fraturas ósseas, mesmo que essas estruturas não tenham sido atingidas10.

PAF originados de projéteis de baixa velocidade podem estar relacionados com laceração e esmagamento do tecido atingido; entretanto, nos projéteis de alta velocidade, são possíveis os mesmos danos, somando-se, ainda, cavitação temporária e ondas de choque e pressão11. No entanto, a destruição tecidual depende de alguns fatores como: o tipo de tecido atingido, o tipo de projétil (alta ou baixa velocidade) e o local do impacto12.

O presente trabalho tem como objetivo expor um caso clínico de um paciente que se apresentou com otite média e anquilose na região da articulação temporomandiular após trauma ocasionado por arma de fogo de baixa velocidade na região pré-auricular esquerda.

 

RELATO DE CASO

Paciente de 33 anos de idade, melanoderma, gênero masculino procurou o serviço de cirurgia e traumatologia buco-maxilo-facial do Hospital Geral de Nova Iguaçu (HGNI) em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, com queixa de otite no ouvido esquerdo, com limitação da abertura bucal. O paciente relatou ter sido vítima de bala perdida há 3 anos, sendo que, 2 anos antes de procurar o serviço, submeteu-se a um procedimento cirúrgico para remoção de uma massa óssea no local do trauma.

Ao exame clínico inicial, observou-se abertura bucal máxima de 3 mm bem como sintomatologia dolorosa relacionada com infecção no ouvido esquerdo, porém com ausência de sinais de lesão ou lesões ou perda de substância extrabucais. O traumatismo estava localizado na região auricular esquerda, sinal sugestivo de suicídio, sendo esse dado negativo, de acordo com informações colhidas (vítima de bala perdida). A limitação de abertura bucal prejudicou o exame intrabucal, porém não era observada perda dos elementos dentários.

A avaliação complementar deu-se com o auxílio de métodos de diagnóstico por imagem, em que se fez uso de radiografia póstero-anterior de face, Towne, lateral oblíqua de mandíbula e radiografia panorâmica, sendo possível observar alterações na forma do côndilo e da fossa articular, além da presença de imagens radiopacas mais concentradas medialmente à ATM. Nas imagens obtidas através da tomografia computadorizada volumétrica, notaram-se imagens sugestivas de pontes ósseas, unindo o côndilo à fossa articular, fragmentos de projéteis de arma de fogo bem como ausência de lesões na ATM contralateral. (Figura 1)

 

 

 

Os achados clínico e radiográfico levaram a uma hipótese diagnóstica de recidiva de anquilose na região de ATM esquerda, do tipo IV na classificação de Sawhaney13.

O tratamento cirúrgico proposto foi a artroplastia interposicional, seguida de coronoidectomia, sendo realizado em ambiente hospitalar sob anestesia geral, sendo a intubação realizada através de traqueostomia eletiva, em decorrência da limitada abertura de boca do paciente. O acesso foi realizado com o auxílio de uma incisão pré-auricular com extensão temporal14, procedeu-se à remoção do processo condilar, processo coronoide ipsilateral e coroidectomia contralateral15, além da remoção de dois fragmentos de chumbo (Figura 2). No transoperatório, conseguiu-se uma abertura bucal de 30mm. A remoção da peça anquilótica foi realizada com o auxílio de brocas montadas em peça reta, sob irrigação constante com soro fisiológico (Figura 3). No espaço gerado após a remoção da massa anquilótica, entre o osso temporal e o ramo mandibular esquerdo, foi realizado interposição com o auxílio de retalho do músculo temporal15, em que pode ser observada uma morbidade da área miofascial devido à primeira cirurgia (relatada pelo paciente), comprometimento da integridade do músculo temporal, que novamente foi ajustado à fossa articular e fixada com fio de nylon 3-0. Procedeu-se, então à sutura por planos.

 

 

 

 

 

Em acompanhamento pós-operatório, conseguiu-se uma abertura bucal de 30mm. No primeiro dia do pós-operatório, o paciente apresentava limitação na abertura bucal, decorrente de edema e trismo, sendo, nesse momento, iniciada a fisioterapia imediata. No sétimo dia de pós-operatório, o paciente teve alta hospitalar, com a cânula metálica da traqueostomia em desmame, e recebendo orientação de exercícios para movimentação mandibular. No controle pós-operatório de dois meses, o paciente apresentava abertura bucal de 25 mm, com desvio para o lado esquerdo, no movimento da abertura e contato oclusal prematuro do mesmo lado. Após quatro meses da intervenção cirúrgica, o paciente apresentava ausência de sinais clínicos de processo inflamatório ao material de interposição, manutenção da oclusão e abertura bucal de 30 mm com melhora parcial no desvio no movimento de abertura. Paciente encontra-se em acompanhamento ambulatorial no HGNI e, tendo sido, encaminhado ao otorrinolaringologista. Até o momento, teve a infecção cessada, porém a audição do ouvido esquerdo está comprometida.

 

DISCUSSÃO

As fraturas podem ser classificadas como: simples, compostas, cominutivas ou em galho-verde, sendo essa classificação baseada na condição dos fragmentos ósseos. Nos casos de fraturas originadas por PAF, a grande maioria apresenta-se como fraturas cominutivas16 com pequenas e/ou múltiplas linhas de fratura17. As lesões ocasionadas por arma de fogo na região de ATM podem ser responsáveis por lesões graves, decorrentes da energia cinética dissipada, sendo que tais lesões podem acometer não somente a região de ATM mas também nervos e músculos18.

Ao contrário do que pode se pensar, os projéteis não se apresentam estéreis, mas sim, como itens contaminados12,19. Isso se deve ao fato de esses projéteis atravessarem os tecidos e as roupas das vítimas, o que faz com que estes carreguem bactérias, somando-se a isso, a contaminação existente na cavidade bucal têm-se um maior risco de complicações pós-operatórias10,20 bem como um aumento da morbidade do ferimento10, sendo importante o uso de antibióticos para a prevenção de futuras infecções12.

As PAF apresentam-se com elevado índice de mortalidade17, sendo que essas poderiam ter sido evitadas em muitos casos10. Logo, um melhor prognóstico é esperado em casos nos quais se consegue uma correta estabilização dos sinais vitais do paciente bem como a determinação das prioridades de tratamento. Faz-se necessário reconhecer os ferimentos que apresentem risco à vida do paciente até o tratamento definitivo, sendo necessário utilizar uma avaliação sistemática e rápida do paciente por meio dos ABC's do trauma10,17,21.

Em um levantamento realizado com 196 pacientes que apresentavam-se com fraturas cominutivas de mandíbula, do total de 45 fraturas decorrentes de PAF, se apresentaram com 27,8% de taxa de complicações, incluindo infecções16. Neste trabalho, o paciente apresentou-se com otite média após a fratura na região da ATM, podendo essa infecção ser decorrente da energia cinética atribuída aos tecidos locoregionais.

O trauma decorrente de PAF na região da ATM apresenta transferência de grande quantidade de energia na região, que pode levar a danos nas estruturas anatômicas locais, como tecido ósseo e tecido cartilaginoso. Esses danos podem ser responsáveis por complicações, como edema e limitação de abertura bucal11,18. Embora o trauma sofrido relatado pelo paciente tenha ocorrida há 3 anos, este se apresentava com limitação de abertura bucal, concordando com dados da literatura.

O traumatismo decorrente da energia cinética dissipada pelo tecido ósseo e cartilaginoso na região de ATM, provavelmente, foi responsável pela anquilose dessa articulação bem como a otite média que o paciente relatava no momento do atendimento. Como o paciente se apresentava com limitação funcional, decorrente da anquilose da ATM esquerda, bem como a presença de otite, o planejamento cirúrgico foi a remoção cirúrgica do processo condilar, processo coronoide ipsilateral e coroidectomia contralateral15. Os fragmentos do projétil foram removidos devido à limitação funcional e à otite que o paciente relatava, sendo essas indicações coerentes com relatos da literatura odontológica22.

 

CONSIDERAÇÕES

O aumento da violência nos centros urbanos reflete diretamente no aumento, também, do número de pacientes vítimas de traumatismo, como pacientes vítimas de traumatismo por arma de fogo. Isso torna necessário o correto atendimento desses pacientes, principalmente com relação ao manejo inicial, para que seja possível uma diminuição dos índices de mortalidade relacionada a esse tipo de paciente.

 

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Endereço para correspondência:
Nicolas Homsi
Departamento de Cirurgia e Traumatologia BucoMaxilo-Facial
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