SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número3 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial

versão On-line ISSN 1808-5210

Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac. vol.11 no.3 Camaragibe Jul./Set. 2011

 

 

Abscesso Intracraniano de Origem Odontogênica – Relato de Caso

 

Intracranial abscess of odontogenic origin: a case report

 

 

Emerson Filipe de Carvalho NogueiraI; Gabriela Granja PortoII; Paulo Roberto CerqueiraIII

I Residente em CTBMF do Hospital Regional do Agreste.
II PhD em Cirurgia e Traumatologia Buco-Maxilo-Facial pela FOP-UPE, Staff do Hospital Regional do Agreste em Caruaru/PE.
III PhD em Implantodontia pela São Leopoldo Mandik, Staff do Hospital Regional do Agreste em Caruaru/PE.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Abscesso cerebral é uma doença rara, porém grave, com risco de vida para o paciente. Infecções dentárias têm sido ocasionalmente relatadas como uma fonte de bactérias, que podem dar origem a esse quadro clínico. Patógenos bucais de uma infecção odontogênica podem entrar no cérebro através de uma rota hematológica, linfática ou pela extensão direta através dos planos fasciais. O tratamento dos abscessos do sistema nervoso central é fundamentado em três pontos principais: tratamento clínico com antibióticos, tratamento neurocirúrgico do abscesso por método adequado e apropriado ao caso e tratamento do foco primário da infecção. O presente trabalho tem como objetivo relatar um caso clínico de um paciente apresentando abscesso cerebral cuja fonte infecciosa foi odontogênica, tendo ele sido tratado por meio da antibioticoterapia endovenosa e remoção da causa.

Descritores: Abscesso encefálico; Infecção Focal Dentária; Tratamento.


ABSTRACT

The cerebral abscess is a rare but serious life-threatening disease. Dental infections have occasionally been reported as a source of bacteria that can lead to this clinical picture. Oral pathogens from an odontogenic infection may enter the brain via a hematologic or lymphatic route, or by direct extension through the fascial planes. The treatment of abscesses of the central nervous system (CNS) is based on three main points: clinical treatment with antibiotics, neurosurgical treatment of the abscess using a method appropriate to the case, and treatment of the primary focus of infection. The aim of this paper is to report the case of a patient with a brain abscess whose source of infection was odontogenic and which was treated with intravenous antibiotics and removal of the cause.

Keywords: Brain abscess; Focal Infection, Dental; Treatment.


 

 

INTRODUÇÃO

Abscesso cerebral é uma doença rara, porém grave, com risco de vida e se constitui em uma área localizada com supuração cerebral. Usualmente, ocorre após trauma craniano, cirurgia ou secundariamente por um foco séptico em outros locais distribuídos por extensão direta ou via hematológica1,2. Recentes avanços nas técnicas de diagnóstico por imagem e o desenvolvimento de antibióticos eficazes ajudaram a reduzir a taxa de mortalidade3.

Infecções dentárias têm sido ocasionalmente relatadas como uma fonte de bactérias que podem dar origem a um abscesso cerebral. Sinusite maxilar e metástase hematogênica são sugeridas como o mecanismo que leva uma infecção dentária, a um quadro de abscesso cerebral3. Patógenos bucais de uma infecção odontogênica podem entrar no cérebro através de uma rota hematológica (artéria facial, angular, oftálmica, propagação do seio cavernoso), linfática ou pela extensão direta através dos planos fasciais4.

O tratamento dos abscessos do sistema nervoso central (SNC) é fundamentado em três pontos: tratamento clínico com antibióticos, tratamento neurocirúrgico do abscesso por método adequado e apropriado ao caso e tratamento do foco primário da infecção. Uma vez estabelecido o diagnóstico, o tratamento empírico com antibióticos de largo espectro, com boa penetração no SNC e que alcance aeróbios e anaeróbios deve ser imediatamente iniciado, tendo como base os dados da literatura sobre os germes mais prováveis, até que se processem os exames necessários para isolamento definitivo do agente5. O tratamento clínico sem cirurgia é possível e eficiente em um grupo selecionado de pacientes. Quando o paciente apresenta um abscesso cerebral de origem odontogênica, deve-se observar que a decisão de tratar a doença dental radicalmente ou mais conservadoramente depende do estado médico geral do paciente, da severidade da doença dental, do entendimento do tratamento dental pelo paciente e dos bons métodos de higiene oral6.

O presente trabalho tem como objetivo relatar um caso clínico de um paciente apresentando abscesso cerebral cuja fonte infecciosa foi odontogênica.

 

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 9 anos de idade, faioderma, referindo odontalgia e letargia foi encaminhado ao Setor de Cirurgia Oral e Maxilofacial do Hospital Regional do Agreste, Caruaru-PE, Brasil. Ao exame físico, observou-se elemento dentário 36 com lesão cariosa extensa. Devido à sua condição geral, o paciente foi internado no hospital para a realização de antibioticoterapia endovenosa. Uma semana após, a infecção se difundiu, e ele apresentou abscesso periorbitário e hemiplegia no lado direito da face. Com base nesse quadro clínico, o diagnóstico de abscesso cerebral foi sugerido (Figura 1), e uma tomografia computadorizada foi realizada com o objetivo de confirmar o diagnóstico (Figura 2). Confirmado o diagnóstico, a ressonância magnética mostrou precisamente os limites da lesão por meio de uma imagem localizada no espaço mastigatório, epidurais intracranianos (assoalho da fossa média) à esquerda e também sinais de meningo-encefalite com êmbolos sépticos intra-axiais (Figura 3). Então, optou-se por remover o dente, além de iniciar antibioticoterapia endovenosa com clindamicina 600mg 2ml diluídos em 20 ml de água destilada (AD), de 8 em 8 horas, e Targocid® (teicoplanina) 400mg 1,8 ml diluídos em 20ml de AD, de 12 em 12 horas, durante 15 dias, conduta essa que controlou a infecção (Figura 4).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Os abscessos cerebrais são raros e normalmente originários de infecções de origem odontogênica e maxilo-faciais, podendo colocar em risco a vida dos pacientes acometidos, se não tratados precocemente e de maneira adequada1. Apresentam uma prevalência de 1 para cada 100.000 habitantes, com um percentual de mortalidade entre 0 e 24%7.

Segundo Shotelersuk et al. 8, o abscesso cerebral ocorre entre 13 -22% de todos os processos infecciosos intracranianos. Em muitas publicações em séries, a sinusite paranasal foi a causa mais comum do abscesso cerebral, ocorrendo em 56-77% dos casos. Seguida por ordem, as causas mais comuns são meningite, infecção otogênica e trauma. Numa maior publicação de séries de 699 casos de abscesso cerebral, infecção dental foi a quinta mais comum causa, ocorrendo em 5 casos (0,7%). Embora o abscesso cerebral seja uma complicação por infecção dental bem documentada, ainda é notavelmente uma ocorrência rara.

Os procedimentos buco-dentais que podem causar abscesso cerebral incluem cirurgia dento-alveolar, dentística operatória, terapia periodontal, infiltração de anestésico local bucal e profilaxia dental. Patógenos bucais de uma infecção odontogênica podem entrar no cérebro por meio de uma rota hematológica (artéria facial, angular, oftálmica, propagação do seio cavernoso), uma rota linfática, ou pela extensão direta por meio dos planos4.

Em virtude da relativa raridade, o diagnóstico dessa condição tão ameaçadora é um desafio significativo para todos os profissionais envolvidos, uma vez que ocorre "espontaneamente", e a fonte de infecção deve ser identificada rapidamente2. O diagnóstico é baseado no quadro clínico, exame neurológico, exames complementares de neuroimagem, como a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM). A piora ou morte súbita de um paciente pode indicar a ruptura do abscesso, uma complicação gravíssima com alta mortalidade. Nesses casos, há elevação súbita da pressão intracraniana e toxemia intensa pela libração do conteúdo purulento do abscesso dentro do parênquima. Em alguns casos de fístula, o material purulento pode sair em grande quantidade pelo ouvido, nariz ou pelo trajeto fistuloso5.

Febre, convulsões e déficit motor são algumas das características clínicas comumente encontradas no abscesso cerebral6,8. Vialogo et al. 5 acrescentam outros possíveis sintomas, como mal-estar, fotofobia, rigidez da nuca, colapso circulatório, cefaleia, náuseas, vômitos e papiledema (edema da papila óptica).

Existem três fases clínicas na evolução do abscesso: uma inicial, em que há mal-estar geral, febre, cefaleia e possível evidência de foco infeccioso primário; a segunda seria de latência e remissão dos sintomas sistêmicos e a terceira caracteriza-se pelo quadro fraco de processo expansivo intracraniano, com hipertensão intracraniana e sinais neurológicos focais. A velocidade com que esse quadro clínico se instala é variável e dependente de vários fatores, de tal modo que a distinção dessas fases pode não ser claramente percebida. Da mesma forma, podem todas estarem presentes ao mesmo tempo, em graus variados. É necessária uma história clínica detalhada, um exame minuncioso do paciente à procura de focos infecciosos e um alto grau de suspeição por parte do médico examinador. O nível de consciência do paciente, no momento da admissão ou no primeiro exame, é um dos dados clínicos mais importantes para se relacionar com o prognóstico5. Provavelmente, o paciente relatado neste trabalho encontrava-se na fase inicial, pois ele procurou o serviço referindo odontalgia e letargia, não tendo sido observado alteração no nível de consciência.

A TC modificou radicalmente a evolução dos abscessos cerebrais, permitindo diagnóstico mais apurado da lesão e sua localização mais bem definida, sendo o exame de primeira escolha, fornecendo importantes dados adicionais: estágio evolutivo, loculação, presença de edema cerebral, desvios da linha média, hidrocefalia associada e parâmetros para cirurgia estereostática ou neuroendoscópica. A RM também contribui para o diagnóstico dos abscessos cerebrais, devendo ser utilizada onde for disponível, tendo a mesma validade que a TC4. Esta possui mais sensibilidade que a TC para detecção de pequenas coleções fluidas devido à ausência de artefatos no crânio e à capacidade de mostrar imagem multiplanar. Recentemente, os avanços nessas técnicas de imagem como também a introdução de mais antibióticos têm reduzido a mortalidade a uma taxa de 0-24%4.

Os organismos responsáveis pelo abscesso cerebral usualmente refletem o curso primário da infecção. A maioria dos abscessos cerebrais de origem oral produzem microorganismos anaeróbios (facultativa ou estrito), principalmente porque seu crescimento é favorecido por baixas concentrações de oxigênio no cérebro, no interstício cerebral e nas áreas infartadas que originam o próprio abscesso. Entre os anaeróbios facultativos, os mais comuns são Streptococcus viridans, seguido de Actinomyces spp. e Eikenella spp. Com relação a anaeróbios estritos, predominam Bacteroides spp. e Fusobacterium spp.2,6,9. Também considerando que o abscesso cerebral é frequentemente polimicrobiano, alguns outros microorganismos, tais como Staphylococcus aureus e bactérias anaeróbicas facultativas Gram-negativos (i.e. Enterobacteriaceae), têm sido relatados como uma microflora causal, dependendo da fonte de infecção4.

Para o isolamento do germe, o melhor procedimento é a neurocirurgia, por meio de trépano-punção, punção por estereotaxia ou neuroendoscopia. Nesses casos, pode haver dupla vantagem: drenagem do material com alívio da hipertensão intracraniana e obtenção do material para estudo. Material purulento de focos externos, como auricular, nasal, abscessos subcutâneos ou de feridas cirúrgicas, devem ser cultivados em meios apropriados. Esse procedimento, muitas vezes, é relegado a um segundo plano, pois a atenção é direcionada, para se obter material do abscesso. Entretanto, o germe causador do abscesso tem grande probabilidade de ser o mesmo das descargas piogênicas externas5. No caso apresentado, não foi realizada a drenagem cirúrgica, pois ele apresentou resposta satisfatória ao tratamento clínico.

Vialogo et al.5 afirmam que o método ideal de tratamento dos abscessos do SNC ainda é controverso e achar o melhor método é um desafio. Entretanto, a literatura afirma que o tratamento dos abscessos do SNC é fundamentado em três pontos: tratamento clínico com antibióticos, tratamento neurocirúrgico do abscesso por método adequado e apropriado ao caso e tratamento do foco primário da infecção. O tratamento ideal dos abscessos do SNC está longe de ser definitivamente estabelecido devido a uma série de variantes que influenciam a evolução dessa grave patologia.

Sobre um ponto, entretanto, não há controvérsia: uma vez estabelecido o diagnóstico, o tratamento com antibióticos de largo espectro, com boa penetração no SNC e que alcance aeróbios e anaeróbios deve ser imediatamente iniciado, tendo como base os dados da literatura sobre os germes mais prováveis, enquanto se processam os exames necessários para isolamento definitivo do agente5. Para Mueller et al.6 uma cefalosporina de terceira geração associada a um antibiótico antiestafilocócico geralmente é recomendada. Na fase de cerebrite, a antibioticoterapia é a única forma de tratamento possível, podendo ser curativa. Não há consenso sobre a duração do tratamento dos abscessos, mas geralmente deve ser mantido durante seis a oito semanas, com TC seriada.

Se o abscesso não estiver melhorando, indica-se o tratamento neurocirúrgico adequado ao caso. O tratamento clínico sem cirurgia é possível e eficiente em um grupo selecionado de pacientes. Isso requer um minucioso exame clínico, pacientes com pouca sintomatologia e totalmente despertos, sem comprometimento da consciência, sem sinais de hipertensão intracraniana, com lesões relativamente pequenas, menores do que 3,5cm em diâmetro. É especialmente indicado em pacientes com múltiplos abscessos. Deve haver uma observação clínica cuidadosa e TC seriada. A craniotomia para ressecção total do abscesso com excisão da cápsula também tem suas vantagens, segundo algumas séries, pois é uma cirurgia definitiva e diminui o tempo de tratamento. Entretanto, é contraindicada nos estágios precoces e quando o abscesso é profundo e em áreas eloquentes, quando o risco de lesão ao córtex funcional adjacente pela cirurgia é considerável5. No caso relatado, após exame clínico minuncioso, em que foi observado foco dentário infeccioso, associado com a queixa de odontalgia e letargia, observações de alterações nos exames de imagem e após eliminação de outras possíveis causas, foi concluído o diagnóstico de abscesso intracraniano de causa dentária. A partir daí, optou-se pela remoção do elemento dentário cariado e iniciou-se antibioticoterapia endovenosa com clindamicina 600mg e a teicoplanina 400mg, que é um antibiótico do grupo dos glicopeptídios, ativo contra estafilococos durante 15 dias. Nesse caso, o paciente respondeu bem ao tratamento terapêutico, não sendo necessária qualquer conduta cirúrgica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando o paciente apresenta abscesso cerebral de origem odontogênica, deve-se observar que a decisão de tratar a doença dental radicalmente ou mais conservadoramente depende do estado médico geral do paciente da severidade da doença dental, do entendimento do tratamento dental pelo paciente e dos bons métodos de higiene oral. Então, todas as opções de procedimentos terapêuticos devem ser oferecidas, por exemplo, cirurgia periodontal, terapia do canal radicular, cirurgia endodôntica e dentística restauradora. Em relação ao tratamento do abscesso cerebral, a opinião do neurocirurgião é mandatória e leva em consideração a extensão da lesão e a resposta ou não à antibioticoterapia sistêmica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Corson MA, Postlethwaite KP, Seymour RA: Are dental infections a cause of brain abscess? Case report and review of the literature. Oral Dis 2001; 7: 61–65.

2. Wagner KW, Schön R, Schumacher M, Schmelzeisen R, Schulze D. Case report: brain and liver abscesses caused by oral infection with Streptococcus intermedius. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2006; 102: e21-e23.

3. Sakamoto H, Karakida K, Otsuru M, Arai M, Shimoda M. A case of brain abscess extended from deep fascial space infection. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2009; 108: e21-e25.

4. Mylonas AI, Tzerbos FH, Mihalaki M, Rologis D, Boutsikakis I. Cerebral abscess of odontogenic origin. Journal of Cranio-Maxillofacial Surgery 2007; 35: 63–67.

5. Vialogo JGG, Sanches MCA. Abscesso cerebelar tratado clinicamente. Arq Neuriosiquiatr 2001; 59 (3-B): 824-828.

6. Mueller AA, Saldamli B, Stübinger S, Walter C, Flückiger U, Merlo A, Zimmerer KS, Zeilhofer HF, Zimmerer S. Oral bacterial cultures in nontraumatic brain abscesses: results. of a first-line study of a first-line study. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2009; 107: 469-476.

7. Jiménez Y, Bagán JV, Murillo J, Poveda R. Odontogenic infections. Complications. Systemic manifestations. Med Oral Patol Oral Cir Bucal 2004; 9 Suppl: S1 39-47.

8. Shotelersuk V, Goyal M, Rauchenstein JN, Konez O. Subdural empyema secondary to odontogenic masticator space abscess: Detection by indium-111-labeled white cell scan. Journal of Clinical Imaging 2001; 25: 18-22.

9. Posse JL, Carmona IT, Feijoo JF, Vázquez CM, Iglesias AC, Dios PD. Abscesos cerebrales de origen oral. REV NEUROL 2003; 37 (3): 201-206.

 

 

Endereço para correspondência:
Emerson Filipe de Carvalho Nogueira
Rua 15 de março, 242 -Bongi. Recife, PE-Brasil CEP: 50761-070

e-mail:
emerson_filipe@hotmail.com