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Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial

On-line version ISSN 1808-5210

Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac. vol.14 n.3 Camaragibe Jul./Sep. 2014

 

 

Qual o papel dos protetores bucais na redução da prevalência e da gravidade da concussão cerebral em esportes?

 

 

What is the role of mouthguards in reducing the prevalence and severity of concussion in sports?

 

 

Clara PadilhaI; Eli Luis NambaII; Neide Pena CotoIII

IMestranda de Odontologia em Saúde Coletiva, Departamento de Odontologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.
IIDoutor em Odontologia, Departamento de Odontologia, Universidade Positivo, Curitiba, Paraná, Brasil.
IIIDoutora em Materiais Dentários, Departamento de Cirurgia, Prótese e Traumatologia Maxilofaciais, São Paulo, São Paulo, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


Descritores: Saúde Bucal, Protetor Bucal, Traumatimos Craniocerebrais, Concussão Encefálica.


Descriptors: Oral Health, Mouthguard, Craniocerebral Trauma, Brain Concussion.


 

 

Inúmeros pesquisadores, ao longo dos últimos anos, têm avaliado o número de lesões orofaciais ocorridas durante a prática de desportos, e somamse a eles outros estudos que mostram que durante temporadas em que se usaram protetores bucais, verificou-se a diminuição de lesões dentárias, da cabeça (concussão) e do pescoço.1, 4, 5, 6

Além da proteção contra o traumatismo alvéolodentário especificamente, outro fator a ser considerado é o efeito neurológico de golpes diretos na cabeça ou o efeito indireto da rápida aceleração ou desaceleração após o impacto.5

A redução da prevalência da concussão cerebral relacionada ao uso do protetor bucal esportivo é uma questão controversa e sua discussão está sendo solicitada pelo mundo esportivo atualmente, especialmente para esportes de alto impacto, como o hóquei, futebol americano e o futebol. Muitas ligas menores de hóquei introduziram o uso do protetor bucal em seus regulamentos mais pela preocupação com concussões do que com questões odontológicas. Por essa razão essa discussão é importante.

A concussão cerebral resulta de forças acelerativas sobre a cabeça e o cérebro que podem ocorrer com ou sem impacto.6 É a perda da consciência de curta duração que acontece logo após um traumatismo craniano (bater com a cabeça).

Esse tipo de lesão tem uma alta prevalência, aproximadamente 300.000 casos por ano somente nos EUA.7 No contexto esportivo, o futebol americano contém 63,4% dos casos de concussão observados em escolares por dois anos, seguidos pela luta livre com 10,5%, futebol com 5,5% e basquete com 5,1%.8 Ainda faltam estudos epidemiológicos sobre concussões de origem esportiva no Brasil.9

Uma concussão pode deixar o indivíduo confuso, com dor de cabeça, com uma sonolência anormal podendo ser acompanhada de tontura, dificuldade de concentração, esquecimento, depressão, falta de sensibilidade ou de emoções e ansiedade. Diferentemente da contusão, as concussões causam uma disfunção cerebral temporária, sem apresentar fratura do crânio ou feridas na cabeça. Elas podem ocorrer mesmo após um traumatismo crânio-encefálico menor, dependendo da intensidade com que o cérebro foi mobilizado no interior da caixa craniana.

A maioria dos indivíduos recupera-se completamente em algumas horas ou dias, sem necessitar de nenhum tipo de tratamento específico. Mas é necessário que este fique sob observação médica por pelo menos 12 horas. Durante este tempo recomenda-se fazer uma ressonância magnética ou tomografia computadorizada para verificar a integridade cerebral.

Os benefícios potenciais de protetores bucais devidamente ajustados para a redução da prevalência ou gravidade de concussões baseiam-se em três teorias (lembrando que estas são teorias e que justamente por isso não são comprovados na literatura científica):
1. Dissipação e/ou absorção de força de um golpe de baixo para cima (direto no queixo).
2. Aumento da separação da cabeça do côndilo e fossa glenóide.
3. Maior estabilização da cabeça ativando e fortalecendo os músculos do pescoço. Impactos dirigidos axialmente contra o queixo podem levar a uma absorção de energia pela cabeça da mandíbula ou pela sínfise mandibular, e pelos pré-molares ou molares superiores e inferiores, que podem gerar fraturas ou luxação da mandíbula ou da ATM, e fraturas coronárias ou coronoradiculares. O envolvimento cerebral nesses casos deve sempre ser considerado.10 Com a presença de um protetor bucal personalizado e devidamente ajustado e adaptado essa energia do impacto seria absorvida pelo protetor bucal e apenas uma porção reduzida alcançaria os ossos da face.

Estudando por cinco anos as injúrias de cabeça e pescoço em jogadores de futebol americano do time de Notre Dame, pesquisadores perceberam que durante uma temporada com uso de protetores bucais houve diminuição de injúrias dentais, de cabeça (concussão) e pescoço. Submeteram alguns atletas a radiografias laterais de cabeça e pescoço com e sem protetor e constataram que o côndilo mandibular, quando o protetor está posicionado no arco dental, fica mais afastado da fossa mandibular.11

Para relatar a pressão de deformação intracraniana e sua relação com o uso do protetor bucal (Figura 1), pesquisadores utilizaram dois tipos de protetores, o primeiro de copolímero de etileno e acetato de vinila (EVA) e o segundo de borracha de látex e os adaptaram em cadáveres. O impacto foi reproduzido por um disco de metal. Concluíram que a presença do protetor bucal diminuiu a pressão e deformação intracraniana, minimizaram danos ao côndilo, região da ATM evitando a concussão.12

 

 

 

Ao acompanhar a evolução dos casos de concussão ocorridos durante a prática de futebol americano, pesquisadores notaram que 34% dos casos retornaram aos treinos e competições após 3 meses; e 24% apresentaram déficit neurocognitivo. Constataram que 22% dos 550 jogadores entrevistados apresentaram alguma injúria de cabeça e pescoço no decorrer da vida atlética. Os autores concluem que o uso do protetor bucal minimiza intervenções, custos e problemas psicológicos e cognitivos que uma injúria de cabeça pode acarretar.13

Anatomicamente, à medida que abrimos a boca, o côndilo sofre rotação, seguida de uma translação para baixo e para a frente, sobre a superfície da eminência articular. A teoria é que com a presença de um protetor bucal a mandíbula estaria em uma posição menos susceptível à concussão.

Num golpe dirigido ao queixo, a força aplicada é transmitida através da mandíbula de uma boca sem protetor, e contra o osso temporal, que contém vários pontos anatômicos importantes. Com o uso de protetores bucais, a maxila estaria mais separada da mandíbula e assim, prevenindo que os côndilos se desloquem para cima e para trás. Ao corroborar com esta teoria, alguns autores sugerem que deve ser confeccionada uma maior espessura em áreas oclusais posteriores, especialmente em esportes de alto contato.14 Mais uma vez, embora possa ser vantajoso aumentar significativamente este espaço para proteção, uma espessura excessiva de material pode comprometer o conforto e o desempenho, por interferir nas trocas gasosas.

Raramente ocorre afundamento do côndilo provocado por trauma, mesmo havendo apenas 2 mm de espessura óssea da parede da fossa mandibular. Além disso, a existência do disco articular de estrutura fibrosa, com fibras orientadas nas várias direções permite suportar as zonas de pressão e distribuí-las por uma área maior.

Ao ser administrada uma pancada no queixo, se a boca estiver aberta, o impacto será distribuído para o côndilo do lado oposto, que irá pressionar o disco.

Estando a boca fechada, a pressão resultante da pancada no queixo será distribuída mais diretamente à ATM, uma vez que o côndilo está numa posição mais para trás e para cima; no entanto, o disco também efetua a sua função de distribuição de forças. Por esta razão, mesmo havendo uma espessura óssea na porção articular do osso temporal de apenas 2 mm, o disco permite que a pressão conduzida pelo côndilo seja distribuída, não havendo um afundamento do côndilo.15

Alguns profissionais acreditam que a força necessária para que uma concussão ocorra quando músculos da cabeça e pescoço estão fixos é quase o dobro da força necessária para provocar a mesma lesão em músculos não fixos. Por ativar músculos adicionais da cabeça e pescoço na hora do impacto o arco de rotação pode diminuir, levando a um movimento cerebral menos prejudicial dentro do crânio. Pesquisadores relatam que ao ocluir com maior força sobre protetores bucais a ativação de músculos da cabeça e pescoço serviria para estabilizar a cabeça.

Porém, ainda não foram realizados estudos experimentais randomizados e controlados que evidenciem ou refutem a ideia de que um protetor bucal possa reduzir o risco de acontecer uma concussão cerebral, embora possamos encontrar na literatura estudos que corroboram com essa ideia12,14,16 e estudos que não admitem a relação entre elas.15,16,21 Porém os resultados continuam inconclusivos20 e como essa ausência de evidências não significa que elas não existam, pesquisas nesse sentido devem continuar sendo realizadas.21

Devemos sempre lembrar que o principal papel de protetores bucais é a proteção contra traumatismos alvéolo-dentários e estruturas orofaciais e devem ser projetados principalmente para alcançar este objetivo. Existem alguns elementos básicos no desenho do protetor bucal que podem melhorar os aspectos potenciais de prevenção como sua espessura adequada e cobertura da superfície oclusal e tecidos moles. A retenção e adaptação dos protetores devem ser adequadas para que se mantenham no lugar durante um impacto e, todos os protetores bucais devem ser ajustados e equilibrados oclusalmente para assegurar uma distribuição uniforme da força por toda a superfície.

Muitos atletas simplesmente não estão esclarecidos sobre as implicações para a saúde que uma lesão traumática representa ou do risco de sofrer tais lesões durante a prática desportiva. É papel de o cirurgião-dentista informar atletas, técnicos e pacientes sobre a importância dos protetores bucais na prevenção de lesões orofaciais no esporte, para garantir que escolas e faculdades recebam aconselhamento adequado e saibam dos benefícios da saúde preventiva.22

 

REFERÊNCIAS

1. Marshall SW, Waller AE, Loomis DP, Feehan M, Chalmers DJ, Bird YN, et al. Use of protective equipment in a cohort of rugby players. Med. Sci. Sports Exerc. 2001 Dec;33(12):2131–8.

2. Marshall SW, Loomis DP, Waller AE, Chalmers DJ, Bird YN, Quarrie KL, et al. Evaluation of protective equipment for prevention of injuries in rugby union. Int. J. Epidemiol. 2005 Feb;34(1):113–8.

3. Nowjack-Raymer RE, Gift HC. Use of mouthguards and headgear in organized sports by school-aged children. Public Health Rep. 2000;111(1):82–6.

4. Heintz WD. Mouth protectors: a progress report. Bureau of Dental Health Education. J. Am. Dent. Assoc. 1968 Sep;77(3):632–6.

5. Scheer B. Prevenção dos Traumatismos Dentais e Orais. In: Andreasen JO, Andreasen FM, editors. Texto e Atlas Color. traumatismo Dent. 3a ed. Porto Alegre: ArtMed Editora; 2001. p. 770.

6. Gennarelli TA. Mechanisms and pathophysiology of cerebral concussion. J. Head Trauma Rehabil. 1986;1(2):23–9.

7. Gessel LM, Fields SK, Collins CL, Dick RW, Comstock RD. Concussions among United States high school and collegiate athletes. J. Athl. Train. 2007;42(4):495–503.

8. Powell JW, Barber-Foss KD. Injury patterns in selected high school sports: a review of the 1995-1997 seasons. J. Athl. Train. 1999 Jul;34(3):277–84.

9. Lage GM, Ugrinowitch H, Malloy-Diniz L. Práticas Esportivas. In: Abreu LFM-DDFPMN, editor. Avaliação Neuropsicol. ArtMed; 2010. p. 432.

10. Andreasen FM, Andreasen JO. Exame e Diagnóstico dos Traumatismos Dentais. In: Andreasen FM, editor. Texto e Atlas Color. traumatismo Dent. 3rd ed. Porto Alegre: ArtMed Editora; 2001. p. 195–217.

11. Stenger JM, Lawson EA, Wright JM, Ricketts J. Mouthguards: Protection against shock to head, neck and teeth. J. Am. Dent. Assoc. 1964 Sep;69:273–81.

12. Hickey JC, Morris AL, Carlson LD, Seward TE. The relation of mouth protectors to cranial pressure and deformation. J. Am. Dent. Assoc. 1967 Mar;74(4):735–40.

13. Guskiewicz KM, Bruce SL, Cantu RC, Michael S, Kelly JP, Mccrea M, et al. National Athletic Trainers ' Association Related Concussion. J. Athl. Train. 2004;39(3):280–97.

14. Winters JE. Commentary : Role of Properly Fitted. J. Athl. Train. 2001;36(3):339–41.

15. Santiago E, Simões R, Soares D, Pereira JA, Caldas T. Protector Bucal " Custom-Made " Indicações , Confecção e Características Essenciais. Arq. Med. 2008;22(1):25–33.

16. Murakami S, Maeda Y, Ghanem A, Uchiyama Y, Kreiborg S. Influence of mouthguard on temporomandibular joint. Scand. J. Med. Sci. Sport. 2008;18:591–5.

17. Mihalik JP, McCaffrey M a, Rivera EM, Pardini JE, Guskiewicz KM, Collins MW, et al. Effectiveness of mouthguards in reducing neurocognitive deficits following sports-related cerebral concussion. Dent. Traumatol. 2007 Feb;23(1):14–20.

18. McCrory P. Do mouthguards prevent concussion? Br. J. Sports Med. 2001 Apr;35(2):81–2.

19. Wisniewski JF, Guskiewicz K, Trope M, Sigurdsson A. Incidence of cerebral concussions associated with type of mouthguard used in college football. Dent. Traumatol. 2004 Jun;20(3):143–9.

20. Cusimano MD, Nassiri F, Chang Y. The effectiveness of interventions to reduce neurological injuries in rugby union: a systematic review. Neurosurgery 2010 Nov;67(5):1404–18; discussion 1418.

21. Takeda T, Ishigami K, Hoshina S, Ogawa T, Handa J, Nakajima K, et al. Can mouthguards prevent mandibular bone fractures and concussions? A laboratory study with an artificial skull model. Dent. Traumatol. 2005 Jun;21(3):134– 40.

22. Flanders R, Bhat M. The incidence of orofacial injuries in sports: a pilot study in Illinois. J. Am. Dent. Assoc. 1995;126(4):491–6.

 

 

Endereço para correspondência:
Clara Padilha Campus Reitor João David Ferreira Lima
CEP 88040-900, Florianópolis, Santa Catarina Brasil.

e-mail:
ana@clarapadilha.com.br

 

Recebido em 26/03/2014
Aprovado em 10/05/2014