SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.14 número4 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial

versão On-line ISSN 1808-5210

Rev. cir. traumatol. buco-maxilo-fac. vol.14 no.4 Camaragibe Out./Dez. 2014

 

 

Avaliação do trauma da face sob as perspectivas do Código Penal e das inovações trazidas com a Lei Maria da Penha

 

Evaluation of facial trauma from the perspective of the Penal Code and the innovations resulting from the Maria da Penha Act: a case report

 

 

Raphaela CampelloI; Suzana Célia de Aguiar Soares CarneiroII; Reginaldo Inojosa Carneiro CampelloIII; Marcus Vitor Diniz de CarvalhoIII; Gabriela Granja PortoIII; Antônio Azoubel AntunesIV

I Aluna do Curso de Mestrado em Perícias Forenses, Faculdade de Odontologia de Pernambuco/Universidade de Pernambuco.
II PhD em Cirurgia Buco Maxilo Facial, Faculdade de Odontologia de Pernambuco/Universidade de Pernambuco.
III Professor Adjunto do Curso de Mestrado em Perícias Forenses, Faculdade de Odontologia de Pernambuco/Universidade de Pernambuco.
IV Aluno do programa de Pós-doutorado em Perícias Forenses, Faculdade de Odontologia de Pernambuco/Universidade de Pernambuco.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivo: Analisar os traumas da face sob a ótica do Código Penal Brasileiro caracterizando as qualificadoras da lesão corporal em decorrência de violência doméstica, artigo 129 do Código Penal, e de suas alterações com a Lei Maria da Penha. Metodologia: Um caso de violência contra a mulher foi relatado e, partindo deste caso, foi realizada uma discussão com base na legislação brasileira vigente, referente ao tema. Conclusão: Conclui-se que mesmo com todas essas mudanças na legislação, o Brasil avançou muito pouco. A violência domestica contra a mulher ainda tem muito a ser vencida, até mesmo por estar ligada a um fator cultural muito forte e difícil de desprender na sociedade.

Descritores: Lesões Encefálicas Traumáticas, Traumatismo do Encéfalo, Lesões Encefálicas, violência domestica.


ABSTRACT

Obective: To analyze facial traumas from the perspective of the Brazilian Penal Code, characterizing the bodily injury caused by domestic violence, Article 129 of the Penal Code, and its changes resulting from the Maria da Penha Act. Methodology: A case of violence against a woman was reported, which served as the starting point for a discussion on the current Brazilian legislation on the issue. Conclusion: It was concluded that despite all the changes in the legislation, Brazil has made very little progress in this area. Much remains to be done in the fight against domestic violence targeting women, particularly since the latter involves a strong cultural factor that is difficult to eliminate from Brazilian society.

Descriptors: Traumatic Brain Injury, Brain Trauma, Brain injury, domestic violence.


 

 

INTRODUÇÃO

A violência doméstica contra a mulher por muito tempo foi tratada como algo banal e comum no Brasil, sendo hoje caracterizada como um problema social e de saúde pública, e que por muitas vezes é justificada como legítima defesa da honra masculina; uma violência que não respeita classe, raça, religião, idade ou grau de instrução, com extensão mundial1.

Normalmente, o resultado mais visível desta violência são as lesões corporais. Estas podem ser conceituadas como toda e qualquer ofensa causada à integridade física ou à saúde de outrem, desde que o objetivo não seja a prática de outro crime 2. A literatura médico-legal e jurídica referem à existência de seis tipos de lesão corporal: leve, grave, gravíssima, seguida de morte, culposa e lesão corporal decorrente de violência doméstica. Acerca deste último tipo de lesão, especificamente, destacam-se os seguintes antecedentes legislativos:

• Lei nº 10.455/02: acrescentou uma cautelar de matéria penal ao parágrafo único do artigo 69, da Lei nº 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), que consistiria em um possível afastamento do agressor do lar; e

• Lei nº 10.886/04: acrescentou ao artigo 129 do Código Penal um subtipo de lesão corporal leve decorrente de violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 (três) para 6 (seis) meses3.

Os antecedentes legislativos, contudo, não surtiram o efeito esperado, e em 2006 entrou em vigor a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, com objetivo de sanar a omissão inconstitucional do Estado Brasileiro, que afrontava todas as formas de discriminação contra a mulher. Até o ano de 2006, o Brasil era o único país da America Latina a não possuir uma legislação específica para a violência domestica contra a mulher 4. A proposta era coibir e prevenir a violência no âmbito familiar, garantindo a integridade física, psíquica, sexual, patrimonial e moral, somente da mulher enquanto sujeito passivo, no artigo 7º, inciso I a V 5.

Dentre as inúmeras formas de lesão corporal decorrente de violência doméstica, uma vem se destacando nos atendimentos de emergências para politraumatizados: a lesão facial 6. A justificativa estaria relacionada ao fato de a face ter uma localização anatômica mais exposta e vulnerável a vários tipos de traumas 7.

Este predomínio das lesões buco-maxilo-faciais, nos casos de violência física contra a mulher, foi o arcabouço desse trabalho. O objetivo foi relatar um caso de lesão facial em decorrência de violência doméstica, correlacionando com os aspectos éticos e legais pertinentes a essa situação específica.

 

RELATO DE CASO

 

 

 

Mulher, vítima de agressão pelo marido, foi atendida no Hospital da Restauração (HR, Recife- PE), atingida por disparo de "soca-soca" na região de palato. Este tipo de arma não possui um projétil, ela é carregada com pólvora em pó, prensada por instrumento, denominada assim por este motivo.

A lesão provocada possuía características compatíveis com a ação de instrumento lacerante e envolveu palato, maxila, lábio superior, filtro do lábio e base do nariz, além de lesão na lateral e posterior da língua, e provocou perdas dentárias, diminuição no rebordo alveolar maxilar esquerdo e comunicação bucosinusal através de fissura palatina.

O tratamento cirúrgico buscou remover os fragmentos ósseos comprometidos e reabilitar a estética da paciente, reconstruindo o filtro labial, a base do nariz e o lábio superior. Entretanto, as lesões na língua, à perda de porções do palato e do rebordo alveolar da maxila resultou em comprometimento fonético e mastigatório e dificuldade de reabilitação protética.

 

DISCUSSÃO

A lei 11.340/06 trouxe uma série de inovações para o Direito Penal. A primeira delas foi à modificação do artigo 129, § 9º:

Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Pena – detenção, de 3 meses a 3 anos 2.

Antes da edição da Lei Maria da Penha, as qualificadoras do §9º do 129, já estavam prevista implicitamente no art. 61, II, alíneas e e f. Com a edição passaram especificamente a qualificar as lesões corporais decorrente de violência domestica, devendo ser aplicado o referido artigo a mulher enquanto vitima de violência domestica, que se enquadrem as menções narradas pelo tipo penal.8

O artigo 5ª da lei também vem a ser bastante taxativo ao trazer medidas de proteção e assistência a mulheres violentadas:

Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial" a mulher, e que ocorra em âmbito da unidade domestica, familiar ou de qualquer outra relação intima de afeto 5.

No artigo 7º, tem-se a definição de violência doméstica e familiar: "violências física, psicológica, sexual, patrimonial e moral", entre outras. Já no artigo 17, temos a vedação de penas pecuniárias, ou seja, se constada a agressão domestica, o juiz não poderá estabelecer penas alternativas, como por exemplo, pagamento de cestas básicas, ou ainda a substituição de penas que tenham como implicação o pagamento de pena de multa. 5

Ainda sim, é importante salientar o artigo 44, I, CP, onde em casos de violência domestica, é vedada a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos.

Outra novidade da Lei Maria da Penha está em seu artigo 41: "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995." 5

O artigo 61 do Código Penal, em seu inciso II, também sofreu alterações: "com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a MULHER na forma da lei específica"; ou seja, daí para frente, todo e qualquer crime praticado contra a mulher, no âmbito domestico ou familiar passara a incidir essa qualificadora.

A lei de execuções penais, também sofreu alterações, pois em seu artigo 152, o juiz poderá determinar que o agressor frequente programas de reeducação e reabilitação.

Por fim, a Lei 11.340, preceitua que as ações serão públicas condicionadas à representação, só sendo a retratação admitida antes de a denúncia ser recebida e em audiência propriamente marcada para esse fim, com a presença do juiz e ouvido o Ministério Público, conforme preceitua o artigo 16 da lei. 5

Porém, em decisão recente o Supremo Tribunal Federal, vem reconhecendo a ação como incondicionada, ou seja, com isso fica comprometida a retratação da vítima, o que para nós representa um dos avanços mais importantes, pois, por muitas vezes, a instabilidade emocional da mulher faz com que ela acabe voltando atrás e perdoando o agressor e continuando no mesmo ciclo, propensa a mais agressões. 9

Mesmo com todas essas peculiaridades a Lei Maria da Penha ainda encontra muitas barreiras, pois mesmo sendo uma lei que está ao alcance de todos, profissionais de diferentes áreas ainda não sabem como proceder sobre os aspectos ético-legais, como são os casos de notificação compulsória, segredo profissional e formalização da queixa.10 Necessitando para isso, em muitos dos casos, mais interesse do próprio profissional sobre o assunto. Pois, no atual cenário em que vivemos, em que temos acesso instantâneo às informações com apenas um clique do mouse, é inadmissível a omissão do profissional.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de todas essas mudanças na legislação, o Brasil avançou muito pouco. A violência domestica contra a mulher ainda tem muito a ser vencida, até mesmo por estar ligada a um fator cultural muito forte e difícil de desprender na sociedade.

O combate a essa violência não cabe apenas à justiça, ao operador de direito ou ao profissional de saúde, mas a todos os cidadãos, que podem e devem quebrar esse ciclo vicioso que se formou ao redor da mulher.

E, claro, no real cumprimento das leis já existentes e na melhor preparação dos profissionais que participam do atendimento, visando sempre acolher e encaminhar a mulher para os procedimentos adequados.

 

REFERÊNCIAS

1. Avarenga AM, Ponzoni D, Júnior IRG, Clície SV. ETIOLOGIA E INCIDÊNCIA DE TRAUMAS FACIAIS RELACIONADOS À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA À MULHER. Revista LEVS. 2011 (5).         [ Links ]

2. Códiigo Penal Brasileiro. Lei nº 2.848, (1940).

3. Bastos ML. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Lei" Maria da Penha". Alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano. 2006;10.

4. PIOVESAN F, PIMENTEL S. Lei Maria da Penha: Inconstitucional não é a lei, mas a ausência dela. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. 2007.

5. Lei nº 11.340, (2006).

6. Falcão MFL, Segundo AVL, Silveira M. Estudo epidemiológico de 1758 fraturas faciais tratadas no Hospital da Restauração, Recife/PE. Rev Cir Traumatol Buco-Maxilo-Fac. 2005;5(3):65-72.

7. de Aguiar ASW, Pereira APPV, Mendes DF, Gomes FIL, Branco YNC. Atendimento emergencial do paciente portador de traumatismos de face-doi: 10.5020/18061230.2004. p37. Revista Brasileira em Promoção da Saúde. 2012;17(1):37-43.

8. Greco R. Código Penal Comentado Edição, editor. Niterói - RJ: Impetus 2010.

9. Ação Direta de Constitucionalidade - 19/DF, (2012).

10. Silva RFd, Prado MMd, Garcia RR, Daruge Júnior E, Daruge E. Atuação profissional do cirurgião-dentista diante da Lei Maria da Penha. RSBO (Online). 2010;7(1):110-6.

 

 

Endereço para correspondência:
Gabriela Granja Porto
Av. General Newton Cavalcanti, 1650
Camaragibe-PE

e-mail:
gabriela.porto@upe.br

 

Recebido para publicação: 30/06/2014
Aceito para publicação: 18/07/2014