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RGO.Revista Gaúcha de Odontologia (Online)

versão On-line ISSN 1981-8637

RGO, Rev. gaúch. odontol. (Online) vol.58 no.1 Porto Alegre Jan./Mar. 2010

 

ORIGINAL ORIGINAL

 

Ocorrência de acidentes pérfuro-cortantes em um curso de odontologia

 

Accidents cutting and piercing in a school of dentistry

 

 

Mariana Aparecida Brozoski; Andreia Aparecida Traina; Maria da Graça Naclério-Homem; Maria Cristina Zindel Deboni1

Universidade de São Paulo, Faculdade de Odontologia, Departamento de Cirurgia Prótese e Traumatologia Maxilo Faciais. Av. Prof. Lineu Prestes, 2227, Cidade Universitária, 05508-000, São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Avaliar o índice de ocorrências e as características dos acidentes, notificados, envolvendo materiais pérfuro-cortantes em alunos, funcionários e professores, no período entre 2000 e 2005 na Clínica Odontológica da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo.
MÉTODOS: Foi realizado levantamento das fichas de notificações de ocorrências de acidentes, considerando o material que provocou o acidente, o período do dia da ocorrência, a disciplina em que ocorreu e a conduta clínica executada no pronto atendimento. Foram ainda considerados, quando disponíveis, os resultados dos exames laboratoriais do acidentado e do paciente fonte.
RESULTADOS: Os dados avaliados mostraram 40 notificações de acidentes, sendo que 39 notificações foram envolvendo alunos de graduação e um funcionário. O instrumento que mais provocou acidente foi a agulha de anestesia e o maior número desses acidentes aconteceu na disciplina de Cirurgia. Entretanto, 50% das fichas não apresentavam as informações completas o que impediu uma avaliação epidemiológica mais apurada.
CONCLUSÃO: Os dados obtidos permitiram concluir que o índice de ocorrência de acidentes foi extremamente baixo considerando o número de atendimentos clínicos realizados no período e levanta-se a hipótese de que muitos casos não foram notificados.

Termos de indexação: acidentes de trabalho; escolas de odontologia; exposição a agentes biológicos.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To assess the occurrence and characteristics of the reported accidents with perforating-cutting materials involving students, staff and faculty members, between 2000 and 2005 at the Dental Clinic of the School of Dentistry of the University of São Paulo.
METHODS: A survey of the records of reported occurrences of accidents was made, considering the material that caused the accident, time of day of the occurrence, the discipline in which it occurred, and clinical conduct adopted in the emergency room. When available, the results of the laboratory exams of the accident victim and the source patient were also taken into consideration.
RESULTS: The data assessed showed there were 40 accident reports, of which 39 reports involved undergraduate students and 1 staff member. The instrument that caused most accidents was the anesthetic needle and largest number of these accidents occurred in the Surgery discipline. However, 50% of the records did not present complete information, which prevented a more accurate epidemiological assessment.
CONCLUSION: The data obtained led to the conclusion that the rate of accidents is extremely low considering the number of clinical attendances provided in the period and raises the hypothesis that many cases were not reported.

Indexing terms: accidents occupational; schools dental; exposure to biological agents.


 

 

INTRODUÇÃO

Exposições acidentais com instrumento pérfuro-cortante contendo material biológico é o acidente ocupacional mais comum envolvendo profissionais da área de saúde. O risco de o profissional acidentado adquirir uma infecção por meio dessas exposições depende de diversos fatores, como extensão da lesão, volume de fluído biológico presente, das condições sistêmicas do profissional, das características dos microorganismos presentes e das condições clínicas do paciente-fonte, bem como das condutas realizadas após a exposição1.

Mais de 20 tipos diferentes de patógenos podem ser transmitidos por meio de exposições acidentais, sendo que o vírus da hepatite B (HBV), o vírus da hepatite C e o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) são os agentes infecciosos de maior importância devido à gravidade das doenças correspondentes2. O risco de se contrair o HIV pela exposição ocupacional percutânea com sangue infectado é de aproximadamente 0,3% e quando a exposição ocorre pela mucosa é de aproximadamente 0,09%. No caso de exposição ocupacional ao vírus da hepatite B o risco de infecção varia de 6% a 30%, chegando até 60% dependendo do estado clínico do paciente-fonte2-3.

De acordo com a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, no período de janeiro de 1999 a outubro de 2003, o número de cirurgiões-dentistas que notificaram esses acidentes de trabalho foi de 153 (2,8% do total de notificações de acidentes ocupacionais4.

O incidente de exposição ocupacional pode ser definido como o contato de mucosa ocular, outra membrana mucosa, pele não intacta, contato parenteral com sangue ou outros materiais potencialmente infectantes que pode interferir no desempenho das funções do trabalhador5. Evitar as exposições ocupacionais é a forma de prevenção primária da transmissão de patógenos sanguíneos.

No atendimento odontológico, o uso de instrumentos rotatórios e ultrassônicos favorece a ocorrência de respingos e a rotina de trabalho com instrumentos pérfuro-cortantes num campo restrito de visualização eleva o risco de lesões percutâneas 5-8.

Em 2000, foi elaborada pela Comissão de Controle de Infecção Ambulatorial (CCIA) da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo, a primeira proposta de fluxo de atendimento e sistema de notificação de exposições acidentais, com instrumento pérfuro-cortantes contendo material biológico, baseada nas diretrizes do Ministério da Saúde1.

A despeito do número de faculdades de odontologia existentes no Brasil, a literatura é muito escassa em estudos epidemiológicos relacionados a acidentes pérfuro-cortantes e estudantes de odontologia. A maioria das investigações destes acidentes é realizada por Serviços de Enfermagem em grandes hospitais, onde as Comissões de Controle de Infecções Hospitalares exercem papel de vigilância e mantêm as medidas preventivas quanto aos acidentes ocupacionais e riscos de infecção cruzada.

O objetivo deste trabalho foi de avaliar o índice de ocorrências e as características dos acidentes notificados, envolvendo materiais pérfuro-cortantes em alunos, funcionários e professores, no período entre 2000 e 2005, na Clínica Odontológica da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo.

 

MÉTODOS

Foi realizado levantamento das fichas de notificação de acidentes ocupacionais ocorridos na Clínica Odontológica da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo, no período de janeiro de 2000 a julho de 2005.

Os dados foram colhidos, considerando as informações quanto ao material que provocou o acidente, o período do dia da ocorrência, a disciplina em que ocorreu, a conduta clínica executada no pronto atendimento, como a solicitação de exame sorológico para o acidentado e/ou para o paciente fonte, oferecimento da medicação quimioprofilática para o HIV, ou encaminhamento para controle sorológico posterior. Foram ainda considerados, quando disponíveis, os resultados dos exames laboratoriais do acidentado e do paciente fonte. Os dados obtidos foram avaliados de forma quantitativa em porcentagem.

A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (protocolo nº 106/04) e do Hospital Universitário (protocolo n. 498/04).

 

RESULTADOS

Foram encontradas 40 notificações de acidentes com material contaminado da Clínica Odontológica da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo, sendo que 39 envolvendo alunos de graduação e 1 funcionário. Considerando os períodos de aulas práticas da graduação, 29 casos ocorreram com alunos no curso diurno e 10 no curso noturno. O acidente envolvendo o funcionário não descrevia o período da ocorrência.

A disciplina com maior número de ocorrências foi a de Cirurgia com 13 casos, seguida pela Endodontia com 6 casos e a Clínica Integrada, Periodontia, Prótese Parcial Removível e Prótese Total, com 1 caso cada uma. Dezessete fichas de notificações omitiam a informação da disciplina aonde o acidente aconteceu, além disso, a ocorrência com o funcionário também não explicitava a disciplina envolvida. A média de atendimentos na Clínica Odontológica no período do estudo foi de 30 mil pacientes ao ano, e a disciplina de cirurgia foi responsável por 12 300 dos atendimentos clínicos no período. Considerando as fichas válidas e analisando a relação do período com as disciplinas, observou-se que a ocorrência nas diferentes disciplinas clínicas se manteve uniforme nos dois períodos da graduação.

Quanto à conduta realizada, foi possível constatar que houve vinte e uma solicitações de sorologia, sem discriminação do teste ou do sujeito submetido (acidentado e/ou paciente fonte); oito registros de prescrição de quimioprofilaxia; quatro pacientes orientados, mas não medicados e uma prescrição de vacina antitetânica. Dez notificações não descreviam claramente quais as condutas foram tomadas.

Das vinte e uma solicitações de sorologia, dez não descreviam os resultados. Nove casos (acidentado e paciente-fonte) foram negativos para HIV, HBV e HCV. Dois pacientes-fonte apresentaram resultados positivos: um para hepatite B, e um para HIV.

 

DISCUSSÃO

Os cirurgiões-dentistas e outros indivíduos envolvidos na equipe de atendimento em saúde bucal estão expostos a uma grande variedade de microorganismos presentes especialmente no sangue, na saliva e nas vias aéreas respiratórias dos pacientes, e o risco de contágio e infecção cruzada, apesar de baixo, existe.

Na década de 1980 com o aparecimento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), o temor do contato com seu agente etiológico, o HIV, se tornou um motivador para a adoção de medidas de maior controle de infecção na prática odontológica e para a promoção da consciência sanitária dos profissionais1-3,9.

De acordo com o Ministério da Saúde1, as medidas de Precaução Universal representam um conjunto de cuidados de controle de infecção a serem adotadas universalmente como forma eficaz de redução do risco1. Elas devem ser empregadas no atendimento a todos os pacientes, já que nem todos os portadores desses microorganismos patogênicos podem ser identificados previamente2,4.

Como na odontologia a saliva pode ser considerada um material potencialmente infectante, o uso de equipamentos de proteção individual como luvas, jaleco, óculos de proteção, máscara e gorro, a fim de prevenir o contato da pele e membranas mucosas com material biológico dos pacientes, deve ser obrigatório1-3,6-7,9. De acordo ainda com os dados da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo4, a maioria dos acidentes que foram notificados envolviam profissionais da área de auxiliar de enfermagem, auxiliares de limpeza e médicos, sendo que os cirurgiões-dentistas ocupavam o sétimo lugar nesta lista e os estudantes de odontologia o oitavo.

Considerando o número total de atendimentos clínicos, nesta pesquisa, os resultados obtidos revelam que a notificação das ocorrências de acidentes foi muito baixa (0,026%), mesmo na disciplina de cirurgia na qual a ocorrência foi maior (0,10%).

O fato de 50% das fichas não conterem as informações completas, impediu uma análise estatística, mas pressupõe-se que muitos acidentes ocorreram sem que a notificação apropriada tenha sido realizada.

A prevalência de exposições ocupacionais, no estudo de Garcia & Blank5 mostrou ser maior entre os dentistas (94,5%) do que entre os auxiliares (80,8%), porém, considerando-se as exposições ocorridas com lesões percutâneas, foram mais frequentes nos auxiliares (95,2%) do que nos dentistas (60,7%).

No presente levantamento não foram encontrados dados referentes a acidentes com docentes e apenas um caso referente a funcionário, permitindo a discussão de que alguns casos não tenham sido notificados. Barbosa et al.10 mostraram que a subnotificação ou a não notificação de acidentes ocupacionais também é frequente entre os médicos. Shiao et al.11 relataram que 478 profissionais trabalhadores em hospitais universitários, 30,4% foram submetidos a programas educativos em prevenção e destes, 69,4% sofreram acidentes e apenas 39,0% notificaram o acidente.

Cleveland et al.2, aponta que o risco de transmissão de agentes infecciosos por meio do sangue em cirurgiões- dentistas é relativamente baixo. Contudo, sabe-se que apenas uma exposição pode ser suficiente para a transmissão e que o risco é multiplicado pelo número de exposições repetidas6,12.

Atualmente, as orientações básicas, preconizadas pela Secretaria do Estado de Saúde de São Paulo4 perante uma exposição acidental com instrumento pérfuro-cortante contendo material biológico, incluem: lavar o local com água e sabão não utilizando substâncias cáusticas; notificar o serviço de controle de infecção e realizar exames sorológicos do paciente-fonte para se avaliar a necessidade do uso de medicação quimioprofilática pelo acidentado.

O instrumental que provocou o maior número de acidentes no presente estudo foi a agulha de anestesia, o que está de acordo com dados da Secretaria de Estado da Saúde que relataram que entre os registros de acidentes envolvendo procedimentos odontológicos (que representaram 7,1% das notificações), as agulhas hipodérmicas e gengivais foram os instrumentos que causaram maior número de acidentes (63%) sendo que o re-encape de agulhas representou 4,7%4 Os resultados mostraram que existiu falhas importantes no seguimento do protocolo pré-estabelecido e no fluxograma de atendimento.

Varkulja et al.13 já apontavam para uma taxa de abandono de condutas preventivas de 45% em 326 acidentes notificados, corroborando com resultados encontrados neste estudo, onde das 39 notificações, 26 (66%) não apresentaram retorno quanto ao resultado dos exames sorológicos.

O estudo dos riscos é importante e a falta de dados dos registros impede uma avaliação mais cuidadosa dos resultados e também o conhecimento da população de maior incidência em um determinado serviço de saúde.

Pesquisas que evidenciem a aderência e a consciência do fluxograma e das medidas preventivas, pelos alunos, funcionários e docentes, perante acidentes com pérfuro-cortantes devem ser realizadas de forma periódica. Isso possibilitará programar novas estratégias e medidas de con-duta frente a acidentes ocupacionais e melhores mecanismos de divulgação dessas medidas à comunidade envolvida.

 

CONCLUSÃO

Os dados obtidos pela análise das fichas de ocorrência de notificação de acidentes com material pérfuro-cortante, mostraram que o número de acidentes foi maior no curso diurno e a agulha de anestesia foi o instrumento mais implicado. O índice de ocorrência de acidentes foi extremamente baixo considerando o número de atendimentos clínicos realizados no período, podendo sugerir que muitos casos não foram notificados. Este problema fica mais evidente quando verificado que a maioria das fichas não foi preenchida adequadamente mostrando a necessidade de programas educativos de controle de biossegurança durante o aprendizado clínico da graduação.

Colaboradores

MA BROZOSKI foi responsável pelo levantamento das fichas de ocorrência, pela tabulação dos dados, pela interpretação e pela redação. AA TRAINA participou do levantamento bibliográfico e da redação do artigo. MG NACLÉRIO-HOMEM foi responsável pela discussão dos resultados. MCZ DEBONI foi responsável pela interpretação e discussão dos resultados, pela revisão e redação do artigo.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 24/10/2008
Versão final reapresentada em: 31/7/2009
Aprovado em: 26/10/2009

 

 

1 Correspondência para / Correspondence to: MCZ DEBONI. E-mail: <mczdebon@usp.br>.