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RGO.Revista Gaúcha de Odontologia (Online)

versão On-line ISSN 1981-8637

RGO, Rev. gaúch. odontol. (Online) vol.59 no.1 Porto Alegre Jan./Mar. 2011

 

ORIGINAL ORIGINAL

 

Análise do comportamento do amálgama de prata sob a ação de calor e sua importância no processo de identificação humana

 

Analysis of the behavior of silver amalgam subjected to heat and its importance for fire victim identification

 

 

Célio SpadácioI; Osvaldo Fortes de OliveiraII; Eduardo DarugeII; Eduardo Daruge júniorII; Luiz Renato ParanhosII,*

IAssociação Brasileira de Odontologia - Seção Mato Grosso, Curso de Especialização em Odontologia Legal e Deontologia, Cuiabá, MT, Brasil
IIUniversidade Estadual de Campinas, Faculdade de Odontologia. Av. Limeira, 901, Areião, 13414-903, Piracicaba, SP, Brasil

 

 


RESUMO

OBJETIVO: Verificar macroscopicamente as alterações sofridas por restaurações de amálgama em cápsulas e convencional, quando submetidos a temperaturas elevadas e destacar a importância dessas alterações nos processos de identificação humana.
MÉTODOS: Foram analisados 48 dentes humanos, oriundos do cemitério São Gonçalo da Prefeitura Municipal de Cuiabá, Mato Grosso, que passaram por tratamento restaurador com amálgama dental e submetidos à elevadas temperaturas que variaram de 100ºC a 1200ºC para avaliação das alterações sofridas por esse material.
RESULTADOS: As restaurações em amálgama convencional sofrem escurecimento a partir dos 300ºC, apresentando-se pulverulentas a partir dos 300ºC e entrando em processo de calcinação a partir dos 800ºC. Já a restauração com amálgama em cápsula sofreu escurecimento a partir dos 400ºC, tornando-se novamente prateada a 1200ºC, apresentando-se pulverulenta a partir dos 500ºC e calcinada a 1200ºC.
CONCLUSÃO: As restaurações de amálgama apresentaram alterações em sua coloração (escurecimento) e em sua estrutura (pulverização e calcinação), que poderão servir de comparação com registros odontológicos de eventuais vítimas de desastres, nos trabalhos de identificação humana, onde os corpos tiverem sofrido a ação do fogo.

Termos de indexação: Identificação de vítimas. Materiais dentários. Odontologia legal.


ABSTRACT

OBJECTIVE: This study verified the macroscopic changes that occur in capsulated and conventional restorations submitted to high temperatures and discussed the importance of these changes for fire victim identification processes.
METHODS: A total of 48 human teeth were analyzed. They were obtained from the municipal graveyard São Gonçalo in Cuiabá, Mato Grosso, filled with dental amalgam and subjected to high temperatures ranging from 100ºC to 1200ºC to study the changes that occur in this material.
RESULTS: Conventional amalgam restorations darkened and pulverized at 300ºC and roasting began at 800ºC. Meanwhile, capsulated amalgam darkened at 400ºC, pulverized at 500ºC and became silvery again at 1200ºC, when roasting began.
CONCLUSION: Heat darkened the color, pulverized the structure and roasted amalgam restorations. This may help in the comparison of dental records of fire victims.

Indexing terms: Victims identification. Dental materials. Forensic dentistry.


 

 

INTRODUÇÃO

Os dentes fornecem subsídios fundamentais para o estabelecimento da identidade de um indivíduo, devido principalmente a sua dureza e resistência frente a agentes agressores e a característica de individualidade da dentição humana. A individualidade na dentição humana se deve a características congênitas como localização, formato, tamanho, ausência, posição e número de dentes, assim como também a presença de possíveis doenças, traumas, perdas e tratamentos odontológicos realizados1-4.

Em desastres de grandes proporções, em geral ocorrem incêndios, e nestes, o ser humano acaba, por vezes, a ser reduzido a um corpo disforme (carbonizado), ou, em outros casos, pode praticamente desaparecer (calcinação). Nestas duas situações, geralmente os dentes passam ser a única estrutura capaz de permitir a identificação da vítima5-7.

Dependendo da temperatura alcançada durante a exposição do corpo humano ao fogo, os materiais restauradores presentes nos dentes podem sofrer transformações, as quais, o perito, em um processo de identificação, deverá ter conhecimento no momento do confronto com a ficha odontológica da vítima. Algumas pesquisas já foram realizadas com o objetivo de verificar as transformações sofridas pelos dentes e materiais restauradores quando da exposição ao calor5-6,8. Porém, esse tipo de estudo deve ser sempre atualizado devido à evolução constante sofrida pelos materiais restauradores. Desta forma, este trabalho objetivou verificar macroscopicamente as alterações sofridas pelas restaurações de amálgama, quando submetidas à tem-peraturas elevadas e destacar a importância dessas alterações nos processos de identificação humana.

 

MÉTODOS

Para esta pesquisa foram utilizados 48 dentes humanos, íntegros, permanentes, todos pertencentes a cadáveres de indigentes que estavam armazenados no ossuário do Cemitério Municipal São Gonçalo da cidade de Cuiabá, Mato Grosso. Todos os dentes passaram por processo de desinfecção química por meio de imersão em solução de hipoclorito de sódio a 1%.

Após os procedimentos de limpeza, foram realizados preparos Classe I (região de cicatrículas e físsuras de molares e pré-molares) e Classe II (faces proximais de molares e pré-molares) obedecendo a classificação estabelecida por Black9, para que posteriormente fossem restaurados com amálgama dental convencional Velvalloy® (SS WHITE, Rio de Janeiro, Brasil) e em cápsulas Permite® (SDI, Bayswater, Austrália).

Foram confeccionadas 12 placas em argila bronze, próprias para alta temperatura, medindo 13x18cm, com capacidade de fixação de quatro dentes cada. O posicionamento dos dentes nas placas se deu da seguinte forma: dente um - pré-molar com preparo cavitário Classe I de Black; dente dois - molar com preparo cavitário Classe II de Black; dente três - pré-molar com preparo cavitário Classe I de Black; dente quatro - molar com preparo cavitário Classe II de Black.

As placas, já com os dentes, foram submetidas a temperaturas que variaram de 100ºC a 1200ºC, com intervalo de 100ºC, permanecendo em cada temperatura por um período de 15 minutos. Com base em alguns trabalhos5-6,10 observou-se que, com o tempo de exposição de 15 minutos até 60 minutos, as alterações permaneciam as mesmas. O aquecimento se deu em um forno de cerâmica artesanal, da marca Arimbá® (Arimbá, Florianópolis, Brasil), medindo 27cm de profundidade, 28cm de altura e 22,5cm de largura, com pirômetro eletrônico digital, que facilitou o controle de temperatura.

Após a inserção no forno, o pirômetro foi regulado para atingir a temperatura desejada e, a partir daí, foi marcado o tempo de 15 minutos controlado por um despertador programado. Após esse tempo, o forno era desligado e aberto para retirada e análise das placas com o auxílio de uma lupa estereoscópica. A análise imediata das placas foi possível até a temperatura de 500ºC, sendo que a partir desse estágio foi necessário aguardar o resfriamento do forno para poder realizar a abertura com a finalidade de evitar acidentes com a pessoa que o manipulava, choque térmico dos materiais e danificação do próprio forno, sendo nesses casos necessário aguardar 12 horas para iniciar a análise.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Campinas, sob o protocolo 133/2004.

 

RESULTADOS

Em relação à alteração de cor, o amálgama convencional (Velvalloy®, SS WHITE, Rio de Janeiro, Brasil) apresentou-se cinza opaco a 100ºC, sendo que a partir de 300ºC, a restauração começou a sofrer escurecimento.

Com relação à característica estrutural, foi possível verificar pequenas bolhas de mercúrio a 100ºC (início do ponto de fusão). A 400ºC, a restauração começa a sofrer contração e apresentar-se esponjosa. A partir dos 300ºC, a restauração começa a se tornar pulverulenta (forma de pó), apresentado-se pulverizada a 600ºC. A 500ºC verificou-se manchas pretas pela placa (a prata atingiu o ponto de fusão). As manchas ficam mais evidentes quando expostas a temperatura de 800ºC e, nesta temperatura, inicia-se o processo de calcinação. A 900ºC, a restauração de amálgama convencional apresenta uma estrutura morfológica indefinida e uma característica dura de aspecto calcinado. Nas temperaturas de 1000ºC, 1100ºC e 1200ºC observa-se, apenas no local da restauração, somente a prata de cor brilhante, e na placa observa-se inúmeras manchas.

O amálgama em cápsula (Permite®, SDI, Bayswater, Austrália) apresentou-se com a cor cinza até os 300ºC, tornando-se escurecido a 400ºC e prateado a 1200ºC.

Em relação a sua estrutura, esse amálgama passou a apresentar trincas e buracos arredondados a 400ºC (início do ponto de fusão). Apresentou aspecto pulverizado e manchas pretas na placa a partir dos 500ºC. Esse material ainda sofreu escoamento a 800ºC onde se nota a separação da prata do restante da liga. A 1200ºC, ocorre a calcinação do restante da liga restando apenas a prata (material brilhante ao fundo da restauração). Até a temperatura de 1000ºC a restauração permaneceu na cavidade, sendo que a partir de 1100ºC a mesma apresentou-se contraída e afastada da borda.

Pode-se observar que as restaurações de amálgama convencional sofreram alterações na cor (escurecimento) e estrutural (pulverização e calcinação) sob níveis de temperaturas mais baixos quando comparada com as restaurações com amálgama em cápsula. Foi notado também que as restaurações de amálgama em cápsula apresentaram-se contraídas e afastadas da borda a partir dos 1100ºC, fato não apresentado nas restaurações em amálgama convencional.

 

DISCUSSÃO

O amálgama convencional iniciou o processo de fusão a 100ºC e o amálgama em cápsula a 400ºC, sendo que ambos atingiram o ponto de fusão a 500ºC, evidenciando-se o aparecimento de manchas pretas nas placas, alterações estas, compatíveis com o trabalho de Pueyo et al.8, no qual foi observado que o amálgama inicia o processo de fusão a 200ºC.

No presente trabalho, observa-se que o amálgama convencional teve alteração de cor de cinza para enegrecido a 300ºC, já o amálgama em cápsula ficou escurecido a 400ºC e prateado a 1200ºC. Nota-se também, que o amálgama convencional apresenta-se condensado na cavidade em todas as temperaturas e o amálgama em cápsula se afasta das bordas do preparo a 1100ºC, diferentemente do relatado no trabalho de Miguel & Sosa11, no qual foi verificado, que até 120ºC, não ocorre mudanças no amálgama, aos 150ºC aumentou o brilho do amálgama, a 450ºC ocorreu separação do amálgama da parede do preparo, a 850ºC o amálgama fica roxo e, a 950ºC, este fica quase branco.

Já na pesquisa de Steagall & Silva5, o amálgama apresentou-se escurecido e poroso por volta dos 400ºC, apresentando-se cinzento e poroso a 600ºC - temperatura em que sofre grande contração se afastando das bordas. A temperatura em que ocorre a alteração de cor e o aparecimento de porosidade é semelhante aos resultados deste trabalho, porém, no presente trabalho, o amálgama convencional não sofreu afastamento das bordas, enquanto o amálgama em cápsula se desloca das bordas apenas a 1100ºC, diferentemente da pesquisa dos autores5 descritos acima.

Melani6 estudou as reações das restaurações em amálgama de prata em temperaturas de 200ºC, 400ºC e 600ºC por meio da microscopia eletrônica de varredura e observou que a restauração de amálgama se torna mais irregular e desarranjada, expondo as camadas mais internas da liga por meio de pequenas cavidades circulares, podendo ocorrer fusão e união de restaurações nesta fase se as mesmas forem muito próximas.

No presente trabalho foi observado que as reações sofridas pelo amálgama tiveram semelhanças com as restaurações observadas nas vítimas de carbonização. Os estudos in vidro mostram a possibilidade de se verificar a história técnica de cada material e as reações correspondentes, fornecendo informações periciais significativas5-6.

Nas restaurações em amálgama - cápsula e convencional - ficaram evidentes alterações de cor, brilho, textura e contração em todos os níveis de temperatura, apresentando, de início, pequenos orifícios, entumescendo até a fase da separação dos componentes da liga, terminando somente com a prata no fundo da cavidade, o que possibilita estabelecer parâmetros entre a temperatura e as fases da carbonização.

A identificação humana pode ser realizada pelo exame da cavidade onde o material restaurador foi inserido5. Poderá ser realizada análise comparativa entre dentes restaurados de cadáveres, vítimas de carbonização, e os resultados deste estudo, facilitando a identificação do indivíduo, fato que também foi observado em outro estudo6.

Deve-se destacar, que em casos de incêndio, onde tenha ocorrido temperatura acima de 600ºC, a estética da restauração será de pouca ajuda no estabelecimento da identidade, porém a comparação entre as tomadas radiográficas e a confirmação do tipo de material restaurador presente na cavidade auxiliará o mesmo.

As informações obtidas no presente estudo permitem ao perito, por comparação, a determinação do tipo de material restaurador utilizado. Tal informação associada com os dados do confronto da documentação pertencente ao prontuário, produzidas em vida, permitirá o estabelecimento da identidade do cadáver.

 

CONCLUSÃO

As restaurações de amálgama convencional e em cápsula apresentaram alterações de cor (escurecimento) e estrutural (pulverização e calcinação) quando submetidas a temperaturas elevadas.

As alterações notadas nas restaurações ocorreram em níveis de temperatura diferentes, porém com modificações muito semelhantes entre os dois tipos de amálgama.

Colaboradores

C SPADÁCIO, OF OLIVEIRA, E DARUGE JÚNIOR e LR PARANHOS foram responsáveis pela concepção, pelo delineamento da pesquisa e pela redação do artigo.

 

REFERÊNCIAS

1. Daruge E, Massini N, Galdino AM. Ensaio de sistematização do ensino da odontologia legal e deontologia odontológica [apostila]. Piracicaba: UNICAMP; 1975.         [ Links ]

2. Arbenz GO. Medicina legal e antropologia forense. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988.         [ Links ]

3. Silva M. Compêndio de odontologia legal. São Paulo: Medsi; 1997.         [ Links ]

4. Vanrell JP. Odontologia legal e antropologia forense. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2009.         [ Links ]

5. Steagall W, Silva M. A importância da dentística na identificação pelos dentes no arco dental. Rev Paul Odontol. 1996;18(5):23-34.         [ Links ]

6. Melani RFH Identificação humana em vítimas de carbonização: análise odontolegal através da microscopia eletrônica [tese]. Piracicaba: UNICAMP; 1998.         [ Links ]

7. Almeida CAP. Proposta de protocolo para identificação odontolegal em desastres de massa [tese]. Piracicaba: UNICAMP; 2000.         [ Links ]

8. Pueyo VM, Garrido BR, Sanchez JA. Odontologia legal y forense. Barcelona: Masson; 1994.         [ Links ]

9. Mondelli J, Franco EB, Valera RC, Ishikiriama A, Pereira JC, Francischone CE. Dentística: procedimentos pré-clínicos. São Paulo: Editorial Premier; 1998.         [ Links ]

10. Botha CT. The investigation of charred skeletal and coffins remains: a case report. J Forensic Odontostomatol. 1986;4:11-4.         [ Links ]

11. Miguel R, Sosa JA. Comportamento de las piezas dentárias y sus restauraciones frente a la acción de la temperatura. Rev FOUBA. 1995;16(41):75-80.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/4/2010
Aprovado em: 2/8/2010

 

 

* Correspondência para / Correspondence to: LR PARANHOS. E-mail: <paranhos@ortodontista.com.br>.