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RGO.Revista Gaúcha de Odontologia (Online)

versão On-line ISSN 1981-8637

RGO, Rev. gaúch. odontol. (Online) vol.59 no.1 Porto Alegre Jan./Mar. 2011

 

COMUNICAÇÃO COMMUNICATION

 

Papel do cirurgião-dentista na equipe de saúde da família

 

Role of the dental surgeon in the family health team

 

 

Mariana Ramalho de Farias*; José Jackson Coelho Sampaio

Universidade Estadual do Ceará, Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Saúde Pública. Av. Paranjana, 1700, Itaperi, 60740-903, Fortaleza, CE, Brasil

 

 


RESUMO

Este é um estudo que buscou sistematizar a participação do cirurgião-dentista no processo de trabalho da equipe de saúde da família, observando como ocorre a interdisciplinaridade, destacando características, facilidades e dificuldades. O objetivo foi buscar, na literatura atual, os elementos que permitam configurar as práticas profissionais do cirurgião-dentista nas equipes multiprofissionais do Programa Saúde da Família. A metodologia utilizada foi de levantamento bibliográfico acerca da temática no período de 2002-2007, tendo como referência o papel do cirurgião-dentista. Foram pesquisados artigos de periódicos nacionais e documentos governamentais. Após a leitura, cursiva, analítica e crítica, foi possível demonstrar que a saúde bucal está inserida no Programa Saúde da Família ainda de forma incipiente, desenvolvendo uma prática autônoma, curativa e sem interação com os demais saberes e sujeitos da equipe.

Termos de indexação: Equipe de assistência ao paciente. Programa Saúde da Família. Saúde bucal.


ABSTRACT

This is a bibliographical study that attempts to systematize the participation of the dental surgeon in the family health team, observing how interdisciplinarity occurs, pointing out its characteristics, eases and difficulties. The objective was to search the domestic literature for elements that shape the professional practices of the dental surgeon in the multidisciplinary teams of the Family Health Program. The method consisted of searching for studies and government documents on the theme published between 2002 and 2007, using the role of the dental surgeon as reference. After a critical and analytical read of the studies and documents, it became clear that oral health is still incipient in the Family Health Program. Dental surgeons carry out an autonomous, curative practice and do not interact with the other members of the health team and their knowledge.

Indexing terms: Patient care team. Family's health program. Oral health.


 

 

INTRODUÇÃO

Em março de 1994, o Ministério da Saúde criou o Programa de Saúde da Família (PSF), como uma forma de operacionalizar o Sistema Único de Saúde (SUS) e consolidar os princípios da Reforma Sanitária Brasileira estabelecidos na Constituição Nacional de 1988 e no Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), de 1986.

De acordo com o documento oficial que define as bases do programa, a Estratégia Saúde da Família pauta suas ações priorizando a proteção e promoção à saúde dos indivíduos, das famílias e das comunidades de forma integral e continua1.

Em relação aos recursos humanos operantes, as equipes eram compostas apenas de médico e enfermeiro. Em 1997, foram incorporados o auxiliar de enfermagem e quatro a seis agentes comunitários de saúde. Neste momento inicial, a Saúde Bucal não teve seus profissionais incluídos na equipe mínima, apesar de existir, àquela época um movimento nacional em prol da inclusão da equipe de Odontologia no Programa de Saúde da Família2.

Oficialmente, foi a publicação da Portaria n.º 1.444, pelo Ministério da Saúde, que implantou as equipes de Saúde Bucal no Programa de Saúde da Família, ao estabelecer o incentivo financeiro para a reorganização da atenção à Saúde Bucal prestada nos municípios. Essa implantação ocorreu em 28 de dezembro de 2000, portanto seis anos após a criação do PSF, sendo regulamentada pela Portaria n.º 267, de 6 de março de 20013-4.

A necessidade de ampliação do acesso da população brasileira às ações de promoção, prevenção e recuperação da Saúde Bucal; a necessidade de melhorar os índices epidemiológicos da Saúde Bucal da população e a necessidade de incentivar a reorganização da Saúde Bucal na atenção básica foram os motivadores da implantação das ações da Saúde Bucal no Programa de Saúde da Família. O cirurgião-dentista, o auxiliar de consultório dentário e o técnico de higiene dental foram incluídos na equipe. O auxiliar de consultório dentário e o técnico de higiene dental podem se estruturar dentro da Equipe de Saúde Bucal em duas modalidades: I) que compreende um cirurgião-dentista e um auxiliar de consultório dentário; e II) que compreende um cirurgião-dentista, um auxiliar de consultório dentário e um técnico de higiene dental.

A relação entre a Equipe de Saúde Bucal e a Equipe de Saúde da Família, inicialmente, foi determinada na proporção de uma Equipe de Saúde Bucal para duas Equipes de Saúde da Família implantadas ou em processo de implantação3, resultando em cobertura de 6.900 habitantes, em média, por uma Equipe de Saúde Bucal. A partir da Portaria GM/MS 673, de 3 de junho de 2003, estabeleceu-se que podem ser implantadas tantas Equipes de Saúde Bucal quantas forem as Equipes de Saúde da Família em funcionamento nos municípios5.

Como estratégia operacional, a Odontologia resgata a matriz ideológica do Programa de Saúde da Família, ou seja, busca trabalhar a descrição da clientela, com foco no núcleo familiar e utilizar-se da Epidemiologia como ferramenta de decisão, norteadora dos critérios de priorização, a partir do conceito de risco. Busca ainda defender o trabalho multidisciplinar; integrar o coletivo ao individual e a prevenção à cura, trabalhando a compreensão da determinação social do processo saúde-doença a partir de uma prática humanizada.

A Odontologia no Programa de Saúde da Família recebeu maior estímulo a partir da criação de uma política específica para a Odontologia, denominada "Brasil Sorridente" e lançada em março de 20046. Esta política ampliou sobremaneira a capacidade e a qualidade de atendimento, por meio de incentivos globais às Equipes de Saúde Bucal; da implantação de laboratórios de prótese em todo o País, disponibilizando prótese dentária na rede de assistência básica, ampliando e qualificando a atenção básica; e da inclusão de insumos odontológicos na farmácia básica do Programa de Saúde da Família.

Com tais medidas, houve expansão no número de equipes em todo o País, permitindo um maior acesso da população aos serviços de saúde. Em 2007, o Brasil contabilizou 8.341 Equipes de Saúde Bucal, vinculadas a Programas de Saúde da Família, com atuação em 3.896 municípios, totalizando cobertura a mais de 59 milhões de pessoas.

Considerando o passado, os avanços têm sido crescentes e significativos, mas ainda são incipientes em relação à demanda global atual e às perspectivas futuras. Mas a questão não é apenas de quantidade e cobertura, é de lógica e de qualidade organizacional do cuidado. Esse estudo tem como objetivo realizar uma revisão da literatura atual, apresentando os elementos que configuram as práticas profissionais do cirurgião-dentista nas equipes multiprofissionais do Programa Saúde da Família, problematizando a integração e a integralidade do processo de trabalho do cirurgião-dentista, observando se há troca de saberes entre os sujeitos da equipe e se a prática é resolutiva.

 

MÉTODOS

O estudo apresenta revisão bibliográfica e análise documental, em que as reflexões e discussões foram construídas com base nas bibliografias específicas sobre o processo de trabalho da equipe multiprofissional no contexto do Programa de Saúde da Família.

Foram pesquisados artigos científicos publicados em periódicos registrados em base de dados on-line, no período de 2002 a 2007. As bases de dados foram o portal Biblioteca Virtual em Saúde (Bireme) e a Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), por meio do descritor "equipe interdisciplinar de saúde".

Os critérios de inclusão foram: abordagem de forma específica do descritor e foco no processo de trabalho em atenção básica. Foram considerados critérios de exclusão artigos que não estivessem no período citado e que fossem estudo de caso em outros níveis de complexidade. Dessa forma, foram encontradas 37 ocorrências, das quais 11 foram destacadas para avaliação completa.

A análise foi complementada com documentos oficiais governamentais e referências teóricas especialmente destinadas à compreensão crítica do processo de trabalho em saúde, tais como Mendes-Gonçalves7, Peduzzi8 e Merhy et al.9.

Foram construídos três eixos temáticos de discussão: "A equipe multiprofissional e o processo de trabalho em saúde"; "A interdisciplinaridade: realidade ou utopia" e "Inserção da saúde bucal nas equipes de saúde da família".

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A equipe multiprofissional e o processo de trabalho em saúde

Sampaio et al.10 define trabalho como sendo um complexo de atividades que resulta na apropriação da natureza pelo homem, media os procedimentos de apropriação e reproduz o próprio homem, revestindo-se de formas específicas a cada modo de produção das condições de existência. Nos processos de trabalho estão envolvidos os meios de produção (condições de trabalho, formas de exploração, sistemas de distribuição da riqueza produzida, processos técnicos, produtos) e a capacidade humana de criar e transformar (projeto, criatividade, sociabilidade, significados, resistências).

Em relação ao processo de trabalho em saúde, Merhy et al.9 afirmam que a sua finalidade é a responsabilidade em operar com saberes tecnológicos, de expressão material e não-material, para a produção de cuidados individuais e coletivos que prometem cura, saúde, longevidade e qualidade de vida.

Mendes-Gonçalves7 considera, ao discutir processo de trabalho das equipes de saúde, que a tecnologia é um conjunto de saberes e instrumentos que expressa nos processos de produção dos serviços a rede de relações sociais entre agentes e práticas, conformada em uma totalidade social, constituída não apenas pelo saber, mas também pelos seus desdobramentos materiais e não-materiais.

As tecnologias da saúde são configuradas a partir do arranjo entre dimensões materiais e não-materiais do fazer específico do campo e podem ser classificadas em três tipos: leve - as tecnologias relacionais, de produção de vínculo, acolhimento, compromisso e participação; leve-dura - as tecnologias referentes aos saberes estruturados que operam na clínica, na cirurgia, na prevenção, nos tratamentos; e dura - as tecnologias embutidas nos equipamentos, nas normas e estruturas organizacionais.

A Saúde Pública e a lógica de operação do Programa de Saúde da Família são radicalmente exigentes de multiprofissionalidade, de interdisciplinaridade, de trabalho coletivo e de produção de compromissos, orientando-se, portanto, da conformação de equipes não espontâneas e não articuladas pela lógica taylorista/fordista11. Esta equipe deve inter-relacionar suas competências, seus valores sociais, seus sentimentos, tendo em comum o objetivo de melhoria do estado de saúde ou a cura de transtornos. É preciso estabelecer vínculo com o usuário, acolhendo-o com a qualidade de ouvir e calar. A construção desse vínculo só é concretizada priorizando as tecnologias do tipo leve e leve-dura no processo de trabalho.

Peduzzi8 apresenta duas diferentes distinções a respeito da ideia de equipe: equipe como agrupamento de agentes e equipe como integração de trabalhos. A primeira noção é caracterizada pela fragmentação, e a segunda, pela articulação consoante a proposta de integralidade das ações de saúde. Com base nessa distinção, a autora elabora uma tipologia referente às duas modalidades de trabalho em equipe: equipe agrupamento, em que ocorre a justaposição das ações e o agrupamento dos agentes; e equipe integração, em que ocorre a articulação das ações e a interação dos agentes.

Em ambas, no entanto estão presentes as diferenças técnicas dos trabalhos especializados e a desigualdade de valor atribuído a esses distintos trabalhos, operando a passagem da especialidade técnica para a hierarquia de trabalhos, o que torna a recomposição e a integração diversas do somatório técnico. Também, em ambas, estão presentes tensões entre as diversas concepções e os exercícios de autonomia técnica, bem como entre as concepções quanto à independência dos trabalhos especializados ou a sua complementariedade objetiva8.

Nesse sentido, a recomposição requer articulação das ações, a interação comunicativa dos agentes e a superação do isolamento dos saberes. Situação que só poderá ser alcançada diante da quebra do paradigma médico-centrado para a perspectiva usuário-centrada. A princípio, tal mudança só poderá ser alcançada mediante a mudança das práticas das equipes. O que se observa é que na atenção ao usuário há a negação do aspecto emocional, em nome de um saber e de uma responsabilidade terapêutica que vê diante de si uma doença a ser vencida e não uma pessoa doente a ser compreendida e cuidada.

A equipe multiprofissional interdisciplinar usuário-centrada deve ser objeto de fundação do trabalho em saúde, lugar de experiência profissional e ferramenta de apropriação de saberes e práticas e de transformações. Em lugar do caráter restritivo do trabalho entre múltiplos profissionais, o desafio do trabalho protegido pela equipe12. É importante entender que a coletivização do projeto terapêutico não pressupõe a perda da identidade profissional ou de autonomia, mas a relativização da prática específica, no coletivo13.

A interdisciplinaridade: realidade ou utopia

Para o trabalho dos profissionais de saúde do SUS, três são os princípios ordenadores do trabalho: orientar-se pelo sistema de saúde vigente (conhecer e valorizar seus princípios, dominar e pautar-se por seus valores pactuados pela sociedade na legislação correspondente); pelo trabalho em equipe (preservar e respeitar a atuação em equipe multiprofissional, trabalhando pela regulação, in acto, das atividades profissionais cooperativas e não pela vigência de modelos fragmentários e parcializados competitivos); e pelo atendimento integral à saúde (o respeito aos usuários como atores em histórias de vida, histórias familiares e histórias culturais e a organização de práticas sem dicotomia ou barreira entre ações de prevenção e promoção e ações de cura e reabilitação em saúde)12.

Com o propósito de superar a visão e a prática disciplinar, surge a teoria da interdisciplinaridade. Vilela & Mendes14 a define como a interação existente entre duas ou mais disciplinas, em contexto de estudo de âmbito coletivo, no qual cada uma das disciplinas em contato é, por sua vez, modificada e passa a depender claramente das outras. É a substituição de uma concepção fragmentária para uma unitária do ser humano, resultando em enriquecimento recíproco e na inter-transformação de conceitos.

Dentro da equipe multiprofissional, pretende-se empregar a interdisciplinaridade como forma de produzir o cuidado mais resolutivo ao paciente, acolhendo-o e produzindo o vínculo. A prática em saúde introduz os aspectos singulares do indivíduo, da família e da comunidade na condução terapêutica, através do compartilhamento de saberes entre trabalhador e usuário, como forma de garantir resultados qualificados no processo de cura e/ou no controle dos sofrimentos, danos, transtornos, doenças e mortes.

O que se pretende através da interdisciplinaridade é realizar uma ação flexível, em que os profissionais atuem em suas próprias áreas, executem ações comuns, dialoguem e ampliem a definição de tarefas por pacto construído na própria equipe. As atividades específicas e as comuns compõem o projeto assistencial construído pela equipe12.

O trabalho multiprofissional deve caracterizar-se por uma prática híbrida capaz de escapar ao limite disciplinar das profissões, sem hierarquização e sem divisões técnicas ou sociais, com os usuários e com a equipe de saúde. O ato terapêutico ocorre em vários planos e se realiza por intermédio das múltiplas categorias profissionais e múltiplos campos de conhecimento e de práticas, em uma perspectiva entre-disciplinar de produção de cuidado pelos sujeitos capaz de desafiar os modos disruptores das práticas de pensamento e de operação profissional cientificista. A escolha de uma perspectiva substitutiva serve para interrogar nossas práticas, colocar-nos ativos na composição de planos de consistência ao ordenamento das equipes de saúde12.

Sob essa perspectiva, a equipe multiprofissional de saúde teria a oportunidade de compor e inventar a intervenção coletiva, constituindo cada desempenho ampliado ou modificado em um desempenho protegido pela condição de equipe. As práticas se realizariam voltadas a cada situação concreta e relativa da realidade de cada equipe ou local15.

Grandes dificuldades são observadas na construção da proposta interdisciplinar na área da saúde. Ainda há o mito de que uma ciência técnica, objetiva e neutra conduza necessariamente a outro mito, o do progresso, além de haver obstáculos de ordem psicossocial de dominação dos saberes, uma forte tradição positivista e biocêntrica no tratamento dos problemas de saúde, e a disputa de espaços e poder14.

A interdisciplinaridade ainda é uma realidade distante das práticas predominantes no Programa de Saúde da Família, com ou sem Equipe de Saúde Bucal. A presença das Equipes de Saúde Bucal agudiza as contradições já existentes entre médicos e enfermeiros, entre profissionais de nível superior e profissionais de nível médio. Seja por uma disputa de poder-espaço, ou uma auto-afirmação da especialidade, os trabalhadores de saúde tendem a ter dificuldade em interagir seus saberes. Para que não seja uma utopia e se aproxime cada vez mais da realidade, é necessário haver compartilhamento das vivências e reconstrução dos papéis profissionais, propiciando um processo participativo e de partilha de saberes, transformando a realidade do processo saúde-doença da população.

Inserção da saúde bucal nas Equipes de Saúde da Família

Historicamente, a Odontologia, nos serviços públicos, sempre adotou um modelo tradicional, centrado no atendimento curativo/mutilador. Esse fato pode ser explicado a partir da própria consolidação dos atos odontológicos. Também a Odontologia do século XX pautou-se pelo paradigma flexneriano, caracterizado pelo biologicismo, especialismo, curativismo, tecnicismo, individualismo e objetivismo16.

A construção do saber odontológico moderno se dá sobre a seguinte tétrade: doença objetiva, indivíduo doente, tratamento singular, terapeuta individual. Clínica, cirurgia, individualismo, curativismo. Este modelo não responde mais aos problemas de saúde bucal da população e, se o custo financeiro alcança escalas cada vez mais altas, a eficiência cada vez mais se perde.

O modelo de assistência odontológica decorre de uma concepção de prática centrada no indivíduo doente, realizada com exclusividade por um sujeito individual, o cirurgião-dentista, no restrito ambiente clínico-cirúrgico, em que a prática odontológica é enfatizada pelo pensamento de mercado, considerando a saúde como um bem de consumo, uma mercadoria16.

Na lógica do modo de produção capitalista, a saúde bucal é considerada um bem de consumo, e os trabalhadores que a realizam seguem uma concepção fragmentadora na produção do cuidado, gerando assim mais nichos de mercados e mercadorias, reduzidas ao átomo dos procedimentos. O cirurgião-dentista especialista reduz a unidade bucal a apenas aquela parte do todo ao qual ele se especializou.

Observa-se que essa fragmentação não se dá apenas na assistência, mas também na gestão, pois a equipe de saúde bucal já se insere no Programa de Saúde da Família como uma equipe à parte, recortada e distante das outras profissões ou especialidades, com coordenação e supervisão próprias. Este especifismo hipetrofia as dificuldades de integração. Há uma dupla fragmentação do processo de trabalho e da unidade de gestão, que pode ser apontada como um obstáculo à proposta de uma clínica ampliada e do trabalho interdisciplinar, impeditiva, em médio prazo, do próprio trabalho17.

Além disso, a assistência odontológica caracteriza-se por uma prática centrada na queixa-conduta, com baixa resolubilidade e dependência externa, na medida em que baseia sua atuação na orientação e na formação de seus recursos humanos, empregando uma tecnologia com insumos e equipamentos importados, de alta tecnologia16,18.

A produção do cuidado em saúde bucal coletiva precisa, portanto, estabelecer o vínculo, abrangendo a dimensão subjetiva do ato terapêutico, não só na dimensão relacional, mas na própria compreensão de não haver processo saúde/doença puramente objetivo.

O que ocorre na prática é que os cirurgiões-dentistas entendem equipe como, na maioria das vezes, o constrangimento de "muita gente" usar o "mesmo espaço". A prática permanece inalterada, centrada no núcleo de conhecimento de cada trabalhador, ocasionando um desencontro de saberes, a busca sempre frustrada de uma modernidade tecnológica e uma obsolescência social real. A equipe de saúde bucal passa a se responsabilizar exclusivamente pelos problemas da boca, não estabelecendo interconexões e complementaridades com as práticas desenvolvidas pelos outros trabalhadores que atuam no Programa de Saúde da Família, constituindo-se em um apêndice ao programa18. Soma-se a isso o fato de que, nos serviços de saúde bucal, existe uma enfática resistência dos trabalhadores especializados a se adequarem à mudança da organização do trabalho pela queixa de gerar sobrecarga16. O individualismo profissional e a valorização do especialismo impedem a visão abrangente do cuidado integral ao usuário individual, sobretudo do cuidado integral ao usuário coletivo.

Dentro do processo de construção do novo modelo de atenção a saúde, representado pelo Programa de Saúde da Família, a participação dos cirurgiões-dentistas foi praticamente nula. A saúde bucal sempre esteve à margem de todo processo de reordenação das ações de saúde, muitas vezes demonstrando desconhecimento e desinteresse16. A participação da Odontologia não se deu no mesmo ritmo que a Medicina e a Enfermagem nas lutas pela Reforma Sanitária brasileira e na construção do SUS. A atuação não significativa dos profissionais de Saúde Bucal no processo da reforma dificultou sua inserção no sistema e continua como entrave à efetiva integração da Odontologia na equipe de saúde da família.

Para que ocorra a mudança da prática odonto-lógica em um modelo interdisciplinar é preciso priorizar os dispositivos da integralidade e a filosofia da equidade, que são capazes de romper as barreiras, construindo novas formas de fazer/agir na prática cotidiana16. O norte oferecido por integralidade e equidade deve ser experimentado por todos os sujeitos da equipe durante suas práticas, devendo ser incorporado no cotidiano dos processos de trabalho em equipe.

A Equipe de Saúde Bucal, para efetivamente se inserir no Programa de Saúde da Família, precisa de gestores comprometidos com a organização do SUS e engajados com a saúde coletiva; de trabalhadores valorizados para desenvolver seu conhecimento específico, mas educados de forma contínua e permanente nos serviços no compromisso com a defesa da vida individual e coletiva; e de uma comunidade integrada ao planejamento, nas decisões e na avaliação das ações de saúde18.

As mudanças precisam ocorrer no processo de formação, nas lógicas de gestão e no processo de trabalho, de modo a articular os princípios gerais do SUS com os princípios específicos da Atenção Primária e da Estratégia Saúde da Família.

 

CONCLUSÃO

O (re)construir da prática odontológica no Programa de Saúde da Família é um desafio que envolve não só os trabalhadores de saúde, mas também a política de saúde, os centros formadores e as sociedades adscritas em cada território, entendido nas dimensões demográficas, epidemiológicas, socioeconômicas e histórico-culturais.

Muitos são os obstáculos que impedem a realização da interdisciplinaridade no Programa de Saúde da Família e na relação entre Equipe de Saúde Bucal e Equipe de Saúde da Família. O modelo vigente de formação profissional para a área da saúde reforça a formação clínica na vertente das ciências biomédicas, deslocando o social para a periferia. Essa formação profissional biologicista, individual e autônoma do cirurgião-dentista influi no processo de trabalho desses sujeitos, isolando e impedindo a troca de saberes com os outros membros da equipe.

Assim, torna-se necessária uma mudança das diretrizes curriculares dos cursos de saúde, propiciando ao aluno uma formação problematizadora, capaz de habilitar os profissionais a recriarem os saberes e modo a darem conta das realidades concretas, historicamente saturadas. Desde a formação é preciso aprender/fazer em grupo, visando o desenvolvimento da capacidade de compartilhamento numa equipe que se realize em processo terapêutico usuário-centrado, individual e coletivo.

No serviço, as criações de espaços coletivos, em que equipes de saúde compartilham a elaboração de planos gerenciais e de projetos terapêuticos, dependem não somente da formação recebida, mas também de uma ampla reformulação da mentalidade e da legislação do sistema de saúde, permitindo aos gestores estimularem a construção da interdisciplinaridade.

A ênfase na equipe interdisciplinar indica o caminho da mudança dos processos de trabalho, alicerçando a integralidade e seus dispositivos (acolhimento, vínculo, autonomia, resolubilidade, responsabilização) como pilares na construção de novas práticas centradas em modelo equânime, socialmente justo, eticamente adequado e tecnicamente superior.

Colaboradores

MR FARIAS participou na concepção do artigo, na coleta e análise de dados e na redação final. JJC SAMPAIO participou na elaboração da metodologia, na fundamentação teórica e na revisão da análise e da redação final do artigo.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 28/4/2009
Aprovado em: 26/9/2009

 

 

* Correspondência para / Correspondence to: MR FARIAS. E-mail: <marifarias_odonto@yahoo.com.br>.