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RGO.Revista Gaúcha de Odontologia (Online)

versão On-line ISSN 1981-8637

RGO, Rev. gaúch. odontol. (Online) vol.61  supl.1 Porto Alegre Jul./Dez. 2013

 

REVISÃO / REVIEW

 

Utilização de dentes humanos: aspectos éticos e legais

 

Human teeth use: ethical and legal aspects

 

 

Giovana Mongruel GOMESI; Gisele Mongruel GOMESII; Yasmine Mendes PUPOI; Osnara Maria Mongruel GOMESI; Leide Mara SCHMIDTIII; Vitoldo Antonio KOZLOWSKI JUNIORI

I Universidade Estadual de Ponta Grossa, Departamento de Odontologia. Av. General Carlos Cavalcanti, 4748, Uvaranas, 84030-900, Ponta Grossa, PR, Brasil.
II Universidade Estadual de Ponta Grossa. Departamento de Ciências Jurídicas. Ponta Grossa, PR, Brasil.
III Universidade Estadual de Ponta Grossa. Departamento de Núcleo de Educação à Distância. Ponta Grossa, PR, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

O reconhecimento da importância do elemento dental como órgão humano é um fato muitas vezes negligenciado ou desconsiderado pela maioria dos odontólogos e por alguns profissionais vinculados à pesquisa científica, que utilizam grandes quantidades de dentes humanos em seus trabalhos, e por acadêmicos dos cursos de Odontologia. O presente estudo tem como propósito rever os aspectos éticos e legais envolvidos na utilização de dentes humanos por todos os envolvidos, sejam eles pesquisadores, professores e/ou alunos, promovendo assim um uso racional desses órgãos, o que vem sendo possível com a criação de Bancos de Dentes nas universidades. Diante do exposto, torna-se necessária a existência de um vínculo entre o Banco de Dentes e o Comitê de Ética da Instituição em que este se encontra, a fim de que se estabeleçam, desde o início de sua organização, diretrizes e normas de funcionamento conjuntas, visando ao cumprimento da legislação vigente.

Termos de indexação: Dente. Ética. Legislação.


 

ABSTRACT

The perception of the dental element as a human organ is neglected and disregarded many times by most of the dentists that use a great amount of human teeth in their works, by some of the professionals linked to scientific research, by professors and also by academics of dentistry courses. The main goal of this study is to review in the literature, the ethical and legal aspects involved in the use of human teeth in universities, demonstrating that that perception should be implicit in all its users, whether researchers, professors and/or students, resulting in a rational use of those organs, such as is possible with the creation of Bank of Teeth in universities. Facing the foregoing, it is necessary the existence of a link between the Bank of Teeth and the Ethics Institutional Committee of the university, in order to be establish guidelines, rules, standards and mode operations since the beginning of the bank organization, aimed at compliance with current legislation.

Indexing terms: Tooth. Ethics. Legislation.


 

 

INTRODUÇÃO

A valorização do órgão dentário se manifesta desde a época dos egípcios, hebreus e fenícios, quando também ocorria o reaproveitamento do elemento dental humano como material restaurador1. Entretanto, a valorização do elemento dental é um fato muitas vezes pouco considerado pela maioria dos odontólogos e por profissionais vinculados à pesquisa científica, que utilizam dentes em seus trabalhos, desconsiderando os aspectos éticos e legais envolvidos em tal processo2.

Em 1997, com a formulação da Lei de Transplante no Brasil, os dentes passaram a ser reconhecidos como órgãos. Com a atual legislação brasileira, a exigência de dentes no ensino, tanto para a finalidade didática quanto para utilização em pesquisas e para finalidades clínica-terapêuticas, trouxe à tona questionamentos éticos em torno do comércio ilegal de dentes humanos. De acordo com a Lei de Introdução ao Código Civil, no seu artigo 3º, "Ninguém se escusa de cumprir a lei alegando que não a conhece" (In verbis); logo, praticantes do comércio ilegal de dentes podem se enquadrar nas Leis penais e/ou civis3.

Assim, a utilização de dentes humanos extraídos reveste-se de aspectos éticos importantes, principalmente quando esses procedimentos não estão atrelados às necessidades terapêuticas dos sujeitos envolvidos4. Para obtenção desses dentes naturais de forma ética e legal, é necessário que os mesmos sejam obtidos em um Banco de Dentes, onde eles são armazenados e mantidos até a época de sua utilização. Além dessa função de armazenar e fornecer dentes, o Banco de Dentes tem por objetivo principal promover a conscientização dos indivíduos sobre a importância dos dentes como órgão e sua relação com a saúde geral, levando informações relativas a sua utilização em pesquisas científicas e tratamentos. A existência deste banco é reforçada e justificada por aspectos legais, culturais e científicos, visando evitar o "comércio" de estruturas dentais sabidamente utilizadas nos cursos de Odontologia, racionalizando assim seu uso. Somam-se a isso uma nova forma de visão do dente como parte integrante do quadro de saúde e formas de educação que, através da conscientização, estabelece uma mudança de hábitos e a valorização real do dente como órgão5.

O propósito desse artigo foi rever na literatura os aspectos éticos e legais envolvidos na utilização de dentes humanos, fornecendo subsídios a todos os seus usuários, sejam eles clínicos, pesquisadores, professores e/ou alunos dos cursos de Odontologia.

Dente como um órgão

Conceitualmente, o dente é um órgão do corpo humano, sendo formado por diferentes tecidos, em proporções variáveis, apresentando funções específicas e forma reconhecível6. Soma-se a isto o fato de ser também um material biológico de seres humanos, de onde, potencialmente, pode-se obter a identidade genética do doador, por meio da extração do DNA, que é uma macromolécula responsável pela transmissão das características hereditárias, organizada ao longo de 23 pares de cromossomos no genoma humano, possuindo vários marcadores que servem como base para identificação humana7.

Em 1997, com a formulação da Lei de Transplante no Brasil (Lei n. 9434 de 4 de Fevereiro de 1997)3, a equipe que coordenava o Banco de Dentes Humanos da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo conseguiu, no Departamento de Odontologia da Vigilância Sanitária de São Paulo, que os dentes passassem a ser reconhecidos como órgãos do corpo humano e como tais deveriam se submeter à nova lei. Essa lei dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. No Capítulo II Da Disposição Post Mortem de Tecidos, Órgãos e Partes do Corpo Humano para Fins de Transplante, o Art. 6º disciplina: "É vedada a remoção post-mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano de pessoas não identificadas". No Capítulo V Das Sanções Penais e Administrativas, o seu Art.14 prevê reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa para quem remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta lei. Ela também determina, em seu Art. 15: "pena de três a oito anos de reclusão, e multa de 200 a 360 dias-multa para quem comprar ou vender tecidos, órgãos, ou partes do corpo humano", e "incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação". Já o Código Penal Brasileiro reserva-nos o Capítulo II Dos Crimes Contra O Respeito Aos Mortos, onde se encontra o artigo 210, que dispõe sobre "Violar ou profanar sepultura ou urna funerária", com pena de reclusão de um a três anos, e multa8.

Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) é uma instância colegiada, de natureza consultiva, deliberativa, normativa, educativa, independente e vinculada ao Conselho Nacional de Saúde, o qual, pela Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996, regulamenta as normas para utilização de seres humanos em pesquisas. Dispõe em seu inciso IV: "O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa processe-se após o consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à participação na pesquisa". O termo de consentimento livre também pode ser chamado de consentimento voluntário (Código de Nuremberg 1947), consentimento informado (Declaração de Helsinque 1964- 2000), consentimento pós-informado ou pós-informação. Entretanto, o Conselho Nacional de Saúde entende que o nome Termo de Consentimento Livre e Esclarecido preenche melhor os requisitos éticos vinculados a ele9. Entende como livre por não poder haver nenhum tipo de limitação no sentido de influenciar a vontade e a decisão do sujeito da pesquisa, e esclarecido na medida em que se considera que o compromisso com o sujeito da pesquisa não é apenas o de informar, mas o de esclarecer10.

Já a Resolução n. 347, de 13 de janeiro de 2005, também do Conselho Nacional de Saúde, trata da necessidade de regulamentar o armazenamento e a utilização de material biológico humano no âmbito de projetos de pesquisa e determina que "o material biológico será armazenado sob a responsabilidade de instituição depositária, a qual deverá ter norma ou regulamento aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) dessa instituição"11. Assim, a concepção de pesquisa envolvendo seres humanos engloba qualquer parte do corpo humano, inclusive os dentes, o que constitui uma particularidade tradicional e corriqueira de pesquisa em campo odontológico. Logo, nesses casos, o pesquisador deverá respeitar a legislação vigente12.

Uso de dentes humanos em pesquisas e no ensino

O uso de dentes humanos em pesquisas passa atualmente por algumas modificações. Grande parte dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) está conscientizada à respeito das questões éticas e legais envolvidas no uso e na manipulação desses dentes, passando a exigir do pesquisador a comprovação da sua origem, por meio de uma carta fornecida pelo Banco de Dentes da Instituição ou dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido assinados por cada doador13. A questão ética envolvida no uso desses dentes, nas universidades de Odontologia, diz respeito à origem destes órgãos, algumas vezes negligenciada ou desconsiderada pelos seus usuários. Para o uso dos mesmos, é necessária a obtenção do consentimento do doador, por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em que o doador, através desse documento, autoriza e legaliza a doação; desde que não resulte em danos ao mesmo.

Entretanto, a exigência de dentes humanos nos cursos de Odontologia faz com que os alunos muitas vezes utilizem procedimentos ilegais e não-éticos para sua aquisição, beneficiando assim o comércio ilegal dos mesmos. De acordo com Paula et al.14, em 2001, o comércio ilegal de dentes nas universidades e demais instituições de ensino, e o emprego de dentes sem a devida documentação e legitimação de sua doação caracterizam situações habituais (crimes) em muitas escolas de Odontologia e podem ser coibidas com a implantação dos Bancos de Dentes. Segundo o Código de Ética Odontológica, no Capítulo XV Da Pesquisa Científica, seu Art. 39 prevê que o nãocumprimento das legislações que regulam a utilização do cadáver para estudo e/ou exercícios de técnicas cirúrgicas e os transplantes de órgãos é considerado infração ética, podendo incorrer nas penalidades previstas no seu Capítulo XVI Das Penas e suas Aplicações, Art. 40, que vão desde a simples advertência confidencial à cassação do exercício profissional ad referendum do Conselho Federal15.

Banco de dentes humanos

Pelo exposto, o funcionamento do Banco de Dentes deve ser como o de um banco de órgãos, o que torna necessária a autorização do doador para a utilização dos seus dentes. Cabe aos Bancos de Dentes, por meio de atividades educativas, palestras, cartazes e folders, procurar conscientizar, tanto a comunidade leiga quanto a científica, da importância cultural, bioética, social, legal e moral da sua existência como um banco de órgão13. Portanto, a criação de um Banco de Dentes justifica-se, legalmente, para o fornecimento de dentes em condições adequadas de manuseio e como meio de coibir o comércio irregular16.

Um Banco de Dentes é uma coleção que pode conter elementos hígidos ou não, classificados de acordo com suas características anatômicas, distribuídos e mantidos em recipientes com soluções apropriadas, ou seja, seguindo as condições ideais de armazenamento, formado a partir de dentes doados pelos pacientes, cirurgiões-dentistas ou pela população em geral17.

No Brasil, Gabrielli et al.18 foram pioneiros na menção à existência de um Banco de Dentes Humanos (BDH) extraídos e criaram o método de colagem de fragmentos dentários obtidos em Banco de Dentes, sob condições favoráveis de armazenamento, para a restauração de dentes anteriores fraturados destacando como vantagens a excelente resposta estética, o fator emocional e a reconstrução da guia incisal19. Porém, o pioneirismo no uso de dentes extraídos na Odontologia parece pertencer a Hayward, em 1968, embora existam relatos na literatura de que já em 1600 a.C. os fenícios praticavam esta atividade, utilizando, inclusive, dentes de ovelhas em humanos20. Em um museu, localizado em Roemer-Pelizaeus, na Alemanha, existem molares unidos por fio de ouro, que datam 3000-2500 a.C., achados em Gizé, Egito. No museu do Louvre, Paris, há outra peça datada dos séculos IV e V a.C., encontrada em Sidon, antiga cidade Fenícia, com dentes talhados em marfim, unidos com fio de ouro em substituição aos dentes ausentes21. O uso clínico de dentes extraídos está disposto na Lei de Transplantes no Brasil, no seu Capítulo IV Das Disposições Complementares, Art. 10, segundo o qual "o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim escrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento"3.

Com a criação dos Bancos de Dentes e de sua respectiva divulgação, a importância do dente como um órgão cresceu, aumentando o número de doações e, consequentemente, o número de atividades realizadas com os mesmos. Sabe-se que o propósito principal de um Banco de Dentes é suprir as necessidades acadêmicas, fornecendo dentes humanos para pesquisa ou para treinamento laboratorial pré-clínico dos alunos, dessa forma eliminando o comércio ilegal de dentes que ainda existe nas faculdades

Utilização racional do dente humano

Esse ato propicia condições adequadas à rediscussão, na academia, da importância do elemento dental como órgão e sua relação com a saúde geral do indivíduo, bem como sua utilização racional em pesquisas científicas, no uso terapêutico e no ensino. A legislação vigente referente à pesquisa envolvendo seres humanos prevê também o papel social desse banco em repassar informações à população e de promover campanhas de conscientização para estimular a doação de dentes, coibindo com o comércio ilegal deste órgão22.

Desta forma, a criação de um Banco de Dentes nas Universidades de Odontologia e em todas as Instituições de Ensino é fundamental para orientar a utilização ética do órgão dental. Sendo assim, sua implantação, com o papel de fornecimento de dentes a acadêmicos, professores e pesquisadores de forma ética, legal e nos padrões de biossegurança, propicia um menor risco de contaminação cruzada, visto que cabe ao mesmo zelar pela eliminação dessa infecção cruzada existente no manuseio indiscriminado de dentes extraídos23.

Termo de consentimento livre e esclarecido

Com prioridade deve ser vista a legalidade da origem dos dentes. Nos casos em que um ou mais dentes são extraídos, deve-se perguntar ao paciente se ele aceita doar os dentes e informar-lhe o destino dos mesmos e com qual finalidade tais dentes serão utilizados. Caso ele concorde, deverá ser solicitada, dentro dos aspectos legais, a sua assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Esse termo é individual e pode ser usado em clínicas particulares, postos de saúde, clínicas de instituições de ensino e hospitais13.

Segundo Silva & Ramos24 a única forma de garantir um tratamento respeitoso ao doador de órgãos, ao órgão dental doado, bem como ao receptor do órgão doado, é através da obtenção do consentimento livre e esclarecido do doador, de seus familiares e do receptor do órgão. Somente assim é possível manter nas faculdades de Odontologia um Banco de Dentes Humanos que supra as necessidades daquelas instituições, dentro de padrões éticos e bioéticos.

 

DISCUSSÃO

O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é exigido hoje em todas as pesquisas que envolvem o ser humano ou partes dele, estando esses documentos fundamentados no princípio da autonomia, referencial bioético do respeito devido aos direitos fundamentais do ser humano, inclusive o da autodetermin a ç ã o . V i s a preservar a integridade do indivíduo doador, visto que o material originado de uma pessoa (neste caso, o dente) traz em si componentes de sua identidade genética. Protege a dignidade do ser humano, seja ele o doador, o responsável pelo Banco de Dentes, o sujeito da pesquisa ou o pesquisador responsável4.

Entretanto, deve-se tomar precaução no sentido de se obter um parecer jurídico quanto à legalidade e valor desses documentos. Esses documentos (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Carta de Doação) são obrigatórios, expedidos em duas vias, sendo que uma acompanha o órgão doado, a partir do centro de captação até o Banco de Dentes, onde será arquivada, e a outra deve ser entregue ao doador. Um aspecto importante é que o Consentimento Livre e Esclarecido seja explicativo e de fácil compreensão. O paciente deve declarar estar consciente de todo o processo, assegurando seu direito de escolha10. Nos casos de impedimentos legais, como em pacientes deficientes mentais ou menores de idade, o responsável legal deverá assinar o documento22.

De acordo com Ramos4, as exigências éticas não podem ser entendidas apenas no âmbito burocrático. O regimento deve preservar a conduta ética dos pesquisadores e, conseqüentemente, preservar os pesquisadores e a sua instituição de possíveis problemas jurídicos. Simplesmente apresentar, nos anexos, a documentação exigida é insuficiente no sentido de instruir adequadamente aos leitores do trabalho sobre a metodologia empregada quanto à forma de se convidar, informar e obter do participante seu livre consentimento como colaborador da pesquisa.

A Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos defende, sobretudo, a dignidade e os direitos dos indivíduos, contra discriminações com base nas suas características genéticas, e a proteção desses indivíduos nas pesquisas realizadas, tornando seus dados genéticos armazenados com confidencialidade assegurada25. Segundo Potsch et al.26, os dentes, principalmente a polpa dentária, são importantes fontes de DNA, resistindo melhor do que qualquer tecido humano à degradação post morten, variações de pressão e temperatura e isto possibilita a a preservação da identidade genética individual. Sendo assim, por mais de quinze anos os métodos de análise de DNA vêm sendo utilizados mundialmente para solucionar identidades em crimes violentos, atentados terroristas, desastres em massa e pessoas desaparecidas. A identificação através do DNA dentário é muito importante. Um dos melhores exemplos que pode ser citado foi sua utilização na identificação das vítimas do Tsunami, tragédia ocorrida em dezembro de 2004, quando cirurgiões-dentistas identificaram corpos por análise do DNA dentário e estudo das arcadas, sendo que aproximadamente 75% dos corpos foram identificados por análise dentária. A grande vantagem do DNA dentário é a sua autopreservação, o que permitiu que Odontolegistas continuassem trabalhando nas identificações meses após a tragédia, enquanto outras amostras de DNA não se preservam na ausência de refrigeração adequada27. Entretanto, para Lijnen & Wilems28, a recente análise de DNA apresentada à Odontologia forense para identificação de indivíduos utilizando material genético extraído de dentes e saliva, apesar de muito boa, ainda é uma questão de debate e crítica no meio jurídico.

Com a conscientização de profissionais e leigos na obtenção de dentes humanos pela forma ética e legal, o Banco de Dentes assume importante função com a eliminação do comércio ilegal dos mesmos12. Sabe-se que hoje a utilização em pesquisas ou terapias sem a devida legitimação de sua doação é crime. No entanto, a realização de pesquisas na área odontológica depende, muitas vezes, da existência de dentes naturais. Assim, a solução para a legalização do emprego de espécimes dentários, no ensino da Odontologia e no desenvolvimento das próprias pesquisas, foi a criação dos Bancos de Dentes Humanos que têm por função organizar e facilitar a doação deste órgão, formalizando também as suas origens, criando então condições ideais para aprovação de projetos de pesquisa pelos Comitês de Ética em Pesquisa14. A utilização desses elementos dentários cedidos por um Banco de Dentes, como fonte idônea, objetiva, assim, atenderem tanto os procedimentos clínicos quanto as atividades de ensino e pesquisa.

Essa distribuição dos órgãos dentais do Banco de Dentes deve ser feita com base em critérios claros e próprios, de acordo com a finalidade do uso. Exemplificando: para os fins de pesquisa, o banco deve possuir uma cópia do projeto e do parecer do Comitê de Ética em Pesquisa que aprovou a mesma e, na medida do possível, solicitar o retorno dos espécimes ao banco, após a conclusão do estudo. Para fins de ensino, a utilização deve basear-se na necessidade de órgãos dentais que cada disciplina apresenta, de modo a racionalizar o emprego em cascata. Em relação ao uso terapêutico, este se restringe a restaurações biológicas, por meio de colagens de fragmentos, a confecção de próteses ou de mantenedores de espaço29.

A técnica de colagem de fragmentos de dentes naturais para restaurar dentes posteriores e anteriores tem grande alcance social por ser de baixo custo para o profissional, pois não envolve o trabalho de terceiros, nem requer moldagens, tróqueis, entre outros custos adicionais, podendo ser realizado para todas as classes sociais no restabelecimento da estética e da função de pessoas que não tenham acesso a outro tipo de trabalho protético30-31. Diante disso, a valorização do reaproveitamento do dente, seja ele decíduo ou permanente, assume fundamental alternativa na recomposição anatômica das estruturas dentárias perdidas17.

Percebe-se assim que cada vez mais há a necessidade de campanhas de informações voltadas para as Faculdades de Odontologia, para que mais Bancos de Dentes sejam institucionalizados no território brasileiro. A constituição de Banco de Dentes nas instituições de ensino parece ser um processo irreversível e fundamental para orientar a utilização ética do órgão dental21. A discussão sobre a utilização ética e legal de dentes humanos deve ser incentivada nos cursos de graduação e pós-graduação, bem como nos eventos e periódicos científicos; uma vez que as pesquisas científicas que envolvem dentes humanos podem e devem ser executadas dentro desses padrões éticos e legais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A remoção do órgão dental é ainda um ato comum nos estabelecimentos de Assistência Odontológica e, na maioria das vezes, ainda não existe um destino apropriado a esse elemento extraído. Portanto, os cirurgiões-dentistas e os acadêmicos devem estar cientes das obrigações, da ética e dos aspectos legais do destino dos mesmos, procurando, por meio de campanhas de conscientização o amadurecimento ético e científico para encaminhamento dos dentes a um Banco de Dentes.

Pelo exposto, fica evidente que o profissional que não se adequar às normas vigentes estará infringindo os dispositivos legais, podendo, assim, sofrer desde punições administrativas, como uma simples advertência confidencial até a cassação do exercício profissional, sanções essas previstas no Art. 40 do Código de Ética Odontológica, até conseqüências na esfera civil e penal, correndo o risco de ser apenado com a perda de sua liberdade pela pena de reclusão.

 

Agradecimentos

Ao Banco de Dentes Humanos (BDH) da Universidade Estadual de Ponta Grossa pela colaboração para o desenvolvimento desse trabalho.

 

Colaboradores

GM GOMES e YM PUPO participaram do levantamento da literatura e da redação do trabalho. GM GOMES participou com o auxílio da revisão jurídica na execução desse trabalho e redação do artigo. OMM GOMES forneceu informações sobre o desenvolvimento do Banco de Dentes Humanos da Universidade Estadual de Ponta Grossa e participou da revisão e redação desse trabalho. LM SCHMIDT e VA KOZLOWSKI JUNIOR participaram da orientação e redação do artigo.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
GM GOMES
e-mail:
giomongruel@gmail.com

 

Submetido em: 20/8/2008
Versão final reapresentada em: 12/9/2009
Aprovado em: 27/8/2011