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RSBO (Online)

versão On-line ISSN 1984-5685

RSBO (Online) vol.7 no.1 Joinville Mar. 2010

 

ARTIGO DE RELATO DE CASO CASE REPORT ARTICLE

 

Atuação profissional do cirurgião-dentista diante da Lei Maria da Penha

 

Professional practice of the dentist in light of the "Maria da Penha" law

 

 

Rhonan Ferreira da SilvaI; Mauro Machado do PradoII; Robson Rodrigues GarciaIII; Eduardo Daruge JúniorIV; Eduardo DarugeIV

IDoutorando em Biologia Bucodental/Anatomia pela Faculdade de Odontologia de Piracicaba da Universidade Estadual de Campinas (FOP-Unicamp). Professor adjunto de Odontologia Legal da Universidade Paulista (Unip) de Goiás. Perito criminal da Polícia Técnico-Científica (GO)
IIDoutor em Ciências da Saúde do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências da Saúde (PPGCS-FS) da Universidade de Brasília (UnB). Professor de Odontologia Legal da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Goiás (FO-UFG). Cirurgião-dentista e advogado
IIIDoutor em Clínica Odontológica da Área de Cirurgia da FOP-Unicamp. Professor titular de Cirurgia Traumatologia e Anestesiologia da Universidade Paulista (Unip) de Goiás
IVProfessores Doutores de Odontologia Legal da FOP-Unicamp. Cirurgiões-dentistas e advogados

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

INTRODUÇÃO: No Brasil, a violência contra a mulher constitui um problema social que está sendo tratado em diversos programas de saúde pública, pois a prática atinge todas as classes sociais. Nesse sentido, e com base no princípio de que a mulher é considerada a parte vulnerável numa relação familiar, foi aprovada a Lei n.º 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que aumenta o rigor das punições contra aqueles que agridem as mulheres do seu círculo familiar. Entre os diversos tipos de agressão que a mulher pode sofrer, as de natureza física são as que podem ser mais facilmente identificadas pelos profissionais da área de saúde, inclusive pelo cirurgião-dentista.
OBJETIVO E RELATO DE CASO: Este estudo visa relatar dois casos de violência contra a mulher em que houve envolvimento de lesões na área de cabeça e pescoço. No primeiro caso, a vítima foi agredida com um soco e perdeu dois dentes anteriores (lesão grave); no segundo, a vítima também foi agredida com socos que produziram equimoses orbitárias e periorais (lesão leve), tendo estas regredido após 30 dias.
CONCLUSÃO: É grande a importância ético-legal do registro adequado dos procedimentos efetuados em vítimas de agressão, pois essa documentação odontológica pode ser solicitada para subsidiar tanto uma avaliação odontolegal como um processo judicial movido contra o agressor.

Palavras-chave: Odontologia legal; violência contra a mulher; responsabilidade legal.


ABSTRACT

INTRODUCTION: In Brazil, violence against women represents a social problem that has been focused in several public health programs, since this practice occurs in all social classes. Therefore, based on the fact that women are considered the vulnerable part in a family relationship, the Law number 11.340/2006, known as Maria da Penha law, was approved, enhancing the punishment to those who offend women of their own family. Among the several types of violence against women, those of physical nature are the ones more easily identified by health professionals, including dentists.
OBJECTIVE AND CASE REPORT: This study reports two cases of violence against women with injuries in the head and neck region, in which the first victim was offended with a punch and lost two front teeth (serious injury), while the second victim was also offended with punches that produced orbital and perioral ecchymosis (mild injury) that decreased after thirty days.
CONCLUSION: A proper record of the dental procedures performed in violence victims is of great ethical and legal importance, because these dental records may be requested to subsidize both a forensic dental evaluation and a lawsuit against the perpetrator.

Keywords: forensic dentistry; violence against women; legal liability.


 

 

Introdução

A violência contra a mulher constitui um tema importante na área de saúde pública, e inúmeros são os programas sociais implementados por órgãos governamentais, entidades filantrópicas e organizações não-governamentais no sentido de obter estatísticas confiáveis, identificar causas, tratar as vítimas, punir os responsáveis e, principalmente, evitar que novos casos ocorram [9].

Entre os diversos tipos de violência de que a mulher pode ser alvo, especificamente em âmbito familiar, citam-se a psicológica (ameaça, ridicularização, constrangimento etc.), a sexual, a patrimonial, a moral e a física, esta última podendo ser entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal [11]. Na maioria dos casos de violência, a vítima necessita de tratamento e acompanhamento multidisciplinar, envolvendo terapia médica, odontológica e psicológica, assistência social e a tutela do Estado para que seus direitos sejam resguardados.

Na prática odontológica a violência física, de um modo geral, é o tipo que pode ser mais frequentemente diagnosticado, e muitas dessas agressões podem ser observadas na região de cabeça e pescoço. Garcia et al. [13] analisaram 614 prontuários do Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG) e 1.138 laudos periciais arquivados no Posto Médico-Legal da cidade e constataram que os diversos traumatismos que acometiam a região de cabeça e pescoço foram de 39,1% e 28,7% em mulheres vítimas de violência. Rezende et al. [15] analisaram 108 laudos periciais emitidos pelo serviço de odontologia legal do Instituto Médico-Legal de Belo Horizonte (MG) e verificaram o registro de 242 lesões de estruturas bucomaxilofaciais: 47,52% (115) atingiram tecidos moles; 29,34% (71), tecidos periodontais; 18,6% (45), tecidos duros/polpa; e 4,54% (11), tecidos ósseos. Além disso, determinados casos de violência sexual também podem produzir lesões traumáticas nos tecidos moles presentes na cavidade oral, como a laceração dos frênulos labiais ou linguais, uma vez que o agressor tende a satisfazer sua libido por meio do sexo oral, associado ou não a outras práticas sexuais [14].

Com o intuito de garantir os direitos da mulher nos casos de violência doméstica e familiar, o poder público aprovou a Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006 [11], popularmente conhecida como Lei Maria da Penha. A referida lei foi batizada em virtude do caso de Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica, cearense, casada e mãe de três filhas, cujo marido tentou matá-la por duas vezes: na primeira, utilizou uma arma de fogo, lesão que deixou a mulher paraplégica aos 38 anos de idade; na segunda, tentou eletrocutá-la no banheiro. Por mais de 20 anos, Maria da Penha lutou para que seu agressor fosse condenado e hoje atua em vários movimentos em defesa de vítimas de violência familiar, motivo pelo qual se tornou um símbolo nacional nessa questão [12].

Nesse contexto, e sabendo-se que nos casos de violência física contra a mulher as estruturas do complexo bucomaxilofacial podem ser atingidas por traumatismos diversos, o presente trabalho tem como objetivo relatar dois casos de violência doméstica em que houve envolvimento de lesões na área de cabeça e pescoço. Com isso, pretende-se orientar o cirurgião-dentista acerca dos aspectos ético-legais envolvidos tanto na identificação, no registro e na notificação de lesões como no atendimento clínico da mulher vítima de violência doméstica, por meio de dois relatos de caso periciais.

 

Relato de caso

Caso 1

Vítima adulta, 23 anos, casada, agredida na face pelo marido com socos e murros, por ciúme. Recebeu atendimento médico e odontológico no dia do fato e posteriormente foi a uma delegacia de polícia, onde registrou ocorrência por agressão. Da delegacia, a vítima foi encaminhada ao Instituto Médico-Legal (IML) da região, mas ela só compareceu no local para ser periciada no dia seguinte ao acontecimento. Durante exame clínico odontolegal, foi constatada laceração dos tecidos periodontais na região de incisivos superiores esquerdos, com avulsão do dente 21 e luxação extrusiva do dente 22. Este último apresentava mobilidade acentuada, inclusive em posição cruzada quando colocado em oclusão (figura 1A). As lacerações e a equimose gengival, associadas ao deslocamento palatino do dente 22, sugerem fratura da cortical alveolar palatina, mesmo que incompleta, ou seja, em galho verde. Radiograficamente, constatou-se que a perda dentária do referido incisivo central tinha sido recente, e o dente 22 apresentava um alargamento do espaço periodontal, indicando a extrusão desse elemento dentário (figura 1B). Após avaliação do profissional que reabilitaria a paciente, foram propostas opções terapêuticas tanto conservadoras, como a fixação dentária do dente 22, associada a tratamento endodôntico, quanto a extração do referido dente. Considerando-se a condição socioeconômica da paciente e o prognóstico do caso (desfavorável, pela possibilidade de reabsorção radicular), optou-se pela extração do dente 22.

 

 

Caso 2

Vítima adulta, 50 anos, foi agredida pelo companheiro (usuário de drogas) com murros na face, cuja motivação estaria relacionada à resistência da vítima em entregar um relógio de pulso ao agressor, objeto este que seria vendido para aquisição de substância tóxico-entorpecente. Buscou ajuda policial e foi posteriormente encaminhada para exame de corpo de delito no IML da região. Durante os exames periciais médico e odonto-legais foram constatadas duas lesões contusas na face, produzidas por golpes distintos, com as seguintes características: uma equimose na região periorbitária esquerda e outra nas regiões labial e submandibular esquerdas, associadas à edema que se estendia por toda essa hemiface (figura 2). Não houve comprometimento dentário nem fratura óssea nas regiões atingidas. Também não foram constatadas sequelas decorrentes dos traumatismos sofridos, sendo empregada apenas terapêutica medicamentosa para controle do edema e da dor. Durante realização de exame pericial complementar, passados 30 dias da data da agressão, foi observada a reparação total das lesões evidenciadas no primeiro exame.

 

 

Discussão

A Lei n.º 11.340/2006 [11], ou Lei Maria da Penha, estabelece em seu conteúdo uma série de medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, contexto esse definido, em seu artigo 5.º, como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e/ou dano moral ou patrimonial. Entre as várias particularidades presentes nessa lei estão: a implementação de atendimento policial especializado para a mulher (artigo 8.º, inciso IV); o atendimento articulado para utilização de serviços sociais do Sistema Único de Saúde, do Sistema Único de Segurança Pública e outras medidas necessárias para amparar a vítima (artigo 9.º); o encaminhamento da ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico-Legal (artigo 11, inciso II); a coleta de todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias (artigo 12, inciso II); a determinação de que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e o requisito de outros exames periciais necessários (artigo 12, inciso IV), sendo admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde (artigo 12, §3.º). Em relação às penas, fica vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (artigo 17), e fica estabelecida a seguinte redação do artigo 129, §9.º, do Código Penal Brasileiro [1]: "Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade", a pena fica estipulada em detenção, de três meses a três anos (artigo 44).

Na rotina odontológica, o cirurgião-dentista pode encontrar-se profissionalmente envolvido em uma situação de violência contra a mulher basicamente de duas maneiras: como o profissional que identifica os sinais de violência ou como aquele que trata as lesões decorrentes das agressões sofridas pela vítima. Em ambos os casos existem normas e leis que explicitam a conduta profissional a ser adequadamente tomada, cabendo até mesmo punição para aquele que se posicionar de forma omissa. Em geral, os aspectos ético-legais que envolvem os casos de violência contra a mulher estão relacionados com notificação compulsória, segredo profissional e registro documental das lesões examinadas e do atendimento efetuado.

 

Notificação compulsória

A Lei n.º 10.778/2003 [5] estabelece a notificação compulsória (obrigatória), no território nacional, dos casos de violência contra a mulher que forem atendidos em serviços de saúde públicos e privados. O cumprimento da medida torna-se fundamental para o dimensionamento do fenômeno da violência física/sexual e de suas consequências, contribuindo para a implantação de políticas públicas de intervenção e prevenção do problema. Uma vez identificada a situação no consultório odontológico, a notificação deve ser realizada pelo cirurgião-dentista de forma sigilosa, utilizando-se os códigos da CID-10 (T74 e outros), em ficha produzida especificamente pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) [10], que deve ser encaminhada ao serviço de referência sentinela ou à autoridade sanitária competente, conforme estabelece o Decreto n.º 5.099/2004 [8], que regulamenta a Lei n.º 10.778/2003 [5] (figura 3).

 

 

Há previsão de multa, conforme inciso II do artigo 66 da Lei das Contravenções Penais, para o profissional que deixar de comunicar à autoridade competente crime de ação pública de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação da pessoa ofendida [2]. Ou seja, o cirurgião-dentista teria a obrigação de notificar os casos em que são observadas lesões de natureza física e que possam ser classificadas penalmente como graves ou gravíssimas. Nesse sentido, citam-se as fraturas maxilomandibulares que resultem em incapacidade para as ocupações habituais (falar, comer etc.) por mais de 30 dias; as fraturas dentárias com a perda da coroa, perdas dentárias decorrentes de fratura radicular ou coronorradicular, avulsão dentária e outras situações que debilitem permanentemente as funções mastigatória e/ou fonética ou comprometam de forma definitiva a estética dentária durante o sorriso ou a conversação; lesões nos tecidos moles da face e que comprometam significativamente a estética facial, tanto pela presença de cicatrizes como por paralisia dos músculos da expressão facial (deformidade permanente).

Em relação às lesões físicas penalmente classificadas como leves, entre elas as equimoses, os hematomas e as fraturas dentárias de pequena extensão, há duas previsões legais a serem evidenciadas, com interpretações divergentes quanto à obrigatoriedade de notificação dessas lesões à autoridade competente. Para o disposto no artigo 88 da Lei n.º 9.099/1995 [4], há a necessidade de representação por parte do ofendido, independentemente do sexo. Entretanto no artigo 41 da Lei Maria da Penha tem-se como não condicionada à representação a notificação de lesões leves, passando a ser uma situação em que o cirurgião-dentista teria a obrigatoriedade de fazê-la. Nos demais tipos de violência que a mulher possa sofrer (psicológica, sexual, patrimonial e moral), também haveria a necessidade de representação formalizada pela própria vítima ou por meio de uma queixa-crime, correspondendo respectivamente à ação penal pública condicionada à representação ou à ação penal privada.

Do ponto de vista ético, a notificação de violência contra a mulher à autoridade competente, quando aplicável, significa cumprimento de um dos deveres fundamentais do cirurgião-dentista, referente ao zelo pela saúde e pela dignidade do paciente, conforme estabelece o inciso V do artigo 5.º do Código de Ética Odontológica [6].

 

Segredo profissional

O atendimento de pessoas em situação de violência exige o cumprimento dos princípios ético-legais de sigilo ou segredo profissional, preceito esse que adquiriu fundamentação mais rigorosa ao ser centralizado no direito do cidadão à intimidade, privacidade e honra, passando a ser entendido como confidencialidade. Essa natureza do conceito de segredo profissional transforma-o em um direito-dever na medida em que, sendo um direito do paciente, gera uma obrigação específica aos profissionais da saúde [16].

A Constituição Federal [3], em seu artigo 5.º, garante que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização material ou moral decorrente de sua violação". O artigo 154 do Código Penal [1] caracteriza como crime "revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem". Da mesma forma, o Código de Ética Odontológica [6] estabelece no artigo 5.º, incisos VI e XIII, respectivamente, os deveres de guardar o segredo profissional e de resguardar sempre a privacidade do paciente. Resguardar o segredo profissional também constitui um direito fundamental do cirurgião-dentista (artigo 3.º, inciso II), e a revelação de fatos sigilosos pode acontecer por justa causa, que compreende principalmente notificação compulsória de doença, colaboração com a justiça nos casos previstos em lei e perícia odontológica nos seus exatos limites (artigo 10.º, §1.º). Nesse sentido, a quebra de sigilo profissional nos casos de violência contra a mulher, desde que regularmente aplicável ao caso específico e feita a comunicação a um serviço ou autoridade competente, não configura infração ética e ainda possui amparo legal para que aconteça sem prejuízos ao cirurgião-dentista [17].

 

Registro documental dos procedimentos efetuados

Uma vez atendida uma paciente vítima de violência doméstica, o cirurgião-dentista deve proceder ao registro detalhado das lesões eventualmente presentes nos tecidos moles ou mineralizados do complexo bucomaxilofacial, devendo ser identificadas quanto à natureza, à localização, à extensão, à coloração, aos dentes e às faces dentárias envolvidas, à época em que foram produzidas, bem como outras informações que julgar necessárias [19]. Todos esses dados devem ser registrados no prontuário da paciente, não podendo ser suprimidas outras informações necessárias para o delineamento e a execução do plano de tratamento, como a anamnese e o inventário de saúde. Os exames imaginológicos e demais documentos produzidos em decorrência do atendimento clínico da vítima devem ficar arquivados junto com o prontuário da paciente, com o intuito de cumprir a orientação contida no artigo 5.º, inciso VIII, do Código de Ética Odontológica [6], que é a de "elaborar e manter atualizados os prontuários de pacientes, conservando-os em arquivo próprio". Ressalta-se que, em casos de urgência, constitui infração ética deixar de atender paciente quando não há outro profissional em condições de fazê-lo (artigo 7.º, inciso VII do CEO) [6], o que também se enquadra para a presente discussão.

Caso um procedimento policial seja instaurado, a autoridade poderá requisitar as informações relacionadas ao atendimento clínico efetuado [11], e a paciente tem direito a acesso aos dados contidos em seu prontuário (artigo 5.º, inciso XVI do CEO) [6]. São essas informações clínicas que propiciarão ao perito estabelecer o nexo de causalidade entre as lesões identificadas e/ou tratadas pelo cirurgião-dentista e os fatos de agressão alegados em juízo [18].

 

Conclusão

A Lei Maria da Penha [11] foi aprovada com o intuito de evitar que novos casos de violência contra a mulher sejam cometidos por agressores do seu círculo familiar, aumentando as penas contra os agressores e garantindo que a mulher tenha amplo acesso para resguardar a sua dignidade, saúde e segurança. Nesse contexto, os cirurgiões-dentistas possuem a responsabilidade ético-legal de denunciar às autoridades competentes os casos graves de violência doméstica que forem identificados durante a prática clínica, por meio de uma notificação compulsória, atentando para o sigilo profissional.

Em ambos os casos relatados, as vítimas foram periciadas em épocas próximas às datas em que as lesões foram produzidas, tendo sido possível fazer uma perícia direta. Apenas no primeiro caso foi solicitado um relatório ao profissional que realizou o atendimento clínico da vítima, cujo documento continha as informações necessárias para subsidiar o exame pericial complementar, em que foi constatada a debilidade permanente das funções mastigatória e fonética, além do comprometimento da estética dentária pela perda dos incisivos superiores traumatizados.

Portanto, enfatiza-se a importância ética e legal de que os procedimentos odontológicos sejam adequadamente registrados em um prontuário bem estruturado [7] e que toda a documentação produzida em função dos atendimentos clínicos seja devidamente arquivada [6]. Atenção especial deve ser dada ao diagnóstico ou tratamento de lesões traumáticas presentes no complexo bucomaxilofacial, em que uma notificação venha a ser compulsória ou a documentação odontológica possa ser solicitada para subsidiar uma avaliação pericial ou um processo judicial.

 

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Endereço para correspondência:
Rhonan Ferreira da Silva
Instituto Médico-Legal – Seção de Antropologia Forense e Odontologia Legal
Avenida Atílio Correa Lima, n.º 1.223 – Cidade Jardim
CEP 74425-030 – Goiânia – GO
E-mail: rhonanfs@terra.com.br

Recebido em 29/6/2009.
Aceito em 5/8/2009.
Received on June 29, 2009.
Accepted on August 5, 2009.