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RFO UPF

Print version ISSN 1413-4012

RFO UPF vol.17 n.1 Passo Fundo Jan./Apr. 2012

 

 

Veiculação de publicidade irregular relacionada a um cartão de descontos em odontologia: relato de caso

 

Irregular publicity advertisement related to a discount card in Odontology: case report

 

 

Mário Marques FernandesI; Mara Rosângeles de OliveiraII; Osvaldo Fortes de OliveiraIII;Luiz Renato ParanhosIV; Eduardo Daruge JúniorV

IMestre em Odontologia Legal e Deontologia, odontólogo do Serviço Biomédico do Ministério Público/RS.
IIEspecialista em Saúde Coletiva, odontóloga do Serviço Biomédico do Ministério Público/RS.
IIIMestre em Odontologia Legal e Deontologia, perito oficial odontologista da Politec/MT.
IVProfessor do Programa de Biologia Oral da USC, Baurú, São Paulo, Brasil.
VLivre docente em Odontologia, professor Titular de Odontologia Legal da FOP/Unicamp.

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo relatar um caso de veiculação de publicidade irregular relacionada a um cartão de descontos e discutir os princípios que regem a publicidade em odontologia, fazendo uma reflexãoà luz da legislação vigente no país. Este trabalho relata uma investigação oriunda do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, destinada a verificar irregularidades relacionadas ao produto divulgado em placa publicitária que induzia os leitores ao entendimento equivocado sobre plano médico/odontológico. Como desfecho, foi elaborado inicialmente pelo promotor de justiça um termo de ajustamento de conduta baseado na assessoria técnica realizada pelos odontólogos do Ministério Público, o qual terminou não sendo cumprido, sendo o profissional acionado na justiça para efetuar o pagamento da multa estipulada. Os pacientes que necessitam de serviços de saúde, consumidores e contratantes de planos de saúde estão cada vez mais atentos aos seus direitos, cabendo aos profissionais atua rem de forma ética e lícita no que tange à divulgação e prestação de serviços, sob pena de suas condutas serem investigadas civil e/ou administrativamente pelosórgãos fiscalizadores da sociedade.

Palavras-chave: Controle da publicidade de produtos. Ética odontológica. Legislação odontológica. Planos de sistemas de saúde.


 

ABSTRACT

This article aims to report a case of illegal publicity caused by a discount card and discuss the principles concerning dental advertising, taking into consideration the Brazilian laws. The present paper reports an investigation from the Prosecutors Counsel of Rio Grande do Sul State to check irregularities in a product released on a publicity board that led readers to misunderstand the medical/dental care proposed. The patients who have health insurance and need health care are increasingly more aware of their rights. This leads the professionals to act ethically and with relation to assistance services and advertisements under the penalty of being investigated by civil and/or legal bodies.

Keywords: Control of Advertising Products. Dental legislation. Dental ethics. Health insurance.


 

 

Introdução

O Ministério Público (MP) é fruto do desenvolvimento do Estado brasileiro e da democracia, destacando-se na área civil por atuar na tutela dos interesses coletivos, dentre os quais estão incluídos o direito à saúde e a defesa dos consumidores, o que a tornou uma espécie de ouvidoria da sociedade brasileira. Considerando a necessidade de investigação no âmbito da referida instituição, pode o promotor de justiça instaurar um inquérito civil e solicitar esclarecimentos técnicos necessários para a apuração dos fatos1-3.

Paralelamente, a comunicação assume nos dias atuais uma importância cada vez maior no universo de relações em que se situa o homem moderno. Fatores como a disputa de mercado, a complexidade social imposta por rápidas mudanças no cenário econômico mundial, a globalização de conceitos e critérios têm levado todos os segmentos de mercado à melhoria na qualidade da oferta de produtos e serviços. A capacidade individual da comunicação interpessoal já não basta, devido às novas necessidades pessoais de profissionais, agora fornecedores, e de clientes, agora consumidores de serviços, fazendo com que haja uma necessidade de comunicação mais atual, provocando daí consequências jurídicas inéditas para a rotina da prática odontológica4.

O presente trabalho tem como objetivo relatar um caso de veiculação de publicidade irregular relacionada a um cartão de descontos que ocorreu em uma investigação (inquérito civil) oriunda de uma Promotoria de Justiça numa cidade do estado do Rio Grande do Sul e discutir os princípios que regem a publicidade em odontologia, fazendo uma reflexão à luz da legislação vigente no país.

 

Relato de caso

Um cirurgião-dentista que prestava serviços em consultório particular numa cidade do Rio Grande do Sul veiculou propaganda irregular de seus serviços num periódico da região em desacordo com o Código de Ética. Ele fazia publicidade por meio de folhetos encartados em jornal de circulação municipal anunciando serviços gratuitos e deixando de informar seu nome, número de inscrição no Conselho Regional de Odontologia (CRO) e nome representativo da profissão de cirurgião-dentista. Foi constatada também pela equipe da promotoria a existência de placa defronte ao consultório do referido profissional (Fig. 1) com anúncio que levava o consumidor a entender que havia o oferecimento de um plano de saúde. O Ministério Público tomou conhecimento do caso durante a leitura da matéria referida contida num jornal local pelo promotor de justiça, que solicitou à equipe da promotoria uma imagem da placa contida no local anunciado. Após comprovada a irregularidade, foi instaurado o inquérito civil.

 

 

 

A instituição procedeu às diligências para apurar o caso, entre as quais consulta ao CRO/RS, o qual informou que a publicidade então realizada já havia sido objeto de processo ético na referida autarquia, resultando em conciliação, na qual o profissional se comprometeu a realizar publicidade em consonância com o Código de Ética Odontológica. Entretanto, por descumprimento do acordo, ao profissional foi aplicada pena de censura pública cumulada com multa, além de instauração de processo de fiscalização. O órgão salientou que a publicidade colhida pelo MP fora a mesma colhida anteriormente pelo CRO, bem como causou espanto o fato de o folheto encartado em jornal ter sido coletado em data posterior à aplicação da segunda penalidade. O Conselho informou ainda que a referida clínica não se encontrava registrada como entidade prestadora de assistência odontológica naquele órgão.

O profissional compareceu ao MP para prestar esclarecimentos e declarou que o anúncio não se referia a um plano de saúde, mas, sim, de um cartão de descontos, aceito por médicos de diversas especialidades, farmácias e laboratórios. Afirmou também que cerca de cinquenta pacientes utilizavam tal cartão e que para cobrir o custo do papel e da impressão era cobrada uma anuidade de R$ 20,00 dos usuários. Da mesma forma, o cirurgião-dentista explicou que a expressão "sem limite de consultas", que consta na placa, não significa que as consultas sejam grátis, mas, sim, que o beneficiário do cartão e seus dependentes poderão ter um número ilimitado de consultas com desconto. Afirmou ainda que o referido cartão indicava vários profissionais, além de três ou quatro farmácias que atuavam em parceria com a sua clínica.

Diante dos fatos, todo material coletado nas diligências, depoimentos, ofícios e os quesitos formulados foram enviados para o Serviço Biomédico da Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público, aos cuidados dos odontólogos ali lotados, para análise e elaboração de um laudo técnico de assessoramento. Na discussão do respectivo laudo, foram constatadas as resoluções específicas relacionadas a planos de saúde odontológicos e outras normas ditadas pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO) relacionadas ao caso, bem como as respostas aos questionamentos técnicos.

O caso teve como desfecho um termo de ajustamento de conduta (TAC) e não um processo civil logo de início. A proposta de compromisso de ajustamento de conduta foi aceita. O termo assinado entre as partes versou, entre outros tópicos pertinentes, sobre a obrigação do profissional de não fazer qualquer espécie de publicidade dos serviços odontológicos, escrita ou falada, sem constar seu nome completo, número de inscrição no Conselho Regional de Odontologia e nome representativo da profissão de cirurgião-dentista, bem como o proibiu de anunciar serviços gratuitos, preços e modalidades de pagamento que signifiquem competiçãodesleal ou que induzam o consumidor a acreditar que a clínica oferece plano de saúde, enquanto não houver efetivamente um serviço de plano de saúde devidamente autorizado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão competente para tal. Posteriormente, o profissional foi julgado no âmbito administrativo junto ao Crors e foi punido com a suspensão do exercício profissional por 15 dias e multado com cinco anuidades. Dois anos após, fiscalizando o cumprimento das cláusulas pactuadas, o promotor de justiça constatou que não havia sido providenciado: 1) colocação do nome completo do profissional, número do Crors e nome representativo da profissão de cirurgião-dentista na placa disposta no passeio público, em frente ao seu consultório (Fig. 1), bem como numa outra placa que ali fora disposta oito meses depois, numa segunda vistoria (Fig. 2); 2) nome completo e número do CRO de forma legível em folhetos de divulgação; 3) a colocação da expressão "não é plano de saúde" na placa disposta na frente do consultório (Fig. 1); 4) a retirada de expressões que faziam referência a plano de saúde na placa subsequente à primeira vistoriada (Fig. 2). Com isso, solicitou ao Judiciário a execução dos valores pelo não cumprimento das cláusulas conforme pactuado no TAC, o que representou R$ 27.330,55 reais a serem depositados para o Fundo Municipal da Criança e do Adolescente daquela cidade.

 

 

 

Discussão

No que diz respeito à legislação odontológica, foi com a publicação da resolução do Conselho Federal de Odontologia (CFO), que regulamenta questões relacionadas a descontos em honorários odontológicos por meio de cartões de desconto5, que este tema passou a ter uma análise mais profunda e um posicionamento do órgão federal de fiscalização do exercício profissional. O referido documento ressalta no seu art. 1º que considera antiética a participação de cirurgiões-dentistas como proprietários, sócios, dirigentes ou consultores dos chamados "cartões de descontos". Adiante, no art. 2º, explicita: "Fica proibida a inscrição destes cartões de descontos no cadastro de pessoas jurídicas dos Conselhos Regionais de Odontologia." E no seu art. 3º: "É considerada infração ética a comprovada associação ou referenciamento de cirurgiões-dentistas a qualquer empresa que faça publicidade de descontos sobre honorários odontológicos."5 No caso apresentado, pelas declarações do envolvido, fica clara a caracterização da existência de um cartão de desconto para os interessados. Além do odontolólogo, eram beneficiados médicos, farmacêuticos e também uma ótica.

Já em relação ao conteúdo da placa publicitária, esta não continha o nome e a profissão do responsável técnico, o número de inscrição no Conselho de Classe, além de anunciar desconto em consultas vinculado ao referido cartão. Nesse sentido, o Código de Ética Odontológica é taxativo no seu art. 32: "Os anúncios, a propaganda e a publicidade poderão ser feitos através de veículos de comunicação, obedecidos os preceitos deste Código como da veracidade, da decência, da respeitabilidade e da honestidade." Quanto ao que deve constar no material de divulgação, o art. 33 orienta: "Na comunicação e divulgação é obrigatório constar o nome e o número de inscrição da pessoa física ou jurídica, bem como o nome representativo da profissão de cirurgião-dentista [...]. No caso de pessoas jurídicas, também o nome e número de inscrição do responsável técnico." Em relação às placas mostradas, cabe destacar dois incisos do art. 34: "Constitui infração ética: VII – aliciar pacientes, praticando ou permitindo a oferta de serviços através de informação ou anúncio falso, irregular, ilícito ou imoral, com o intuito de atrair clientela, ou outros atos que caracterizem concorrência desleal ou aviltamento da profissão; XIII – realizar propaganda de forma abusiva ou enganosa."6

Em seu depoimento ao promotor de justiça, o cirurgião-dentista explicou que o beneficiário do cartão e seus dependentes poderão ter um número ilimitado de consultas com desconto (informações não claras ao consumidor), o que vai de encontro com o preconizado nos anexos G e L, do capítulo III, do Código Brasileiro de autorregulamentação publicitária, proposto pelo Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar), que tratamdos itens que devem ou não constar nos anúncios de profissionais dentistas7. Também não encontra respaldo na lei federal que regulamenta a odontologia8, que define que é vedado ao cirurgião-dentista usar de artifícios de propaganda para granjear clientela. Considerando a regulamentação posterior dessa legislação e as conquistas da classe odontológica, infere-se que o profissional ao usar dos recursos de propaganda e publicidade permitidos não a faça de maneira enganosa.

Saliba et al.9 (1936), estudando questões relacionadas à publicidade em odontologia, desenvolveram um levantamento sobre as infrações éticas praticadas pelos cirurgiões-dentistas em relação às normas que regulamentam a comunicação, basicamente no que diz respeito às placas odontológicas. Observaram que apenas 17,1% da amostra pesquisada preenchia todos os requisitos definidos pelo CFO, concluindo que se fazia necessária uma melhor conscientização dos profissionais da odontologia à legislação que regulamenta a publicidade, bem como dos preceitos éticos que normatizam o comportamento profissional.

Com uma metodologia semelhante, Garbin et al.10 (2010) verificaram o enquadramento de placas odontológicas após as determinações da resolução do CFO nº 71/2006, encontrando 44,9% dos anúncios contendo todos os itens obrigatórios. Ainda que se tenha observado uma melhora nos patamares encontrados nessas pesquisas, faz-se necessária a conscientização dos profissionais que não estão seguindo os preceitos éticos estabelecidos, para que a comunicação e divulgação de seus serviços sejam realizadas corretamente.

Ressalta-se no caso apresentado a participação de cirurgiões-dentistas como assessores técnicos do Ministério Público11, onde os promotores e procuradores de justiça podem requisitar investigações no âmbito da odontologia. A instituição, com a promulgação da Constituição brasileira, e posteriormente com a chegada do Código de Proteção e Defesa do Consumidor12, passou a ser acionada para defender os interesses coletivos e individuais indisponíveis.

No caso apresentado, os odontólogos do MP fizeram uma pesquisa e posterior análise técnica do caso, mostrando no laudo apresentado que o material induzia os consumidores a acreditar que se tratava de um plano de saúde. A assessoria instrumentou o membro da instituição ajudando a firmar sua convicção e planejar o melhor caminho jurídico da situação. O ajustamento de conduta mediante termo mostrou-se como alternativa a uma ação civil logo de início, sendo necessária a cobrança da multa, via execução judicial, pelo não cumprimento de algumas cláusulas estabelecidas.

Assim como se evidenciou nesse trabalho uma atuação voltada para questões relacionadas ao direito consumerista, também se observam ações dessa instituição, assessoradas por profissionais da odontologia, voltadas para casos de improbidade administrativa de cirurgiões-dentistas e gestores em saúde que têm o dever de agir de forma ética e estar atentos à importância do cumprimento das normas que regem determinadas condutas, sob pena de serem investigados pelo MP13.

Outras questões difusas e coletivas, como maus-tratos em animais relacionados à pesquisa em odontologia, também mostram o quão amplas são as possibilidades do exercício da profissão junto às instituições essenciais à justiça14, permitindo um olhar técnico para questões que devem ser encaminhadas pelos operadores do direito, como promotores e procuradores de justiça, assim como juízes e desembargadores, os quais, muitas vezes, não têm o conhecimento odontológico. As inspeções realizadas permitem, muitas vezes, uma melhora nas condições encontradas a partir dos ajustamentos de condutas realizados15.

Conforme relatado nesse estudo e como tem mostrado a literatura científica, o assessoramento técnico no âmbito dos ministérios públicos é também um campo de atuação para os cirurgiões-dentistas, tanto nos cenários estaduais como em nível nacional, ampliando o mercado de trabalho para os profissionais16.

 

Considerações finais

Os profissionais que almejam divulgar seus serviços por meio de artifícios de comunicação devem estar atentos ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor e às leis que regem a conduta ética profissional, para que não venham a ser investigados nas esferas administrativa e/ou civil, bem como zelar pelo nome da profissão. Os pacientes que necessitam de serviços de saúde, consumidores e contratantes de planos de saúde, estão cada vez mais atentos aos seus direitos, cabendo aos profissionais atuarem de forma ética e lícita no que tange à divulgação e prestação de serviços, sob pena de suas condutas serem investigadas pelos órgãos fiscalizadores da sociedade.

 

Agradecimento

Os autores agradecem ao excelentíssimo Sr. Dr. subprocurador-geral para Assuntos Administrativos do Ministério Público do Rio Grande do Sul pela autorização para publicação do caso, preservando a identificação dos envolvidos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Mário Marques Fernandes
Rua Andrade Neves 106, 12º andar - Serviço
Biomédico do MP/RS, Centro
90210-010 Porto Alegre - RS

e-mail:
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Recebido: 23/03/2011
Aceito: 03/10/2011