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Revista da Associacao Paulista de Cirurgioes Dentistas
versão impressa ISSN 0004-5276
Rev. Assoc. Paul. Cir. Dent. vol.70 no.3 Sao Paulo Jul./Set. 2016
Relato de caso clínico
Manejo odontológico da Síndrome de Rendu-Osler-Weber: relato de caso
Dental management of Rendu-Osler-Weber Syndrome: case report
Caroline Ló GuarnieriI; Eduarda PatuzziI; Juliana Jobim JardimII; Berenice Barbachan e SilvaII
I Acadêmica de Odontologia
II Doutora - Professora adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
RESUMO
A Telangiectasia Hemorrágica Hereditária (THH) ou Síndrome de Rendu-Osler-Weber (SROW) é uma displasia fibrovascular sistêmica que apresenta alterações na camada muscular da parede dos vasos sanguíneos. Isto faz com que os vasos sejam sujeitos a rupturas frequentes. Este diagnóstico pode ficar a cargo do cirurgião dentista visto que os primeiros sinais podem ser observados em boca. Podem ser identificados telangiectasias e hemorragias na mucosa bucal. Por segurança, o manejo odontológico deste paciente deve ser focado na sua condição de saúde geral. Assim, este artigo tem por objetivo a descrição de um caso clínico de tratamento odontológico de uma paciente com SROW, esclarecendo as principais características dessa síndrome e relatando as peculiaridades do seu manejo.
Descritores: telangiectasia hemorrágica hereditária; malformações arteriovenosas; epistaxe; saúde bucal; padrões de prática odontológica.
ABSTRACT
The Rendu-Osler-Weber Syndrome or Hereditary Hemorrhagic Telangiectasia (HHT) is a rare systemic fibrovascular dysplasia, which causes a defect in the elastic and muscle layer of the blood vessel wall, turning them more vulnerable to traumas and spontaneous ruptures. The dentists can play an important role in this diagnostic because the first signs often appear in the mouth, such as telangiectasia and recurrent bleeding in the oral mucosa. The management of this patient should be appropriate to its systemic profile to ensure the safety and effectiveness of dental treatment. This work aims to describe the main characteristics of this syndrome, its peculiarities and limitations of management during dental treatment, followed by the presentation of a clinical case.
Descriptors: telangiectasia, hereditary hemorrhagic; arteriovenous malformations; epistaxis; oral health; practice patterns, dentists.
RELEVÂNCIA CLÍNICA
Auxiliar os Cirurgiões-Dentistas no conhecimento das características desta síndrome possibilitando o manejo destes pacientes com segurança.
INTRODUÇÃO
A Telangiectasia Hemorrágica Hereditária (THH) ou Síndrome de Rendu-Osler-Weber (SROW) é uma displasia fibrovascular sistêmica que apresenta alteração da lâmina elástica da parede dos vasos sanguíneos. Os capilares tornam-se, então, vulneráveis a rupturas espontâneas.1 Podem estar presentes múltiplas malformações arteriovenosas.2 É uma alteração autossômica dominante podendo atingir indivíduos, de ambos os sexos, independente de raça.3 Na maioria dos casos apresenta histórico familiar, podendo se tratar de mutações esporádicas.4
As manifestações clínicas normalmente ficam mais evidentes com o passar da idade aparecendo entre a terceira e quarta década de vida. São variáveis, podendo compreender desde epistaxes recorrentes (sangramentos nasais), telangiectasias, que são conjuntos de vasos sanguíneos muito delgados, aparentes na superfície da pele e mucosa bucal, podendo também apresentar-se como lesões viscerais em pulmão, trato gastrointestinal, geniturinário, sistema nervoso central e fígado. Os pacientes podem apresentar dispneia, cianose, policetemia, fadiga e até insuficiência cardíaca e hemorragia cerebral. Também pode ser característica desta síndrome a presença de abscesso cerebral. Fístulas arteriovenosas nos pulmões e malformações vasculares são importantes nesta patogênese. É crucial o diagnóstico mais precoce possível, a fim de evitar maiores complicações.1,3,5,6
A Organização Americana para Estudos da Telangiectasia Hemorrágica Hereditária (HHT Foundation) publicou as primeiras Diretrizes Internacionais para o Diagnóstico e Gestão de THH no American Journal of Medical Genetics em 2000. Este documento internacional abrange recomendações detalhadas que auxiliam neste diagnóstico descrevendo as malformações arteriovenosas por órgão acometido, e todas as possíveis manifestações da doença no corpo. O processo de desenvolvimento destas diretrizes contou com a participação de especialistas de treze países e também com pacientes que apresentavam a doença. A THH é uma síndrome não tão rara (1/5.000), que continua sendo pouco diagnosticada. O desenvolvimento e publicação desses consensos, baseados em evidências, constituem o primeiro passo para melhorar o padrão de cuidados destes pacientes.7
O diagnóstico é feito seguindo os critérios de Curaçao: 1) epistaxes espontâneas e recorrentes; 2) telangiectasia mucocutânea: múltiplas ou em locais específicos; 3) herança familiar autossômica dominante; 4) manifestações como fístulas arteriovenosas em órgãos internos como pulmão, fígado, cérebro, medula espinhal. A presença destes sintomas sugere possivelmente a presença da doença. O diagnóstico é confirmado na presença de três das manifestações, sendo a epistaxe a mais comum (78-96%).8
Aproximadamente 60% dos indivíduos portadores de malformações arteriovenosas pulmonares provavelmente apresentam Telangiectasia Hemorrágica Hereditária. Entre os pacientes diagnosticados, cerca de 15 a 33% apresentam malformações arteriovenosas pulmonares, sendo esta alteração dependente do gene específico afetado. As malformações arteriovenosas pulmonares são caracterizadas pela comunicação direta da artéria e veia pulmonares através de um aneurisma de parede fina1.
O tratamento deve ser planejado individualmente devido à diversidade das manifestações clínicas e este será sempre paliativo.2 Algumas medidas incluem suplementos de ferro oral ou parenteral, transfusões de sangue e terapia a laser, apresentando graus de sucesso variados.8,9 O tratamento para epistaxe leve é a aplicação diária de lubrificantes nasais. Caso o sangramento seja mais intenso pode ser recomendada a cauterização através do uso de laser. Os enxertos de mucosa podem ser necessários nas formas graves. Na maioria dos casos as manifestações na pele não requerem tratamento. O laser pode ser utilizado por razões estéticas e nos casos de hemorragia como forma de cauterização.8 Quando o diagnóstico é precoce e se obtém o controle dos sangramentos o prognóstico é bom. A mortalidade é pequena e fica ao redor de 10% dos casos.4,8,10
O diagnóstico de SROW pode ser feito por Cirurgiões-Dentistas, pois as primeiras alterações podem aparecer em mucosa bucal, como os sangramentos recorrentes e as telangiectasias em palato, vermelhão do lábio e língua.5 O manejo odontológico deste paciente deve ser adaptado a sua condição sistêmica, entretanto estes pacientes não tem contraindicação para o tratamento odontológico.8
Este artigo tem por objetivo a descrição de um caso clínico de tratamento odontológico de uma paciente com SROW, esclarecendo as principais características dessa síndrome e relatando as peculiaridades do seu manejo.
RELATO DO CASO CLÍNICO
Paciente de 67 anos, sexo feminino, leucoderma, foi atendida nas clínicas da Faculdade de Odontologia da UFRGS, referindo como queixas odontológicas: sintomatologia dolorosa em articulação temporomandibular (ATM) e episódios passados de dor e secreção purulenta proveniente dos tecidos periodontais, sendo a última condição já tratada em Unidade Básica de Saúde. Durante anamnese, relatou que, quando criança, já haviam sido percebidas as telangiectasias pelo corpo, mas ainda com causa desconhecida. Em 1984, surgiram os sintomas pulmonares como falta de ar (dispneia). Nesta ocasião foi submetida à primeira cirurgia no pulmão, devido a um derrame pleural (acúmulo excessivo de líquido no espaço entre a pleura visceral e a pleura parietal). Em 1992, submeteu-se a uma segunda cirurgia para resolução de uma fístula pulmonar. Naquele período os médicos apenas sabiam se tratar de uma doença hereditária. Muito possivelmente estes episódios pulmonares já eram relacionados às malformações arteriovenosas típicas da SROW. Apenas em 2002, a paciente foi pela primeira vez diagnosticada com esta síndrome. Na época, deram-lhe uma expectativa de vida de aproximadamente seis meses. Sabe-se atualmente que o índice de sobrevida para os pacientes desta síndrome pode ser muito satisfatório com controles específicos. Relatou ter sofrido dois acidentes vásculo-cerebrais (AVC), em 2000 e outro em 2005. Como sequelas, apresenta perda parcial da visão e um coágulo no cérebro que vem sendo acompanhado. Em 2009, fez tireoidectomia total, pois foram detectados nódulos com suspeita de malignidade. Fez tratamento com iodo radioativo, e apresentou reação de hipersensibilidade que foi controlada com dificuldade. Possui arritmia cardíaca e hipertensão, o controle para estas alterações é realizado desde 1999. Foi acometida de trombose na perna direita. Para seu tratamento, foi submetida à colocação de uma tela na veia cava. Apresenta cálculos nas vias biliares, colelitíase, que não foram removidos, estão sendo acompanhados. Possivelmente podem ser atribuídos à SROW todos estes problemas apresentados pela paciente.
Para controle de todas estas intercorrências faz uso de muitas medicações: enalapril, para o controle da hipertensão, amitriptilina, antidepressivo, Puran T4, para reposição dos hormônios da tireoide, Combiron e aplicações intravenosas quinzenais de ferro para controle da anemia. Faz acompanhamento médico de seis em seis meses para controle das alterações de pulmão e cerebrais, em razão da doença. Além disso, necessita de cuidados em relação às alergias ao potássio iodado e a qualquer tipo de metal. Em relação ao histórico familiar, de seis irmãos, ela e uma irmã foram diagnosticadas com a doença, e, dos seus dois filhos, o primeiro também é portador.
Em decorrência desta condição, a paciente apresenta inúmeras manifestações, como telangiectasias por todo o corpo, principalmente em mãos, lábios, palato e língua, frequentes epistaxes (sangramentos nasais), esporádicos sangramentos em palato, lábios, olhos e outras partes do corpo e anemia recorrente. Atualmente, relatou que os sintomas da doença estão melhorando.
Em relação a sua condição odontológica, a paciente usa prótese total superior e prótese parcial removível mucossuportada livre de metal na arcada inferior. Possui os seguintes dentes em boca: 33, 32, 41, 42, 43, 44, 45. Nos exames iniciais apresentou um IPV de 98 % e ISG de 100 %, a profundidade de sondagem no exame periodontal variou de 1 a 10 mm entre os sítios, com perda de inserção em todos e sangramento subgengival em 22 sítios de um total de 28.
No exame dentário foram observadas lesões de cárie com cavidades e sem cavidades inativas, apresentando um CPO-D de 26 e CPO-S de 123, sendo a causa das perdas dentárias a doença cárie. Apresenta dor orofacial frequente, moderada, persistente, no lado superior direito. Foi realizada radiografia panorâmica para avaliação da ATM. Não se observou alterações condilares ou em rebordo. No exame de palpação foi observada presença de crepitação, ruído quando na abertura e fechamento da boca.
Como diagnóstico de doença apresentou gengivite e periodontite crônica generalizada, e disfunção temporomandibular (DTM). O plano de tratamento da paciente compreendeu tratamento periodontal supra e subgengival não cirúrgico, com instrução de higiene bucal, restaurações diretas para eliminação de fatores retentivos de placa e tratamento da sintomatologia dolorosa da ATM, através da confecção de placa miorrelaxante. Foi indicada a extração dos dentes 41 e 45, pois estavam comprometidos por doença periodontal, e confecção de nova prótese inferior. A paciente apresentou liberação médica para realização dos tratamentos, sem necessidade de condutas específicas. A equipe teve o cuidado preventivo no atendimento da paciente colocando a cadeira odontológica em posição vertical para evitar falta de ar e sangramentos nasais. Apesar disso, em uma sessão do tratamento, ocorreu um incidente de sangramento nasal que cessou em poucos minutos. Em alguns momentos durante as sessões de tratamento a paciente teve sua pressão arterial aferida para controle.
A paciente foi acompanhada por um período de sete meses, apresentando como resultado do tratamento periodontal final: IPV de 60% e ISG de 5%, e profundidade de sondagem foi de no máximo 2mm, com sangramento subgengival em apenas 1 sítio. Sendo considerado este primeiro contato com a paciente bastante positivo, já apresentando melhora significativa de seu estado de saúde bucal.
DISCUSSÃO
A THH é uma síndrome não tão rara7, devido a isso cabe ao Cirurgião-Dentista estar preparado para atender este tipo de paciente, conhecer as características da doença, sinais e sintomas para estar apto a diagnosticá-la, bem como atuar em suas repercussões no tratamento odontológico. O manejo de um paciente com essa síndrome deve ser adequado ao seu perfil sistêmico, e de acordo com as possíveis alterações presentes decorrentes da doença.5 Assim, deve-se realizar uma busca completa com o objetivo de obtenção de todas as informações decorrentes de sua saúde geral para investigar quais órgãos podem estar acometidos.2
Conforme já descrito, o diagnóstico clínico é estabelecido através dos chamados Critérios de Curaçao, sendo confirmado na presença de pelo menos três manifestações.11 No presente caso, os sinais clínicos de telangiectasias da pele, especialmente na face, membros superiores e na mucosa bucal, combinado com hemorragias nasais relatados e uma história familiar de telangiectasia e epistaxes, foram fatores importantes que levam a confirmação de diagnóstico de SROW.
As malformações arteriovenosas pulmonares típicas da síndrome podem causar várias complicações, tais como hipóxia, hemorragia pulmonar e cerebral e embolia. Os Cirurgiões-Dentistas devem ter conhecimento destas limitações. Uma medida a ser tomada é a manutenção da cadeira odontológica em uma posição vertical (90 graus) durante os procedimentos para reduzir o risco de hemorragia nasal e pulmonar o que foi seguido no caso descrito. O profissional deve estar preparado para administrar oxigênio no surgimento de alguma insuficiência respiratória. Outras medidas especiais a serem tomadas durante o tratamento de paciente com THH: aferição da pressão sanguínea antes e após o procedimento, requisição de uma avaliação laboratorial atualizada, acesso a sua condição clínica.5 Existe pouco risco de piora do estado de anemia devido ao tratamento odontológico. Os pacientes que apresentarem anemia grave (nível de hemoglobina<10mg/dl) devem evitar certos procedimentos invasivos dependendo da estimativa de quantidade de sangue a ser perdido durante o atendimento.5 Entretanto, no caso apresentado, mesmo com a anemia em fase de controle, a paciente apresentou liberação médica para realização dos tratamentos odontológicos, sem necessidade de condutas específicas.
Santos et al. preconizaram a profilaxia antibiótica antes de realizar tratamento odontológico iniciando-se 12 horas antes do procedimento e continuando sete dias após, para evitar o risco de derrame cerebral e/ou infecções pulmonares. Essa medida foi realizada devido às malformações arteriovenosas apresentadas em pacientes com esta síndrome.5 Para outros autores estes pacientes só deverão ser submetidos à profilaxia antibiótica para realização de procedimentos dentários quando apresentarem malformações arteriovenosas pulmonares. A cobertura antibiótica poderá ser indicada previamente a procedimentos periodontais, colocação de implantes dentários, instrumentação endodôntica e apicetomia, ou em qualquer procedimento que poderá produzir sangramento.13
Sabendo dos riscos na atenção aos pacientes com SROW alguns cuidados podem ser tomados como, por exemplo, evitar anestesias infiltrativas tronculares evitando riscos de perfurações de vasos sanguíneos. Em relação ao controle de possíveis hemorragias os profissionais devem estar preparados para aplicar medidas hemostáticas locais através de procedimentos mecânicos como pressão e sutura, além da utilização de agentes hemostáticos absorvíveis. Autores relatam a possibilidade de se promover a esclerose das telangiectasias gengivais com o intuito de evitar hemorragias graves durante os procedimento cirúrgicos no ambiente bucal.8 Sempre é importante previamente ao procedimento solicitar o controle da condição sanguínea com o hematologista que acompanha o caso. É também necessário conhecer as possíveis interações medicamentosas que possa estar atuando visto que este é um paciente que precisa ser amplamente medicado para a manutenção de sua saúde.8
CONCLUSÃO
É de suma importância o Cirurgião-Dentista conhecer a doença, as condutas prévias necessárias para o atendimento de um paciente com SROW, para fazer o manejo odontológico adequado às condições do paciente, e assim garantir um tratamento seguro. Além disso, a detecção inicial de lesões orais como as telangiectasias em palato, vermelhão do lábio, língua e sangramentos recorrentes em mucosa, seguido de anamnese e exame físico são critérios para o diagnóstico da Síndrome de Rendu-Osler-Weber que podem estar a cargo do Cirurgião-Dentista. Quando esta for diagnosticada deve ser realizada uma detalhada anamnese objetivando conhecer a história médica do paciente, para a investigação sobre alterações em outros órgãos. O paciente deve ser encaminhado para tratamento médico. A partir daí aguarda-se as orientações da equipe médica para proceder-se a abordagem odontológica.
APLICAÇÃO CLÍNICA
Com este estudo de caso observou-se a importância do papel do Cirurgião-Dentista no diagnóstico e encaminhamento para controle dos pacientes portadores da síndrome Telangiectasia Hemorrágica Hereditária. O diagnóstico precoce é determinante da qualidade e expectativa de vida destes pacientes. Conhecendo os limitantes da doença pode-se conduzir o tratamento odontológico com segurança.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Berenice Barbachan e Silva Faculdade de Odontologia - UFRGS
Rua Ramiro Barcelos, 2492
Porto Alegre - RS
Centro - Guarulhos – SP
90035-003
Brasil
e-mail: berenicebarbachanesilva@gmail.com
Recebido: jan/2016
Aceito: mar/2016