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Odontologia Clínico-Científica (Online)
versão On-line ISSN 1677-3888
Odontol. Clín.-Cient. (Online) vol.12 no.4 Recife Out./Dez. 2013
Artigo Original / Original Article
Critérios utilizados por cirurgiões-dentistas para tomada de decisão clínica em relação à cárie dentária
Criteria used by dentists for clinical decision making related to dental caries
Renato Pereira da Silva I; Marcelo de Castro Meneghim II; Antonio Carlos Pereira II; Gláucia Maria Bovi Ambrosano II; Fábio Luiz Mialhe II
I Professor Doutor do Departamento de Nutrição e Saúde – UFV
II Professores Doutores do Departamento de Odontologia Social – FOP/Unicamp
RESUMO
Objetivo: verificar quais os critérios diagnósticos e limiares para a tomada de decisão clínica em relação à cárie dentária, considerados por um grupo de CDs, e seu possível impacto sobre a qualidade do diagnóstico e tratamento da doença. Metodologia: um questionário objetivo foi aplicado a 128 CDs do município de Piracicaba-SP, selecionados aleatoriamente, visando verificar tais critérios. Resultados: a profilaxia prévia ao exame clínico é realizada por 39% dos CDs. A sondagem tátil com pressão é realizada por 58% dos CDs. O limiar radiográfico ‘metade externa de dentina' foi considerado por 44% dos CDs, enquanto que o limiar clínico ‘cavitação em dentina' foi considerado por 49% dos CDs. Conclusão: a qualidade do diagnóstico e o tratamento da cárie dentária, realizados por esses CDs, poderiam ser melhorados mediante o conhecimento e uso consciencioso de procedimentos de profilaxia prévia e sonda para remoção de debris e adoção da dentina como limiar para tratamento restaurador.
PALAVRAS-CHAVE: Cárie Dentária; Assistência Odontológica; Recursos Humanos em Odontologia.
ABSTRACT
Aim: to verify the diagnostic criteria and thresholds for clinical decision making for dental caries inside of a group of DSs. The possible impact of those criteria and threshold was also evaluated. Methodology: a questionnaire was applied to 128 DSs from the city of the Piracicaba, São Paulo, Brazil. The DSs were randomly selected. Results: previous dental prophylaxis is performed by 39% of the sample. The dental surface probing with pressure is performed by 58% of the sample. The outer half of the dentine was the radiographic threshold to a restorative treatment cited by 44% of the DSs. The cavitation in dentine is the clinical criterion adopted by 49% of the DSs. Conclusion: improvements on caries diagnosis and treatment, performed by such DSs, could be reached by the knowledge and conscious using of dental prophylaxis proceedings and probe to remove debris, and the adoption of dentine as the threshold to start a restorative treatment.
Keywords: Dental Caries; Dental Care; Dental Staff.
Introdução
A cárie dentária é uma patologia presente em todas as populações existentes ao redor do mundo, sendo a principal causa da dor e perda dos dentes1. Após um período de alta prevalência, o seu declínio passou a ser verificado a partir da metade da década de 1970, inicialmente em países desenvolvidos2 e, posteriormente, em países em desenvolvimento, como o Brasil3. A redução na prevalência mundial da doença está sendo acompanhada por modificações na sua morfologia e velocidade de progressão, tornando, ainda mais complexa, a sua detecção. Atualmente, a progressão é lenta, podendo desenvolver-se abaixo de uma superfície hígida e relativamente mineralizada de esmalte, aumentando a prevalência da chamada "cárie oculta&" 4,5 , relacionada, segundo alguns autores, ao uso intensivo de fluoretos tópicos, principalmente nos dentifrícios6.
Essas alterações na prevalência, atividade e morfologia das lesões cariosas devem ser acompanhadas por uma revisão dos critérios clínicos, utilizados pelo cirurgião-dentista para realizar um diagnóstico mais preciso da doença. Inúmeros estudos têm demonstrado variações no diagnóstico e planos de tratamentos entre dentistas5,7,8.
Na prática clínica, muitos profissionais ainda detectam lesões cariosas por meio do exame clínico visual-tátil, sondando-se as superfícies dentárias examinadas. Contudo, a utilização da sonda exploradora com pressão em áreas desmineralizadas produz defeitos traumáticos irreversíveis no esmalte, favorecendo a progressão da lesão9. Além disso, outros autores verificaram que o uso da sonda exploradora não proporciona uma melhora significativa na detecção de lesões cariosas, quando comparado à inspeção visual isoladamente10,11.
Alguns estudos confirmam a importância das radiografias interproximais como método auxiliar ao exame clínico-visual, aumentando a sensibilidade do exame diagnóstico12. Além desses métodos, usualmente utilizados na detecção de cárie oclusal, outros como a transiluminação por fibra óptica (FOTI – Fiber Optic Transillumination) e o laser diodo (DIAGNOdent®) podem ser associados, favorecendo uma melhor tomada de decisão13.
O processo diagnóstico forma a base para a tomada de decisão de um plano de tratamento. As lesões em esmalte devem ser acompanhadas e controladas por meio de selantes oclusais ou fluorterapia, enquanto o tratamento invasivo restaurador deve ser usualmente considerado necessário, quando a lesão cariosa se estender até a dentina14.
O objetivo deste estudo foi verificar os critérios diagnósticos e limiares para a tomada de decisão clínica em relação à cárie dentária, considerados por um grupo de cirurgiões-dentistas (CDs), e seu possível impacto sobre a qualidade do diagnóstico e tratamento da doença.
Materiais e Métodos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP/UNIC
AMP) sob protocolo n° 24/2000 e executado segundo os preceitos das Resoluções 179/93 do Código de Ética Odontológica e 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério de Saúde.
Foram selecionados aleatoriamente 159 cirurgiões-dentistas (CDs), clínicos gerais, baseando-se em seus números de telefone, listados nas páginas amarelas da lista telefônica do município de Piracicaba, SP. A amostra foi aleatória e sistemática, ou seja, a cada 3 dentistas, um era selecionado. Teve-se também o cuidado de se contemplar a amostra com CDs de diferentes bairros do município.
Para a análise dos dados, agruparam-se inicialmente os CDs pelo seu tempo de formado (até 5 anos, 6 a 10 anos e acima de 10 anos), pela faculdade cursada (privada ou pública) e pelo local de trabalho (serviço público ou privado). Para avaliar alguma associação entre as variáveis dependentes (utilização de métodos de detecção e tomadas de decisões) e as características dos grupos de CDs (variáveis independentes), utilizaram-se os testes estatísticos de Qui-quadrado e Exato de Fischer, adotando-se o nível de significância de 5% (α=0,05).
Resultados
A taxa de resposta alcançada foi de 80,5%, o que resultou em uma amostra ajustada composta por 128 profissionais. As características da amostra são apresentadas na Tabela 1.
Dos CDs participantes, 65,6% trabalhavam exclusivamente em consultório particular e 34,4%, em unidades básicas de saúde, 57,0% haviam se formado há mais de 10 anos, e 76,6% concluíram o curso em universidades públicas.
Observou-se que apenas 39% dos CDs realizavam algum tipo de profilaxia previamente ao exame clínico, enquanto 61% não a realizavam (Gráfico 1). Não houve diferenças estatisticamente significantes entre os grupos de profissionais em relação à realização desse procedimento.
Quanto ao procedimento de secagem prévia da superfície dentária a ser examinada, somente 1 profissional relatou não realizá-lo.
Cerca de 91,4% dos CDs respondentes afirmaram utilizar a sonda exploradora de ponta aguçada para a realização do exame clínico (Gráfico 2). Destes, 42% afirmaram utilizá-la para a remoção de debris/sujidade da superfície dentária, associada ou não à sondagem tátil sem pressão, visando, apenas, verificar a rugosidade/lisura da superfície dentária. Entretanto, 58% desses profissionais afirmaram utilizar a sonda exploradora de forma tátil com pressão, a fim de verificar algum sítio na superfície dentária onde sua ponta ativa se "prendesse&", indicando, ao seu modo de ver, a presença de uma lesão cariosa (Gráfico 3).
Os profissionais com mais de 10 anos de formados foram aqueles que mais afirmaram utilizar a sonda exploradora, encontrando- se diferenças estatísticas significantes (p<0,05) entre os grupos de dentistas. Para as demais variáveis, não foram observadas diferenças significantes (p>0,05) (Gráfico 2).
Quando questionados sobre os limites radiográficos para a decisão do tratamento restaurador em superfícies oclusais, 44% da amostra afirmaram restaurar quando a lesão alcança a metade externa de dentina, não havendo diferenças estatísticas entre os grupos de CDs (Gráfico 4).
Quanto ao limiar clínico considerado para se iniciar algum tipo de tratamento restaurador, não houve diferenças significantes entre os grupos de CDs. Cerca de 49% dos participantes afirmaram que o limiar para realizar uma intervenção invasiva seria a presença de lesão cariosa cavitada em dentina (Gráfico 5).
Em relação a uma situação clínica hipotética em que um dente posterior encontrava-se com uma pequena cavidade oclusal, com imagem radiográfica mostrando penetração em poucos milímetros através da junção amelo-dentinária, a maioria dos profissionais (57,8%) afirmou que removeria apenas o tecido cariado e restauraria com resina composta. Entretanto, poucos profissionais (6,2%) afirmaram que realizariam o preparo de cavidades que incluísse todo o sistema de fissuras (Tabela 2).
Discussão
Divergências interexaminadores quanto ao diagnóstico e tratamento adequado de lesões cariosas acometendo superfícies dentárias oclusais têm sido extensamente estudadas pela comunidade científica8,15,16.
A remoção prévia do biofilme presente sobre a superfície dentária a ser examinada tem sido sugerida como uma estratégia para se melhorar a qualidade do diagnóstico clínico da cárie dentária17. Contudo, a porcentagem de profissionais que realizam tal procedimento, no presente estudo, foi baixa, tendência corroborada pelos achados de outros estudos7,13,14. Ao negligenciar a profilaxia prévia das superfícies dentárias, os CDs podem, em muitos casos, estar deixando de detectar lesões cariosas em seus estágios iniciais de desenvolvimento, as quais ainda são passíveis de tratamentos não invasivos. A taxa de realização desse procedimento pode refletir, em parte, as divergências filosóficas dentre os diversos corpos docentes dos programas de graduação em Odontologia existentes no país, endossadas pela tendência ao status quo dos profissionais, notadamente os profissionais graduados há menos tempo18.
Apesar de o uso da sonda exploradora não aumentar a validade do exame clínico para a cárie dentária7,10,11, podendo causar iatrogenias19,20, a maioria dos participantes do presente estudo relatou seu uso. Embora o uso consciencioso da sonda em exames odontológicos inclua somente a remoção de debris de superfícies dentárias, uma parcela considerável da amostra deste estudo relatou realizar sondagem tátil com pressão, buscando sítios onde a sonda se "prendesse&", o que seria, para esses profissionais, indicativo de lesão cariosa. Essa tendência também se verificou em outros estudos7,13,14. O uso da sonda no exame clínico de superfícies dentárias, no presente estudo, esteve relacionado ao tempo de formação do profissional, sugerindo a sua desatualização acerca dos novos conceitos e métodos diagnósticos de cárie dentária e ou a sua tendência ao status quo.
As características clínicas dos dentes, consideradas para a decisão de tratamento restaurador pelos CDs, foram bastante variadas. Foi observado que 49% dos profissionais consideraram como limiar clínico para intervenção invasiva a presença de lesão cavitada em dentina. O restante da amostra (51%) propôs intervir em diversas situações, incluindo casos em que a sonda prendesse nas fissuras, casos nos quais o dente apresentasse lesões de mancha branca e fissuras escurecidas, enfatizando uma filosofia de tratamento invasiva e a seleção incorreta de critérios clínicos para a tomada de decisão. Esses achados corroboram o estudo de Nuttall et al.21, em que 50,7% dos profissionais realizariam um preparo cavitário, mesmo sem haver evidências de cavitação.
Quando questionados sobre o tratamento de uma possível lesão cariosa oclusal de aproximadamente 2,0mm de diâmetro em um paciente apresentando uma higiene bucal satisfatória e os dentes adjacentes intactos, a maioria dos profissionais, notadamente os profissionais graduados há mais tempo, optou por um tratamento mais conservador, incluindo a remoção exclusiva do tecido cariado e subsequente restauração com resina fotopolimerizável composta. Esses achados confrontam os achados de Pereira et al.7, em que a maioria dos profissionais graduados há mais de 10 anos optou pelo amálgama como material restaurador de escolha, o qual necessita de um preparo cavitário adequado.
Embora o exame radiográfico seja um método adjunto muito difundido dentre os CDs, um limite radiográfico exato para se estipular um tratamento invasivo, assim como no exame clínico visual, é subjetivo e arbitrário18. No presente estudo, 43,75% da amostra optaram por uma filosofia de tratamento mais conservadora, considerando a radioluscência em superfície dentária oclusal acometendo a metade externa da dentina como limiar, para se realizar uma intervenção restauradora invasiva. Em Mejàre et al.18, a opção por um tratamento mais conservador foi adotada por 67% dos profissionais, os quais relataram restaurar uma superfície oclusal somente na presença de cavitação evidente e ou a partir de sinais radiográficos de cárie dentária acometendo dentina.
Convém enfatizar que os achados do presente estudo se limitam à amostra obtida no município de Piracicaba/SP. Dessa forma, a generalização de seus resultados para outras populações de dentistas deve ser considerada com cautela.
Conclusão
Face aos resultados obtidos, existe a sugestão de que melhorias na qualidade do diagnóstico e subsequente tratamento da doença cárie dentária para esse grupo de profissionais possam ser alcançadas por meio da plena adoção da profilaxia prévia dos dentes examinados, pela utilização da sonda para fins de remoção de debris sobre as superfícies dentárias e pela adoção de uma postura profissional conservadora, considerando- se a lesão cariosa em dentina como limiar para se realizar um tratamento restaurador invasivo. Por conseguinte, a estratégia de educação profissional permanente, baseada em evidência, deve ser sempre considerada para um melhor diagnóstico e tratamento da cárie dentária.
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Endereço para correspondência:
Prof. Dr. Fábio Luiz Mialhe
FOP/Unicamp - Departamento de Odontologia Social
Avenida Limeira, 901 – Areião/Piracicaba – SP
CEP 13414-903
e-mail: mialhe@fop.unicamp.br
Recebido para publicação: 11/09/2012
Aceito para publicação: 18/06/2014