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RPG. Revista de Pós-Graduação

Print version ISSN 0104-5695

RPG, Rev. pós-grad. vol.17 n.1 São Paulo Jan./Mar. 2010

 

ARTIGOS CIENTÍFICOS

 

Avaliação de periódicos nacionais quanto aos aspectos éticos

 

Evaluation of national scientific journals on ethical aspects

 

 

LETICIA SIMINO CARVALHO I; DANIELA PRÓCIDA RAGGIO II; MARIANA MINATEL BRAGA II; FAUSTO MEDEIROS MENDES III; JOSÉ CARLOS PETTOROSSI IMPARATO III

I Especialista em Odontopediatria pela Associação Brasileira de Ensino Odontológico (ABENO) – São Paulo/SP
II Doutora em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP); Professora Doutora da Disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP
III Doutor em Odontopediatria pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP; Professor Associado da Disciplina de Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FOUSP) – São Paulo/SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A experimentação científica surgiu no século 16 com o físico Galileu-Galilei (1564-1642). Ao longo dos anos, o número de experimentos com humanos teve um grande aumento e a preocupação com a valorização dos seres humanos foi manifestada pelo público. O termo bioética foi criado em 1970 nos Estados Unidos, e um novo estilo ético foi proposto por meio do Relatório de Belmont em 1978. Esse modelo ético tem como princípios o respeito pelas pessoas (autonomia), a obrigação de não causar dano, maximizar os benefícios e minimizar os riscos (beneficência) e a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios (justiça). No Brasil, o Conselho Nacional da Saúde (CNS) estabeleceu a Resolução 196/1996 para guiar as normas sobre ética em pesquisa, a qual tem grande preocupação no controle social. Este trabalho teve como propósito verificar se os periódicos nacionais estão garantindo que a ética seja aplicada de maneira rigorosa em experimentos com seres humanos.

Descritores: Etica. Pesquisa. Odontologia.


ABSTRACT

The scientific experience began in the 16th Century with Galileu-Galilei (1564-1642), the physicist. Over the years, the number of experiments with humans had a huge increase, and a lot of people became concerned about the human beings value in researches. The term Bioethics was born in 1970, in United States of America and a new ethics style was proposed through the Belmont Report, in 1978. This ethics model applies as principles the respect for the people (autonomy), the obligation of do no harm, to maximize the benefits and minimize risks (beneficence) and the impartiality in the distribution of risks and benefits (justice). In Brazil, the National Health Council established the resolution 196/1996 to guide the rules on matter of ethics in researches with humans, which also has the social control as a concernment. The aim of this study was to verify if the national scientific magazines are working for the ethics are being applied with severity in the human researches.

Descriptors: Ethics. Research. Dentistry.


 

 

Introdução

Pestes, pragas, tifo, varíola são exemplos de doenças que assombraram o ser humano no passado. O uso de plantas, ervas e lama pelos povos primitivos são exemplos de métodos de experimentação que fizeram parte da história da humanidade. Por meio de experimentações, a ciência progrediu e diversas vacinas e medicamentos foram desenvolvidos para a cura de enfermidades ou diminuição de seus sintomas e sinais. É provável que a cura de muitas doenças tenha sido descoberta na base de tentativas até que um tratamento fosse bem aceito e desenvolvido.

Ao final da Idade Média, houve um grande aumento do número de experimentações com seres humanos e pode-se dizer que o marco referencial do nascimento da experimentação científica ocorreu no século 16 com o físico Galileu-Galilei (1564-1642), o qual dizia que a verdade não deveria simplesmente ser aceita, mas sim buscada pela experimentação e observação5.

Em consequência do aumento de experimentos com seres humanos, os artigos de pesquisa relacionados aos aspectos éticos começaram a ser publicados e dessa maneira o público manifestou-se para colocar a experimentação humana sob controle social com a finalidade de proteger os direitos da pessoa humana. Em 1970, o termo bioética nasceu nos Estados Unidos por meio de um artigo escrito pelo médico Van Potter, que vinculava a bioética a um vasto campo de aplicação e englobava o controle da população, a paz, a pobreza, a ecologia, a vida animal, o bem-estar da humanidade e, por conseguinte, a sobrevivência da espécie humana e a do planeta como um todo3.

Após diversas reações contra abusos cometidos em pesquisas biomédicas e depois da criação de alguns documentos, em 1978, o "Relatório de Belmont" foi promulgado, no Estado de Mariland, Estados Unidos; inaugurando um novo estilo ético de abordagem metodológica dos problemas envolvidos na pesquisa com seres humanos. A maioria dos códigos, das resoluções e até mesmo das leis, que estabelecem condutas éticas para pesquisas com seres humanos utilizam diretrizes contidas nesse documento como referencial. Os três princípios desse modelo bioético são: respeito pelas pessoas (autonomia), beneficência (obrigação de não causar dano, maximizar os benefícios e minimizar os riscos) e justiça (imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios).

No Brasil, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) estabeleceu, em 1988, as primeiras regras sobre ética em pesquisa. Depois de algumas mudanças no ano de 1995 constatou-se que não havia total adesão às normas vigentes na Resolução 1/1988; e diante dessa situação em 1996 o CNS realizou uma revisão em seu texto. Frente a uma parceria entre governo e civis, surgiu a atual Resolução 196/1996, a qual tem grande preocupação no controle social5.

Um dos meios para facilitar a adequação de normas nos projetos de pesquisas com humanos é a classificação das pesquisas segundo alguns critérios. Dentre as várias possibilidades de classificação para as pesquisas, pode-se dizer que a mais fácil para identificar os artigos é a que diz respeito às pesquisas clínica, laboratorial e social.

A pesquisa clínica geralmente envolve disciplinas básicas e profissionalizantes, sendo realizada no ser humano, e seus objetivos visam aprimorar a terapêutica medicamentosa ou cirúrgica.

Já a pesquisa laboratorial é feita, inicialmente, em modelos celulares (meios de cultura) ou animais, para somente depois serem aplicados em humanos e geralmente são associadas a disciplinas básicas.

A chamada pesquisa social tem como característica o seu envolvimento com as disciplinas da área das ciências humanas, como bioética, ciências sociais, odontologia legal, saúde coletiva etc. Exemplos desse tipo de pesquisa são: estudos de revisão de literatura e estudos de políticas públicas aplicadas à saúde2.

 

Objetivos

Verificar se quatro periódicos nacionais de distintas regiões brasileiras, exceto região Norte, tem trabalhado para garantir que a ética seja aplicada de maneira rigorosa e adequada em experimentos com seres humanos, na área da Odontologia.

 

Materiais e métodos

Para o desenvolvimento desta pesquisa, quatro periódicos nacionais, classificados como Qualis B (categoria indicativa da qualidade da revista, conforme classificação de 2008), foram selecionados. A escolha dos periódicos foi de acordo com as regiões brasileiras Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste (Quadro 1). Na região Norte, nenhuma revista classificada como Qualis B foi encontrada, na área odontológica.

Os artigos presentes nas revistas foram classificados de acordo com o conteúdo. As categorias estão expostas no (Quadro 2).

De acordo com a classificação de pesquisas expostas na introdução, as categorias usadas no presente artigo foram divididas entre clínica, laboratorial e social (Quadro 3).

Diante das diretrizes da ética nacional, os artigos envolvidos foram cuidadosamente avaliados de maneira que a citação no texto de sua aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) fosse verificada.

 

 

 

 

 

Resultados

Um total de 214 artigos foram avaliados, e a análise descritiva dos dados encontra-se no Quadro 4. Os resultados podem ser avaliados no Gráfico 1.

A aprovação pelo CEP não foi necessária para a execução de pesquisas das categorias RL e Laboratorial (LAB).

Dentre os artigos pertencentes à categoria relatos de casos clínicos (RCC), foi verificado que nenhum relatou a aprovação pelo CEP no texto.

 

 

 

 

 

 

 

A categoria "outros" compete a pesquisas com estudantes de Odontologia, professores de Educação Física, estudantes de magistério, pais de pacientes, professores do ensino fundamental, além de um resumo de dissertação de mestrado. Dentre os cinco artigos que envolveram seres humanos, apenas um foi realizado sem a citação da aprovação pelo Comitê no texto, o qual foi publicado na revista Associação Brasileira de Odontologia (ABO).

 

Discussão

De acordo com a resolução CNS 196/1996, ficou estabelecido que somente as pesquisas com possibilidades de gerar conhecimento para prevenir, aliviar ou tratar problemas que atingem as pessoas, participantes de pesquisa ou não, podem usar seres humanos em estudos.

Além disso, essa resolução conceitua pesquisa envolvendo seres humanos como "pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de forma direta ou indireta em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações e materiais" (resolução 196/19961).

A resolução esclarece que a justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa, os desconfortos, os riscos e benefícios, a forma de acompanhamento e a garantia de esclarecimento a qualquer momento, a liberdade do indivíduo de se recusar a participar ou de se retirar a qualquer momento, a garantia de sigilo, as formas de ressarcimento e de indenização são aspectos que devem fazer parte do esclarecimento dos sujeitos envolvidos no estudo. Essas informações devem estar presentes no documento discriminado como termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), o qual deve ser elaborado pelo pesquisador e aprovado pelo CEP6.

Diante do exposto acima, todos os artigos pertencentes à classificação pesquisas clínicas e alguns pertencentes a pesquisas sociais devem ter aprovação do CEP.

Os resultados mostraram que a maior preocupação com o CEP ocorre nas pesquisas que envolveram seres humanos de forma direta. A categoria artigo envolvendo pacientes (PCT) apresentou somente 26,6% das pesquisas sem aprovação citada nos artigos.

Em contrapartida, 66,6, 40 e 77 ,7% foram os índices respectivos aos artigos das categorias artigos experimentais envolvendo dentes ou fragmentos de dentes (EXP), artigos envolvendo prontuários clínicos (PRNT) e artigos envolvendo radiografias (RAD), os quais não relataram no texto a aprovação pelo CEP. Diante desse resultado, percebe-se que o conceito de pesquisa que envolve seres humanos foi desprezado por muitos pesquisadores. O errôneo entendimento de que pesquisa com seres humanos restringe-se apenas àquelas situações em que os procedimentos experimentais se intervêm diretamente sobre os sujeitos é sólida e presente em parte dos profissionais4. As pesquisas nas quais há manejo de informações dos pacientes ou uso de materiais (categorias EXP, PRNT e artigos envolvendo radiografias – RAD) requerem aprovação do projeto de pesquisa pelo CEP assim como a necessidade de obtenção do TCLE assinado pelo sujeito da pesquisa6.

No caso dos RCC verificou-se que não houve citação sobre Comitê de Ética em nenhum dos artigos, no total de 47 artigos. Os relatos de casos clínicos são responsáveis por grande polêmica frente à questão ética. Esse tipo de trabalho é frequentemente realizado por profissionais e estudantes da área da Odontologia e tem como objetivo documentar procedimentos clínicos realizados nos pacientes.

Pode-se dizer que não são todos os relatos de casos que envolvem pesquisas e, por esse motivo, muitos pesquisadores e profissionais fazem esse tipo de trabalho sem ter nenhum tipo de autorização do paciente envolvido. A aprovação do CEP nesses casos, na maioria das vezes, não é nem cogitada.

Nos procedimentos relacionados à saúde, no entanto, seja nas participações como sujeitos de pesquisa ou de procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos, em ações individuais ou coletivas, faz-se necessária a manifestação da autonomia do paciente, segundo Sakaguti e Trindade 6. Tal manifestação deve ser expressa pelo TCLE e, além disso, deve haver aprovação do artigo pelo CEP.

Ainda de acordo com Sakaguti e Trindade6, o consentimento esclarecido designa o assentimento livre que um indivíduo, sadio ou doente, deve ter em relação a quaisquer atos praticados na sua pessoa ou mesmo informações relativas a ela. Pode-se dizer que a sua obtenção é como uma negociação que exige respeito aos direitos e à dignidade do paciente. Para que o consentimento seja válido, o paciente deve compreender e considerar o significado e as consequências das propostas para a pesquisa.

Como já foi citado anteriormente, a justificativa, os objetivos e os procedimentos que serão utilizados na pesquisa, os desconfortos, os riscos e benefícios; a forma de acompanhamento e a garantia de esclarecimento a qualquer momento; a liberdade do indivíduo de se recusar a participar ou de se retirar a qualquer momento; a garantia de sigilo; as formas de ressarcimento e de indenização são itens que devem fazer parte do esclarecimento dos sujeitos envolvidos no estudo, por meio do TCLE. Todas as informações devem ser redijidas de maneira clara e com linguagem que seja compatível com o nível sociocultural dos sujeitos da pesquisa6.

De acordo com a resolução 196/1996, o TCLE deve ser preenchido em duas vias, as quais devem conter a identificação do participante e do seu responsável, se necessário, e do pesquisador, data e assinaturas. Uma via deve ser arquivada pelo pesquisador e a outra deve ficar com o sujeito da pesquisa, sendo o documento o seu meio de comunicação com o pesquisador e com o CEP.

Deve-se considerar que a circunstância ideal para que o TCLE seja assinado não é no primeiro contato entre sujeito da pesquisa e profissional. O paciente deve levar o TCLE para casa, de maneira que possa lê-lo com atenção para que o assine com responsabilidade6.

Embora todos os periódicos selecionados apresentassem, nas normas, a exigência de aprovação pelo CEP dos artigos que envolvem seres humanos, direta ou indiretamente, 27,9% dos casos não relataram de forma explícita no texto se haviam sido submetidos ou não ao CEP; dessa forma, há necessidade de tornar mais claro esse importante registro no texto.

A submissão dos artigos ao CEP e a realização de um TCLE com atenção mostram o respeito pela autonomia da pessoa envolvida na pesquisa, o que é fundamental para a dignidade humana.

 

Conclusões

A partir dos resultados obtidos mediante avaliação dos 214 artigos envolvidos na pesquisa, verificamos que 154 estudos apresentaram a necessidade de aprovação pelo CEP, mas somente 111 citaram terem sido submetidos a ele.

 

Referências

1. Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde (CNS). Resolução nº 196/96, de 16 de outubro de 1996. Normas para pesquisas em seres humanos. Brasília: Diário Oficial da União; 1996.         [ Links ]

2. Oliveira RN. Protocolo de pesquisa para apreciação ética. In: Ramos DLP (Ed.). Bioética e ética profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007. p. 41-4.

3. Potter VR. Bioética global e sobreviência humana. In: Barchifontaine CP, Pessini L, organizadores. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola; 200 1. p. 18.

4. Ramos DLP. Experimentações com seres humanos. In: Ramos DLP (ed.). Bioética e ética profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007. p. 35-44.

5. Sakaguti NM. História da bioética. In: Ramos DLP (ed.). Bioética e ética profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007. P. 4-21.

6. Sakaguti NM, Trindade OM. Consentimento Livre e Esclarecido em pesquisa. In: Ramos DLP (ed.). Bioética e ética profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2007. p. 45-60.

 

 

Endereço para correspondência:
Daniela Prócida Raggio
Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo
Departamento de Ortodontia e Odontopediatria
Avenida Lineu Prestes, 2227 – Cidade Universitária
CEP: 05508-000 – São Paulo/SP
e-mail: danielar@usp.br

Recebido em: 07/12/09
Aceito em: 28/02/10