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RFO UPF

Print version ISSN 1413-4012

RFO UPF vol.17 n.2 Passo Fundo May./Aug. 2012

 

 

Enxerto autógeno e alterações pulpares

 

Autogenous graft and pulp alterations

 

 

Ediuilson Ilo LisbôaI; Everdan CarneiroII; Luiz Fernando FariniukII; Vânia Portela Ditzel WestphalenII; Natalindo Satio InagakiIII; Ulisses Xavier da Silva NetoII

I Aluno do curso de Doutorado em Odontologia – área de concentração endodontia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba - PR, Brasil.
II Professor Doutor curso de Doutorado em Odontologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba - PR. Brasil.
III Professor Mestre da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel - PR, Brasil.

Endereço para correspondência

 

 


 

RESUMO

Introdução: as cirurgias orais com remoções ósseas e secções profundas nos tecidos moles, evidentemente, causam alterações significantes em tais estruturas, destacando-se as vasculares, inclusive dos vasos que irrigam diretamente a polpa dental. Dependendo da extensão do leito cirúrgico, pode-se cessar a irrigação do tecido pulpar. Tais alterações estão confirmadas na literatura, principalmente em cirurgias Le Fort I, suturas intermaxilares e osteotomias. Relato de caso: foi descrito e discutido um caso proveniente do ambulatório do curso de residência em cirurgia bucomaxilofacial no qual após a retirada de tecido ósseo do mento para enxerto na maxila dois elementos dentários apresentaram alteração de cor. Posteriormente, foi evidenciada a necrose asséptica dos referidos dentes, os quais receberam tratamento endodôntico e clareamento interno. Considerações finais: nos procedimentos cirúrgicos onde ocorre uma profunda intervenção em vasos sanguíneos da face são necessários rigorosos planejamentos aliados a acompanhamento pós-cirúrgico em razão das, entre outras possibilidades, alterações pulpares.

Palavras-chave: Descoloração de dentes. Necrose pulpar. Osteotomia.


 

ABSTRACT

Introduction: the oral surgery with removal of bone and deep sections on the soft tissues obviously cause significant changes in these structures, with highlights to the vascular ones, including vessels that irrigate directly the dental pulp. Depending on the extension of the surgical site, it is possible to stop the irrigation of the pulp tissue. Such changes are confirmed in literature, especially in Le Fort I surgeries, intermaxillary sutures and osteotomies. Case report: it was described and discussed a case from the ambulatory of the course of bucomaxillofacial surgery residency, in which, after removal of the mento's bone tissue to graft in the maxilla, two teeth showed color change. It was, subsequently, evidenced the aseptic necrosis of these teeth, which received endodontic treatment and internal bleaching procedure. Final considerations: in surgical procedures where it happens a deep intervention in face's blood vessels are required rigorous planning allied to post-surgical monitoring due to, among other possibilities, pulp changes.

Keywords: Osteotomy. Pulp necrosis. Tooth discoloration.


 

 

Introdução

A polpa dental é preenchida por tecido conjuntivo mucoso (dente jovem) ou frouxo (dente adulto). Odontoblastos, fibroblastos, macrófagos, linfócitos, células de Schwann, células endoteliais, células indiferenciadas, pericitos, capilares, veias, artérias, fibras colágenas e fibras nervosas mielínicas e amielínicas fazem parte do tecido pulpar1,2. A polpa dental é afetada por agressões, sejam de natureza física, química, sejam biológicas, e tais estímulos, dependendo de sua intensidade, podem afetar de maneira irreversível a polpa, a ponto de que seja necessária a intervenção endodôntica.

Lin et al. (2006)3 demonstraram que os elementos dentários, quando interrompida sua circulação sanguínea de uma maneira estéril, não causarão resposta inflamatória periapical, e as bactérias não infectarão essa cavidade, o que implica uma conduta mais conservadora, tanto em relação ao diagnóstico, como ao tratamento nos casos de necrose asséptica.

Uma das agressões que se torna cada vez mais frequente é o trauma, seja ele decorrente de acidentes, de várias naturezas, seja provocado por procedimentos invasivos, como cirurgias ortognáticas e osteotomias, procedimentos comuns devido ao avanço dos procedimentos ortodônticos e recolocações ósseas. Tais agressões, apesar de serem assépticas e planejadas, alteram a qualidade do suprimento sanguíneo que irá chegar à polpa dentária, ocasionando desde isquemia até necrose pulpar4.

Quando se trata de uma osteotomia de um segmento, a isquemia parcial dos elementos dentários,devido à alteração do fluxo sanguíneo, tende à normalidade com o passar do tempo, mas não da mesma intensidade que no pré-cirúrgico, e atuando de maneira diferente dependendo do local. Na mandíbula existe uma tendência maior de alterações pós-cirúrgicas5,6.

Oztürk et al. (2003)7 observaram que a isquemia pulpar pode acontecer, mas isso depende do nível da osteotomia em cirurgias Le Fort I, entretanto, osteo tomias realizadas a 5 mm acima dos ápices dentários e separando a sutura intermaxilar não promoveram qualquer efeito na polpa e fluxo sanguíneo. Ramsay et al. (1991)6 também em estudo com um fluxômetro Laser Doppler, analisaram que em cirurgias Le Fort I ocorreram alterações no fluxo sanguíneo, mas em nenhum caso analisado foi constatada a paralisação do fluxo, apesar da descoloração em um caso de incisivo central.

Sato et al. (2003)8 estudaram 14 pacientes pós-Le Fort I e encontraram, por aferição baseada na fluxometria por Laser Doppler, que logo após a cirurgia o fluxo sanguíneo caia a 18,3%, o que poderia interferir em curto prazo na sensibilidade pulpar. Quatorze dias, três, seis, e doze meses após a cirurgia os valores subiram para 54,8%, 51,6%, 62,0%, e 77,3%. Não houve casos de necrose, mas os estudos mostram que o fluxo sanguíneo e por conseguinte a sensibilidade dentária tende a voltar à normalidade.

Harada et al. (2004)9 relataram a volta da sensibilidade pulpar após 14 dias de cirurgia Le Fort I e de distração maxilar, mas cita que em 90,9% o teste de vitalidade pulpar foi ausente após a cirurgia, retornando após 15 dias do procedimento. Quanto à circulação sanguínea, os resultados foram semelhantes aos achados por Sato et al. (2003)8, que mostram que a circulação tende a aumentar com o tempo de recuperação do paciente.

Lownie et al. (1999)4 executaram osteotomias a 3 a 4 mm dos ápices dos dentes molares e pré-molares mandibulares em babuínos e acharam, em alguns casos, necrose da polpa. Os autores salientaram que é razoável atrasar o tratamento endodôntico até que haja uma indicação clara para isso, e esclareceram que o fato está relacionado ao dano nos tecidos periapicais devido ao trauma e a não formação de anastomoses que sustentem a vitalidade desses elementos.

A descrição desse caso alerta para que se acompanhe o paciente no pós-operatório de cirurgias em que ocorrem osteotomias, de uma maneira integral, enfatizando que há uma agressão aos tecidos, inclusive os pulpares, devido ao défice de nutrição, criando a necessidade do acompanhamento do retorno da circulação sanguínea a níveis normais, bem como de possíveis alterações de cor nos elementos dentários afetados.

 

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 54 anos, compareceu ao ambulatório do curso de residência em cirurgia bucomaxilofacial da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, com o objetivo de reestabelecer a função e a estética devido à ausência de elementos dentários anterossuperiores. Foi constatada perda óssea, impossibilitando a reabilitação funcional e estética por meio de implantes. Forneceu-se, então, ao paciente, um termo de consentimento livre e esclarecido, mais tarde aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa nº 1281/2011. Assim, a fim de possibilitar a reabilitação oral, foi realizado enxerto ósseo para reconstrução da região, sendo que a área doadora de eleição foi a região anteroinferior (mento), de onde foram removidos dois blocos da cortical óssea vestibular de aproximadamente 2 cm2, respeitando o limite de 5 mm abaixo da linha dos ápices dentários. Para determinar a linha dos ápices, foram consideradas as radiografias panorâmica e periapical (Fig 1).

 

 

 

A técnica da remoção óssea consiste em anestesia regional bilateral do nervo alveolar inferior com complementação anestésica por meio de anestesia terminal infiltrativa no fundo do vestíbulo e lingual dos incisivos. A incisão é efetuada na crista e na papila interdental até o periósteo. Em seguida, desloca- se o retalho até a base da mandíbula. A remoção de blocos cortical e medular é efetuada com brocas de baixa rotação da série 700 com fissura, sob abundante irrigação com soro fisiológico, sendo a região delimitada com broca, a 5 mm abaixo dos ápices dentários, inferiormente pela base da mandíbula e lateralmente pelas raízes dos caninos e pré-molares e/ou forame mentoniano. A osteotomia é, então, completada até aproximadamente 4 a 5 mm de profundidade. Coloca-se o cinzel ou alavancas (extratores retos) na fenda criada pela osteotomia e separa-se o bloco, obtendo-se, dessa maneira, o enxerto cortical e medular. Irriga-se a área doadora com soro fisiológico e, finalmente, faz-se irrigação com rifocina 75 mg. A sutura é feita em planos, sendo primeiro o periósteo e, em seguida, a musculatura e a mucosa, utilizando-se fios reabsorvíveis sintéticos.

Logo após o procedimento, no retorno do paciente ao ambulatório da clínica odontológica, constatou- se alteração na cor dos elementos 31 e 42 (Fig. 2), sem sintomatologia dolorosa. Decorrida uma semana pós-operatória, o paciente foi encaminhado ao setor de endodontia da Unioeste, em Cascavel para avaliação quanto à necessidade de tratamento endodôntico.

 

 

 

 

 

 

 

O paciente foi acompanhado pelo período de trinta dias e no final desse período foram realizadas tomadas radiográficas periapicais e testes térmicos para avaliar a sensibilidade pulpar, os quais se mostraram negativos. Os dentes envolvidos apresentavam- se sem sinais clínicos aparentes, havendo apenas relato de desconforto pelo paciente em relação à descoloração da coroa dentária. Passado esse período, optou-se pela realização do tratamento endodôntico (Fig. 3) e, após 15 dias, pela realização de clareamento dos dentes em questão. Cinco meses após a conclusão do tratamento, nas avaliações pós-operatórias, o caso clínico apresentou assintomático e com o devido restabelecimento estético (Fig. 4).

 

Discussão

Os danos ocasionados pela cirurgia ortognática sobre o tecido pulpar são similares aos casos de traumatismo dentário10. A possibilidade de diminuição de fluxo sanguíneo em casos de osteotomias, principalmente se tratando de Le Fort I, é relatada como normal, bem como há registros de que a normalidade retorna com o passar do tempo4,8. Em algumas osteotomias, tais como a separação cirúrgica de sutura intermaxilar e intervenções cirúrgicas, distantes de ao menos 5 mm do ápice radicular, raramente ocorre redução significativa do provimento sanguíneo pulpar7. Identicamente, no presente caso esperar-se-ia semelhante ocorrência, sem danos à estética das coroas dentárias. Em situações de retirada óssea da região anteroinferior (mento), os limites e situações nem sempre conseguirão ser respeitados devido à proximidade com que é executado o procedimento cirúrgico. Uma isquemia temporária estaria dentro da normalidade6, porém, a sua persistência poderá ocasionar uma hipóxia local, incompatível com a sobrevivência da polpa dentária, que poderá evoluir para um estado de necrose tecidual.

Em virtude da dificuldade de acesso cirúrgico para a obtenção do enxerto ósseo, os danos aos vasos sanguíneos das regiões ora descritos são praticamente inevitáveis, opostamente ao que tende a ocorrer na maxila, pois as anastomoses e o suprimento vascular são mais favoráveis aos procedimentos cirúrgicos4.

Em uma situação de trauma dentoalveolar, a polpa tende a normalizar o fluxo sanguíneo, porém, devido ao fato de haver circulação menor que aquela efetiva no momento anterior ao procedimento cirúrgico, persiste também a possibilidade de necrose4,8.

A paralisação do fluxo sanguíneo, quando ocorre, pode ser considerada como asséptica, e permanecerá dessa forma, desde que não ocorra exposição da cavidade pulpar ao meio bucal. Como não ocorre um processo inflamatório, também não ocorrerá uma imagem radiográfica que indique uma lesão periapical3.

No caso clínico descrito, partindo da premissa de ausência de sensibilidade e transcorrido um mês após o procedimento, optou-se pelo procedimento endodôntico devido ao fato de que não se constatou clinicamente o retorno da cor original. Permaneceu ausente a respostas térmica do elemento no período de trinta dias, além dos 15 dias nos quais se esperava o retorno do fluxo e a sensibilidade, de uma forma progressiva9,8. O paciente continuava apresentando como queixa principal o escurecimento dos elementos em questão. Deve-se, aqui, salientar que no ato operatório endodôntico constatou-se a ausência de circulação sanguínea, o que se comprovou a irreversibilidade em relação à irrigação da polpa. Em uma situação em que não ocorresse alteração da cor do elemento dentário, o procedimento mais indicado seria a preservação dos elementos à espera de alguma sintomatologia para justificar a intervenção endodôntica.

 

Considerações finais

Constata-se um expressivo avanço da quantidade de intervenções cirúrgicas ósseas nos pacientes, justificado pelo avanço das técnicas reabilitadoras através de implantes, onde, em grande parte, há a necessidade de enxertos ósseos e também de cirurgias ortognáticas. Esses procedimentos são agressivos e causam alterações na cavidade bucal, entre elas a irrigação e o fluxo sanguíneo, devido a modificações vasculares que ocorrem em grandes vasos que são seccionados durante os procedimentos.

Ao se descrever esse caso, tenta-se enfatizar os cuidados e o acompanhamento rigoroso do paciente no período pós-cirúrgico envolvendo osteotomias, sejam decorrentes de uma situação mais invasiva, como é o caso das cirurgias ortognáticas, seja em situações menos invasivas, como enxertos de pequenos blocos. Torna-se então imperativo que se tenha uma conduta de avaliação dos elementos dentários, principalmente os situados próximos ao local do procedimento. Há que se destacar que mesmo respeitando os limites e se aplicando a técnica, tal situação pode ocorrer, devendo o paciente estar previamente esclarecido quanto à possibilidade de alterações de polpa nessas regiões.

Nota-se que as alterações pulpares e os procedimentos que deveriam ser considerados no pré e pós-operatório não estão claramente descritos e profundamente investigadas na literatura. Nesse sentido, esperamos alertar para a necessidade de acompanhar os pacientes, avaliando possíveis alterações e efeitos indesejáveis relacionados aos procedimentos a que estão sendo submetidos.

 

Referências

1. Junqueira LCU. Carneiro J. Histologia básica. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1999.         [ Links ]

2. Avery, J.K. Fundamentos de histologia e embriologia bucal: uma abordagem clínica. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2001.

3. Lin LM, Di Fiore PM, Lin J, Rosenberg PA. Histological study of periradicular tissue responses to uninfected and infected devitalized pulps in dogs. J Endod 2006; 32(1):34-8.

4. Lownie JF, Cleaton-Jones PE, Coleman H, Forbes M. Longterm histologic changes in the dental pulp after posterior segmental osteotomies. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 1999 Mar; 87(3):299-304.

5. Lownie JF, Cleaton-Jones PE, Fatti LP, Lownie MA, Forbes M, Bird M. Vascularity of the dental pulp after segmental surgery in the chacma baboon (Papio ursinus). Br J Oral Maxillofac Surg 1998; 36:285-9.

6. Ramsay DS, Artun J, Bloomquist D. Orthognathic surgery and pulpal blood flow: a pilot study using laser doppler flowmetry. J Oral Maxillofac Surg 1991; 49(6):564-70.

7. Oztürk M, Doruk C, Ozeç I, Polat S, Babacan H, Biçakci AA. Pulpal blood flow: effects of corticotomy and midline osteotomy in surgically assisted rapid palatal expansion. J Craniomaxillofac Surg 2003; 31(2):97-100.

8. Sato M, Harada K, Okada Y, Omura K. Blood-flow change and recovery of sensibility in the maxillary dental pulp after a single-segment Le Fort I osteotomy. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod 2003; 95(6):660-4.

9. Harada K, Sato M, Omura K. Blood-flow change and recovery of sensibility in the maxillary dental pulp during and after maxillary distraction: a pilot study. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod. 2004; 98(5):528-32.

10. Consolaro A, Sant'Ana E, Consolaro MF. Escurecimento dentário e necrose pulpar após cirurgia ortognática: o laringoscópio e o traumatismo dentário. Rev Dent Press Ortodon Ortop Facial [periódico on line]. 2007 Oct [citado 2011 Junho 14]; 12; 5:6-19. Disponível em URL: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1415-54192007000500003.

 

 

Endereço para correspondência:
Ediuilson Ilo Lisbôa
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85819-110 Cascavel/PR

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Recebido: 15/06/2012
Aceito: 21/05/2012